Tudo aconteceu muito depressa: no início da década de 50, João Otávio Ribeiro decidiu
recuperar e lotear umas terras que possuía na Zona Noroeste. Passados não mais de 30 anos, sobre os pântanos e matagais surgiu a Vila São Jorge,
que já tem quatro mil habitantes e registra índice de ocupação em torno de 97 por cento.
E como todo bairro que se consolida, a Vila começou a crescer para o alto: junto às encostas
do Morro da Nova Cintra, que corresponde à área mais retirada, foram edificados os 21 blocos de prédios que compõem o Conjunto Residencial dos
Estivadores. Embora as obras estejam atrasadas quase um ano, vários prédios estão em fase de acabamento e até o final do ano começarão a
receber os moradores.
A chegada dessas novas pessoas aumentará a movimentação nesse bairro tranqüilo, de
classe média baixa, que se orgulha de acolher em seus limites o primeiro engenho de cana-de-açúcar do Brasil, o de São Jorge dos Erasmos.
Não se pode mesmo fazer pouco caso dessa vila de muitas e boas casas, cuja cotação,
enquanto área residencial, subiu muito nos últimos anos. O lugar só não é melhor porque não resiste a chuvas mais fortes: já teve dia de os
moradores saírem corridos de casa, porque as águas inundaram tudo. Fora isso, restam várias ruas sem asfalto, que viram lamaçais intransponíveis
em períodos chuvosos.
Em pleno século XVI, já havia naquelas terras um pequeno povoado, ao redor do primeiro
engenho de cana-de-açúcar do Brasil. Mas o que se conhece por Vila São Jorge passou séculos e séculos esquecida e só há 30 anos alguém cuidou de
recuperar suas áreas pantanosas e loteá-las. Num curto espaço de tempo, tornou-se um dos melhores bairros da Zona Noroeste e, por incrível que
pareça, 80 a 85 por cento dos moradores são proprietários de seus imóveis.
Moradores enfrentam sérios problemas quando chove, por causa de algumas ruas sem asfalto
Aconteceu de novo. Um grito de alerta, vindo não se sabe de
onde, foi o primeiro sinal. E não houve tempo para desconfiança ou dúvidas, pois os bois já vinham a todo galope rua abaixo, arrastando com o
chifre quem ou o que estivesse pela frente.
Mais uma vez, a feira acabou em muito rebuliço. Pois é: o estouro da boiada ocorreu justo num dia de feira, para
desespero dos comerciantes, que viram as barracas irem ao chão e as mercadorias rolarem sob as patas daqueles baitas animais.
Para a molecada, a farra não poderia ser maior, e passado o primeiro susto, até os adultos achavam graça. O
acontecimento virava assunto daquele e dos próximos dias, e quebrava a rotina do núcleo tão pacato e sem grandes novidades, feito pequenas cidades
do Interior.
Volta e meia os bois que desciam dos trens da Sorocabana, em São Vicente, aprontavam dessas enquanto seguiam
pela hoje Avenida Nossa Senhora de Fátima - na época uma estrada pedregulhenta e estreita - em direção ao Matadouro. E os tumultos que provocavam
são relembrados entre risos e muita gesticulação pelos antigos moradores da Vila São Jorge.
Essas passagens são o que de melhor o pessoal tem para recordar, já que muita luta e trabalho marcam a história
do núcleo. Tudo começou quando Otávio Ribeiro de Araújo se dispôs a recuperar e lotear as áreas de sua propriedade, encravadas entre as encostas
do Morro da Nova Cintra, Caneleira e Areia Branca.
Na época, aquilo era um verdadeiro fim de mundo, sem água, luz ou outras benfeitorias que pudessem estimular os
compradores. Apesar disso, logo boa parte dos lotes estava comercializada e só há uma explicação para isso: o velho sonho da casa própria. Sabe
como é: com o terreno comprado, fica mais fácil construir um cantinho.
À base de mutirão e muita persistência, nasce uma nova vila - Faz uns 30 anos que a Vila São Jorge
começou a se configurar como um bairro residencial. Datam dessa época a compra dos primeiros lotes e a realização dos primeiros mutirões para
erguer as casas.
Adelino Narciso Cavaco gosta de relembrar o dia em que foi dar um passeio pelo Morro da Nova Cintra, sem maiores
compromissos. Resolveu descer pelo lado da Caneleira e deparou com as faixas anunciando a venda de lotes. Estava casado há seis meses, morava com
o sogro e queria ter seu próprio canto. Interessou-se em adquirir um lote e não deu ouvidos aos palpites dos amigos, que o criticavam por ter
escolhido justo uma área em meio a um imenso matagal.
