A seta assinala um dos nichos da antiga Capela do Engenho de São Jorge dos Erasmos, em foto de 1967
Abandono no Engenho dos Erasmos
Não é de hoje que o Cidade de Santos vem alertando as autoridades municipais, sobre o
abandono em que se encontram os monumentos históricos da cidade, sendo que, ainda em maio último, focalizou uma denúncia sobre um possível
desabamento da antiga Casa Real do Trem. Também fez referência ao estado lamentável em que se encontram o monumental Palácio da Bolsa, bem como a
atual situação do que restou do antigo Engenho dos Erasmos, um dos primeiros do Brasil e que funcionou nos primórdios da Colonização.
Numa matéria de nossa autoria, publicada na edição do dia 10 de julho de 1971, intitulada "Os
monumentos históricos estão em total abandono", já alertávamos sobre o estado de abandono em que se encontravam na época a Casa do Trem, o
Outeiro de Santa Catarina e a Bica do Itororó, que continua esquecida na subida do Monte Serrate.
Na sua condição de cidade secular, Santos ainda conserva inúmeros monumentos e redutos
históricos, mas que, infelizmente, por não merecerem a atenção das autoridades competentes, vão ficando no esquecimento até a destruição total,
embora representem a própria história da cidade. Além dos monumentos mencionados, poderemos citar outros, como os velhos casarões da Rua do
Comércio, e outros mais relegados ao esquecimento, como o Castelo de João Éboli, que foi construído em cima do que restou do secular Outeiro de
Santa Catarina - o lugar mais histórico da cidade - em cuja base está encravada a placa de bronze registrando a fundação de Santos, e que se
encontra igualmente em completo abandono.
Embora esteja localizada do outro lado do Canal, na Ilha de Santo Amaro, a velha Fortaleza
da Barra Grande - outro monumento de grande valor histórico - também merece a atenção das autoridades que deveriam restaurá-la com urgência antes
que se desmorone por completo.
Advertência dos historiadores - Num dos seus artigos históricos, o saudoso
historiador Costa e Silva Sobrinho ressaltou o seguinte a respeito das nossas tradições: "São elementos básicos para a história de Santos, não
devemos descurá-los como tem acontecido muitas vezes nestes últimos tempos. Este fato de lendas e tradições admiráveis não pode desaparecer. Deve
servir-nos sempre de guia facho tão maravilhoso. Disse algures, um fino poeta e pensador inglês, que 'tradição não quer dizer que os vivos estão
mortos, mas que os mortos estão vivos'. Não deixem, pois, que se transformem em cinzas as brasas esmorecidas da nossa lareira".
"O passado, como os indivíduos - acentuou ainda - necessita lutar para existir. Sua milícia
é formada, sobretudo, de fotógrafos, arquivistas e historiadores, deve ser dedicada e ativa", alertando igualmente que "a inércia, em tal caso, será
prenúncio de aniquilamento" e que, "em regra, na História, as palavras omissão, esquecimento e injustiça têm o mesmo sentido, são vozes
rigorosamente sinônimas".
Em ofício datado de 27 de março de 1950, enviado à Comissão do Plano da Cidade, da Câmara
Municipal de Santos, outro historiador admirável (já desaparecido), o professor Francisco Martins dos Santos, anexou um "estudo sobre logradouros e
prédios de valor histórico" que deviam ser preservados nas modificações urbanas, usando dos seguintes termos num determinado trecho do seu
relatório: "Em verdade, bem pouca coisa já existe, Exmos. Srs. Vereadores, de histórico e de tradicional, na tradicional e histórica cidade dos
Andradas, o que não teria acontecido se, nos primeiros anos da República, houvesse os Poderes Públicos, em geral, previsto a onda de progresso
material que veio e devia vir com o novo regime, acautelando o que fosse preciso acautelar, e houvessem as Câmaras de Santos instituído e
constituído Comissões semelhantes às de V. Exas., com a mesma finalidade, com a mesma mentalidade e o mesmo cuidado, nobre, civilizado, de salvar um
patrimônio que não se conta por cifras, mas por anos de cultura e civilização...".
