J.Muniz Jr. (*)
"A Cobiça enviou à América expedições piratas bordejando todo o litoral americano, vasculhando as entradas de todos os rios e assaltando as colônias costeiras."
(P. Nuñes Arca)
|
A exemplo do que ocorria no cenário marítimo das Caraíbas, onde os corsários, flibusteiros e bucaneiros cruzavam os mares praticando as mais sanguinárias operações de pilhagem,
deixando um rastro de terror, desde os primeiros tempos coloniais que a pirataria passou a assolar o litoral brasileiro, atacando incessantemente as cidades e vilas costeiras, aterrorizando pelo fogo e pela espada, principalmente durante o domínio
espanhol.
Tal era o temor das manobras de rapina dos ladrões dos mares, que as populações litorâneas viviam em sobressalto, sempre prontas para fugir para os morros mais altos ou buscar refúgio em grutas ou subterrâneos
secretos, escapando assim da sanha sanguinária dos temíveis piratas, sempre em busca de riquezas.
A antiga Vila de Santos também foi alvo de constantes ataques da pirataria que assolava a costa brasileira - motivo pelo qual, desde a fundação do primitivo povoado, foram surgindo as paliçadas, visando a proteger
os moradores locais de possíveis ataques, não só dos índios, como também da invasão de barcos piratas barra adentro, com o objetivo de pilhar e saquear.
Braz Cubas
Imagem: bico-de-pena de Ribs
Fortificações - Além de ter se empenhado na criação de um hospital de misericórdia, o Capitão-mor
Braz Cubas também procurou fortificar a vila contra ataques dos piratas, construindo a Fortaleza de São Felipe, em 1552. Logo surgiu uma linha de fortificações marítimas, estendidas ao longo do porto e da costa Norte de
Santos, "para proteger a vila e defender o interior da emergência terrível de alguns desembarques de tropas beligerantes ou investidas de corsários", segundo assinala o historiador Alberto Sousa (Os Andradas).
Com o correr do tempo, foram edificadas outras fortificações, à entrada da barra e em outros pontos do canal, transformando a então Vila de Santos num verdadeiro porto fortificado. Mas, apesar de todas essas
providências, em 1583, o corsário inglês Edward Fenton entrou no ancoradouro santista com dois galeões e duas pinaças fortemente artilhados, quando foi surpreendido pelo comandante André Hygino, que fazia parte da Armada de Castela, chefiada pelo
Capitão-General D. Diogo Flores Valdez, que navegava à altura do nosso litoral, e com o qual trocou fogo de artilharia.
O episódio serviu de alerta para mostrar o perigo a que ainda estava exposta a vila de Santos, sem defesa segura contra as incursões piratas. Diante de tal ameaça dos inimigos da Espanha, e como prevenção contra
novas investidas marítimas, El-Rei D. Felipe II determinou que fosse levantada uma fortaleza na entrada da barra, do lado da Ilha do Sol (atual Santo Amaro), onde foi levantado o Forte de Santo Amaro ou Fortaleza da Barra
Grande, cuja construção se estendeu até 1590.
É válido ressaltar que, em fins do século XVI, foram marcantes as incursões dos corsários Jacques Riffault e Charles de Vaux, no Maranhão; James Lancaster e John Venner, no Recife; Robert Withring, na Bahia, sendo
que Santos esteve igualmente no roteiro de vários piratas, como, por exemplo, o citado ataque de Edward Fenton, em 1583.
Thomas Cavendish, em antiga estampa publicada no livro Os Andradas
Imagem publicada com a matéria (cor acrescentada por Novo Milênio)
Galante - Um dos mais destemidos corsários foi Thomas Cavendish -
considerado o terceiro circunavegador do globo - que deixou a Inglaterra comandando uma frota e saiu navegando aventuroso pelos mares, em busca de riquezas, uma vez que fora armado cavalheiro em 1588, pela rainha Isabel. E, apesar de atacar suas
presas sem piedade, sabia ser galante e até cavalheiresco, tanto é que o historiador Rocha Pombo observa na sua História do Brasil que ele era "...o tipo do franco-ladrão dos mares, que sabia dar às suas façanhas e depredações uma cor de
elegância cavalheiresca, tornando-se popular, e sendo até aplaudido, em vez de renegado pela própria aristocracia europeia".
De 1588 a 1591, o famoso corsário inglês apareceu no litoral santista por duas vezes e, numa dessas investidas, invadiu e saqueou o povoado, além de queimar os engenhos encontrados pelo caminho até São Vicente.
Depois de uma excursão devastadora pela América Espanhola, Cavendish rumou para a América do Sul, e depois de muitas manobras de rapina aportou em Cabo Frio, onde se apossou de um navio português e aprisionou o seu comandante, que ficou a bordo da
nau capitânia da esquadra corsária, servindo de prático e piloto em nossas águas.