Célia, uma das pioneiras
Quando
começou a levantar sua casa, no número 161 da Rua Luiz di Renzo, outras pipocavam aqui e ali, e "seu" Adelino teve certeza de que fizera um bom
negócio. Enfrentou noite sem luz elétrica, carregou latas de água no suporte da bicicleta, abriu caminhos entre as matas e hoje se orgulha de ter
ajudado a consolidar esse que é um dos melhores bairros da Zona Noroeste.
Célia Maciel de Almeida também não se arrepende nem um pouco de ter comprado um terreno naquele rechego. Pagava
aluguel e se dispunha a sacrifícios para adquirir um canto onde morar. O marido achava que seus ganhos não dariam, mas ela argumentava que, se não
tivessem dinheiro para o aluguel, o português os poria na rua, o que seria muito pior.
Vai daí que um dia os amigos avisaram que estava sendo loteada "uma tal Vila São Jorge". O medo maior era que
tudo não passasse de trapaça e os lotes fossem clandestinos. Mas, o ditado popular diz que "quem não arrisca não petisca", e o casal decidiu
fechar negócio.
Corria o ano de 1953 quando Célia e o marido desembolsaram os Cr$ 9 mil "e uns quebrados" referentes à entrada.
Por quase nove anos pagaram Cr$ 760,00 referentes às prestações, e nesse período houve espaço para muito sofrimento: era o marido dando duro na
antiga Cia. Docas, e ela na máquina de costura, passando madrugadas em claro para reforçar o orçamento familiar.
No começo, além de pagarem aluguel, tinham as benditas prestações e despesas com a construção da casa. "Foi tudo
na base do fiado, da luta. Compramos o material a prestação", diz, lembrando que sentia medo de tamanha aventura, mas se fazia de forte para não
desanimar o marido.
Dava para contar o número de residências que existiam no bairro quando Célia se mudou para lá. O lugar era tão
descampado que de sua casa conseguia ver a Igreja de Santa Margarida Maria, no Jardim Bom Retiro, e dar tchau para o sobrinho Mércio, no
reboque do Bonde 1, que ligava o Centro com São Vicente e seguia pela Avenida Nossa Senhora de Fátima.
Muita vala, lama ou poeira, dependendo do tempo, mas a disposição de ir em frente, apesar de tudo. Condução só
mesmo o Bonde 1, mas como na Vila moravam muitos trabalhadores do porto, a então Cia. Docas implantou uma linha de ônibus especial.
Se o fim dos bondes foi notícia, imagine-se quando a Viação Santos-São Vicente pôs em circulação aquele baita
ônibus que o pessoal logo apelidou de papa-fila. De tão grande, o dito cujo parecia uma lingüiça e não havia fila que resistisse a ele,
mesmo nos momentos de maior movimentação. Circulava pela Avenida Nossa Senhora de Fátima e não há morador da Vila São Jorge que não guarde
saudades dele.
Dona Albina, uma mulher lutadora que passou para a história do bairro - E se tem alguém que faz falta na
Vila São Jorge é "dona" Albina Rodrigues dos Santos, que se mudou para outro bairro por problemas de saúde. O pessoal pede que ela volte, ela diz
que seu coração continua lá e tudo isso tem sua razão de ser.
Dona Albina presidiu a Sociedade de Melhoramentos
Dona
Albina foi a fundadora do Grêmio da Vila São Jorge, que promovia competições em diversas modalidades esportivas e tinha no futebol o seu grande
forte. O campo ficava onde está hoje a EEPSG Neves Prado Monteiro (antiga Cidades Irmãs), e essa mulher que hoje tem 80 anos nunca perdia um jogo:
sempre comparecia para puxar aplausos e incentivar a rapaziada. Foi naquele campo que o Léo, hoje jogador do Bahia, deu os seus primeiros dribles
e fez os seus primeiros gols.
A casa de dona Albina, na Rua Gastão Bousquet, 474, servia de sede, mesmo depois que o grêmio cresceu e
congregava quase toda a rapaziada e a criançada do bairro. E quem consegue esquecer as festas juninas que ela organizava? Os jovens varavam noite,
de violão na mão, e não raro o pessoal podia se deliciar com a voz do cantor Luís Américo, um dos freqüentadores assíduos.
Mas a Vila São Jorge deve muito mais à dona Albina do que festas e brincadeiras. Mulher de coragem, reabriu a
sociedade de melhoramentos em 1972 (estava parada desde 1967) e assumiu tarefas que homem nenhum se dispunha a enfrentar.
Pelo que se tem notícia, é a única mulher em Santos que já presidiu sociedade de melhoramentos. E ninguém tem o
que reclamar dela: era dessas de bater em porta de prefeito, reivindicar e não sossegar enquanto não visse as solicitações atendidas. Tanto lutou
que conseguiu uma escola estadual, melhoria na iluminação pública e o asfaltamento de muitas ruas. E depois dizem que as mulheres pertencem ao
sexo frágil... |