E no seu extenso relato, contendo informações históricas valiosas, o saudoso historiador não
deixou de mencionar os primeiros engenhos que existiram em Santos nos tempos coloniais, relacionados na seguinte ordem:
1532 - Engenho da Madre de Deus, fundado por Pero de Góes (no atual morro das Neves);
1533 - Engenho de São João, fundado por José de Adorno, em Santos (altura da atual Praça Rui
Barbosa ou Largo do Rosário);
1534 - Engenho do Governador ou do Trato, mais tarde de São Jorge dos Erasmos, fundado por
iniciativa de Martim Afonso, de parceria com João Veniste, Francisco Lobo e Vicente Gonçalves (em Santos);
1560 - Nossa Senhora da Apresentação, fundado por Gonçalo Affonso, na ilha de Santo Amaro
(rio Curumahu);
1560 - Nossa Senhora do Engenho, fundado por Bartholomeu Antunes (em Cabraiaquera, atual
Quilombo);
1565 - Engenho de Santo Amaro, fundado por Estevam Raposo (na Ilha de Guaíbe, ou Santo
Amaro);
1570 - Engenho de Santo Antonio, fundado por Antônio Fernandes junto à Igreja de Santo
Antonio de Guaíbe (fronteiro a Bertioga);
1590 - Engenho de Nossa Senhora do Pilar, fundado pela Companhia de Jessus (ao fundo do rio
Itapanhaú).
De todos, o único cujas ruínas ainda se encontram visíveis é o de Sâo Jorge dos Erasmos, na
área Oeste do morro da Nova Cintra, e margem oriental do Rio de São Jorge (sopé do morro do Cutupé), e que remonta à época da expedição colonizadora
de Martim Afonso de Souza.
"Aos colonos que o acompanharam - registra o célebre monge historiador setecentista Frei
Gaspar da Madre de Deus nas suas Memórias para a História da Capitania de São Vicente - e depois chegaram no tempo que aqui assistiu,
consignou Martim Afonso o terreno necessário para edificarem suas casas na Vila de S. Vicente, e permitiu que todos plantassem na Ilha deste Santo
onde quisessem. Por conhecer que, sem negócio e agricultura, nenhuma colônia se aumentava, promoveu quanto lhe foi possível estes dous ramos,
introduzindo todas as espécies de animais domésticos...". E mais adiante: "...e mandando vir da Ilha da Madeira a planta de canas doces. Para que os
lavradores as pudessem moer, fabricou quase no meio da sobredita Ilha um engenho d'água, com Capela dedicada a S. Jorge, o qual foi o primeiro que
houve no Brasil...".
O Engenho do Governador - Foi assim que surgiu o engenho fundado por Martim Afonso e
pelos seus sócios João Veniste (Johan Van Hielst), Francisco Lobo e o Piloto-mor Vicente Gonçalves e que, inicialmente, recebeu a denominação de
Engenho do Senhor Governador, uma vez que ao Donatário pertencia a aludida empresa comercial. Posteriormente, veio a denominar-se Engenho dos
Armadores, devido a uma outra sociedade, cujos acionistas eram conhecidos por Armadores do Trato, que passaram a tocar o negócio visando incentivar
o comércio na Capitania, isso por iniciativa do próprio Martim Afonso, sendo que, em 1542, sua mulher, dona Ana Pimentel, veio a nomear Feitor da
Fazenda do Trato o Capitão-mor Cristóvão de Aguiar.
Na sua obra O Engenho de São Jorge dos Erasmos, o historiador J. P. Leite acentua o
seguinte: "A cultura canavieira, na Capitania Vicentina, fez surgir os primeiros engenhos do Brasil. Um deles, movido a água, possuía capela sob a
invocação de S. Jorge, cemitério, habitações para operários, e as demais dependências de um grande engenho".