De Cabo Frio seguiu para o canal de São Sebastião, e, guiado pelo comandante português Gaspar Jorge (que servia de piloto), veio a aparecer em Santos, onde efetuou um ataque de surpresa, isso na noite de 25 de
dezembro de 1588, quando se comemorava o Natal com a realização de uma missa na Matriz. Esse ataque na noite de Natal foi descrito posteriormente por um dos tripulantes da frota de Cavendish, de nome Antony Kenivet, cuja obra foi publicada em
inglês e traduzida em vários idiomas.
Vila de Santos foi alvo de constantes ataques,
principalmente durante o domínio espanhol de 1580 a 1640
Imagem publicada com a matéria (cor acrescentada por Novo Milênio)
Noite de Natal - Foi depois de uma reunião com o seu Estado-Maior (capitães e mestres dos navios de sua esquadra) que o corsário inglês decidiu atacar a Vila de Santos com uma chalupa e batéis grandes
através do canal (provavelmente o de Bertioga), encarregando o seu lugar-tenente Capitão Concke para o desempenho de tal missão. Ao chegarem silenciosamente no porto, os piratas ouviram o som de uma sineta proveniente de uma missa que estava sendo
celebrada na antiga Igreja da Misericórdia, junto ao Colégio dos Jesuítas, que servia de Matriz, e onde se encontravam reunidos cerca de trezentos homens, sem contar com as mulheres e crianças.
E assim, durante aquela santa celebração de Natal, a igreja foi cercada e invadida pelos piratas, que saquearam tudo e prenderam os mais importantes homens da vila (Braz Cubas, José Adorno, Jerônimo Leitão e
outros), que ficaram encarcerados como reféns. Da Matriz, que ficava nas imediações do local onde hoje se encontra a estátua de Braz Cubas, os homens de Cavendish levaram a cabo uma série de depredações na vila, provocando a fuga de inúmeros
moradores, sendo que, durante o saque, além de ouro e muitas joias, conseguiram juntar grande provisão de víveres.
No dia seguinte, 26 de dezembro, Thomas Cavendish aportou com a sua esquadra, fazendo desembarcar duzentos homens para reforçar o efetivo de terra. Também mandou saquear e queimar todos os navios que se encontravam
no porto, e, prosseguindo na sua operação de pilhagem, o esquadrão pirata foi por terra até São Vicente, saqueando e queimando todos os engenhos que encontrava pela frente, pilhando e incendiando igualmente o vizinho povoado, deixando atrás de si
um rastro de ódio e pavor.
Segundo relato de Kenivet, o Colégio dos Jesuítas, as igrejas e edifícios públicos de Santos foram todos saqueados e a maior parte queimados, inclusive a Igreja de Santa Catarina - que fora construída por Luís de
Góes e sua mulher, dona Catarina de Andrada e Aguillar, em 1553, junto ao outeiro do mesmo nome - foi quase que totalmente destruída. Durante o ataque ao outeiro, além das joias e alfaias, os piratas levaram também as imagens da igreja para bordo.
Sobre esse triste episódio, o monge historiador Frei Gaspar da Madre de Deus fez a seguinte referência: "Os ingleses quando saquearam a vila do Porto de Santos lançaram ao mar a imagem de Santa Catarina - padroeira
da dita igreja - a qual veio à terra, casualmente, em uma rede com que estavam pescando os escravos dos Jesuítas. Era nesse tempo reitor do Colégio de Santos - 1709 - o padre Alexandre de Gusmão... Ele colocou a santa noutra capela maior, que, com
esmolas dos fiéis, mandou levantar em cima do Outeiro. A santa imagem ainda conserva algumas cascas de ostras, que nela se geraram, quando estava no mar, e admira a circunstância de não a terem despedaçado aqueles
iconoclastas, acostumados a dilacerarem as imagens dos santos".
Casa do Trem e ao fundo a antiga capela de Santa Catarina,
ali reconstruída após o ataque de Cavendish
Imagem: tela de Benedito Calixto
Segunda vez - Depois de dois meses de estada em nosso porto, e não tendo mais nada o que levar ou depredar, o corsário Cavendish tomou rumo do Sul. De outra feita, quando se encontrava ferido no braço por
uma flecha envenenada, coberto de chagas, sofrendo acessos e tremores febris, e temendo pela vida, o terrível corsário tentou, mais uma vez, entrar na barra de Santos e poder assim buscar socorro no Hospital de Misericórdia da Vila.
Alertada e preparada para enfrentar os piratas com uma resistência organizada, a população santista, através dos seus homens de combate, rechaçou a frota de Cavendish, que foi obrigado a retroceder. Seriamente
doente, o corsário pensou em voltar para a Inglaterra para poder tratar-se, mas, no entanto, veio a morrer no mar.
(*) Pesquisa e texto de J. Muniz Jr. Publicado em 26/12/1982 no jornal santista Cidade de Santos, página 16. O autor publicou
também o livro Fortes e Fortificações do Litoral Santista, edição comemorativa da Semana da Marinha de 1982. |