O citado historiador observa ainda que "a questão da prioridade de São Jorge dos Erasmos
entre os engenhos do Brasil não está ainda suficientemente esclarecida, pesando em favor de ter sido ele o primeiro estabelecimento bem aparelhado (moente
e corrente) para a produção açucareira".
Mais tarde, o engenho foi adquirido pelo alemão Erasmo Schetz (ou Scheter, Schette ou
Esquerter), Senhor de Groblendocq, passado por Martim Afonso, Francisco Lobo e Vicente Gonçalves, tornando-se então conhecido por Engenho de São
Jorge dos Erasmos. É sabido que até 1603 o estabelecimento pertencia aos Schetz (descendentes de Erasmo, falecido em 1550), que acabou caindo em
declínio, devido à má situação dos herdeiros, bem como ao predomínio do Norte no comércio açucareiro, vindo a desaparecer consumido pelo tempo, não
havendo (ao que parece) nenhuma citação histórica a seu respeito após o primeiro quartel do século dezessete.
Além de ter utilizado o braço escravo na lavoura e na moenda, o engenho abrigou, em suas
grossas paredes quinhentistas, inúmeros capitães-mor e vereadores, que ali se reuniam para discutir assuntos relacionados com o progresso da
Capitania que florescia, servindo até como sede de um Conselho de Guerra, integrado por representantes de várias vilas da região.
E, apesar do seu período de prosperidade, o engenho teve igualmente suas fases de
adversidade, de infortúnio, como, por exemplo, quando foi atacado e queimado pelos temíveis piratas que assolavam a costa brasileira. O primeiro
ataque ocorreu em 1591, e teve como protagonista o corsário inglês Thomas Cavendish, e o segundo, em janeiro de 1615, quando foi ocupado pelos do
holandês Joris van Spilbergen, que haviam desembarcado na margem ocidental do Casqueiro, segundo revela J. P. Leite de Cordeiro (obra mencionada).
No tocante à sua administração, o engenho contou primeiramente com os serviços do alemão
Pedro Roesel (Rutz ou Roso), substituído em 1566 por João Batista Malio. Nos idos de 1568, coube a Paulo Werner assumir a sua direção, sendo
sucedido por Jerônimo Maia sete anos depois. Como a administração desses dois últimos não foi muito boa, surgiram desastres financeiros que viriam a
repercutir posteriormente no seu período de decadência, sendo que já no início do século dezessete era de propriedade de Lancelot e Melchior,
herdeiros de Gaspar Schetz (irmão de Erasmo), estabelecidos com a firma "Gaspar Schetz e Irmãos".
Durante a escavação realizada na área do engenho, em
1957, foram encontradas provas da existência de um velho cemitério, assinalado pelas setas
Até hoje não se sabe ao certo qual será o destino da área onde se encontram as ruínas do
Engenho dos Erasmos, mas vejamos o parecer do historiador Jayme de Mesquita Caldas a respeito de tão discutido assunto:
"As ruínas do Engenho dos Erasmos, por direito e historicamente, pertencem a São Vicente,
muito embora a causa já esteja perdida. Pelo menos, guardou em suas terras, que lhe foram esbulhadas, os únicos remanescentes quinhentistas
conhecidos existentes no Brasil.
"Em 1957, Maria Regina da Cunha Rodrigues, professora efetiva de História da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da USP, e, na época, adida à Cadeira de História Antiga e Medieval, da mesma Faculdade, lançou pelas colunas do O
Estado um apelo às autoridades, aos particulares, especialmente aos usineiros paulistas, em prol da proteção ou restauração do primeiro engenho
de açúcar brasileiro e, talvez, americano.
"Cumpre-nos lembrar que o problema das ruínas do Engenho São Jorge dos Erasmos foi
focalizado por cronistas, historiadores e intelectuais paulistas. É de justiça ressaltarmos que a pronta e decidida receptibilidade de particulares
decorreu desse apelo, e, entre eles, a do proprietário das terras onde estão encravadas as ruínas, Sr. Octávio Ribeiro de Araújo (já falecido), que
doou à USP 4.000 m² daquela área, em 31 de janeiro de 1958, para a construção de um edifício onde os jovens pudessem estudar a nossa História."
- Quando teremos isso?
Não acreditamos em restauração e, nem tão pouco, que ali será construída alguma coisa de
interesse cultural pela USP. Somos como São Tomé: só vendo para crer. E nossas afirmativas baseiam-se nas próprias declarações do ex-diretor do
Patrimônio Histórico e Artístico do Estado, professor Luiz Saya (já falecido), publicadas na imprensa, em 22 de julho de 1973.
"Ali - diz ele - não há possibilidade de restauração, mas conseguimos fazer, com muita
dificuldade, um trabalho de consolidação das ruínas, limpeza da área, desmonte de partes soterradas e reforço da estrutura".
A impossibilidade da restauração do Engenho dos Erasmos é motivada pela falta de dados e
informações. Nesse ponto, o ilustre historiador, Costa e Silva Sobrinho, era taxativo: "...a vida no Engenho dos Erasmos, na sua origem, não tem
sido contada de maneira uniforme pelos nossos historiadores. Isso resulta da falta de documentação apropriada, da pressa ou impaciência dos
pesquisadores e, por fim, das ilações temerárias ou da má interpretação dos textos consultados".
Luiz Saya falou ainda da "necessidade de um parqueamento e também de um acesso condigno ao
local, que embora muita gente ignore é de grande importância em nossa história".
"Como se cabe, estava nos planos da USP a construção de apartamentos nas imediações do
Engenho dos Erasmos, para professores e estudiosos interessados em pesquisar o local. O plano está inteiramente parado e eu não incentivaria a
universidade a concretizar a idéia, porque o turismo em Santos, no que se relaciona ao Patrimônio, não corresponde", declarou Luiz Saya naquela
ocasião.
O completo estado de abandono em que se encontra o Engenho dos Erasmos não lhe dá condições
de continuar sendo o orgulho histórico e turístico da Zona Noroeste. Transformou-se num barracão com estrutura de pedra e coberto de telhas. Há
partes em que o cimento está segurando pedras: há nas velhas ruínas um pouco de cada coisa, contrastando com as pedras quinhentistas... enfim, será
muito difícil, nos dias atuais, alguém nos indicar com precisão histórica a casa da moenda ou engenho, casa das fornalhas, casa das caldeiras ou dos
cobres e a casa de purgar.
"A Moenda, o eixo da moenda, as rodas d'água, os arcos do rodete, a bolandeira, as aspas, as
contra-aspas e o caliz que foram construídos em madeira de lei, tudo isso, já desapareceu há muito tempo.
"Quando lá estivemos em 1957, na companhia do saudoso amigo, jornalista e historiador,
Edison Telles de Azevedo, pelo menos, pudemos delinear toda a área onde existiu a capela e o cemitério, isto porque fomos testemunhar um achado
muito curioso.
"O proprietário do engenho, sr. Otávio Ribeiro, antes de doar toda a área à Universidade de
São Paulo, ordenou, a dois empregados seus, que fizessem uma escavação em forma de L, para certificar-se da existência do Cemitério, devido à
insistência do Sr. Edison, uns seis meses antes da nossa visita ao local. Isso foi feito, e de fato, foram encontrados crânios, maxilares perfeitos
e ossos dos membros superiores e inferiores. Perguntamos: A quem pertenciam essas ossadas?
"Finalmente, resta-nos dar mil razões à ilustre professora, Maria Regina da Cunha Rodrigues,
que, defendendo a sua tese - 'O Brasil não é pobre em tradições, é pobre o culto às tradições' - exprimiu uma grande verdade".
Pesquisa e texto de J. Muniz Jr.
Ruínas do Engenho dos Erasmos, únicos remanescentes quinhentistas conhecidos existentes no Brasil
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