Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0026b.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 04/12/06 09:19:37
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
O "Quebra Lampiões" (2)

Em 23/12/1884, santistas quebraram a iluminação pública para protestar pelas manobras políticas inglesas com o abastecimento de água
Leva para a página anterior
A história anterior foi originalmente contada, quase com as mesmas palavras, na edição comemorativa do 1º centenário da elevação de Santos à categoria de cidade, em 26 de janeiro de 1939 (exemplar no acervo do historiador Waldir Rueda), do jornal santista A Tribuna (grafia atualizada nesta transcrição):
 


"Foi como um rastilho. Não ficou um lampião por quebrar, ali na Rua General Câmara, no Largo do Rosário, no Beco do Consulado... E a onda de gente sempre aos gritos de quebra!"
Ilustração de José Wasth Rodrigues, publicada com a matéria

A falta de água provocou em Santos, em 1872, a demonstração de força dos "quebra-lampiões"

Como foi conduzida a revolta popular contra o serviço da empresa britânica - Comícios populares, lampiões quebrados, trilhos arrancados, bondes atirados ao mar...

Desde setembro de 1872 que a "Companhia Água, Gás, Luz e Bondes" dera a Santos aqueles bondinhos lerdos, sonolentos, que saíam do Itororó, e lá iam, à força de dois pobres burros, Rua da Independência abaixo (depois Octaviana e hoje Conselheiro Nébias), até a estaçãozinha do Boqueirão, fronteira à chácara dos Carneiro Bastos (N.E.: depois Júlio Conceição).

Sofrível ou não, o seu serviço ia sendo digerido pelo povo, como "grandes melhoramentos" para quem, pouco antes, só tinha os 60 lampiões de azeite de 1830, os pés que Deus lhes dera, para caminhar, e as disputadas águas das Duas Pedras, Itororó, São Jerônimo, São Bento e dos Chafarizes, tiradas a unha, para matar a sede e refrigerar o corpo.

E assim fora até 1884. Nesse ano, diminuíra tanto a água nas torneiras, que o povo, quase todo, voltara sem o querer à antiga luta, de potes e bilhas para as fontes e chafarizes... se queria ter o precioso líquido, embora pagando bom dinheiro, a câmbio inglês, para ter em casa a água das cachoeiras santistas.

Tornara-se raríssimo, então, o poder ter uma moringa cheia na torneira, e a higiene do corpo andava atrasada, como a própria água pelos canos.

A princípio, julgara o povo que o fato fosse conseqüência de alguma seca nos mananciais ou mesmo de alguma anormalidade passageira, de ordem técnica. Depois, com o prolongamento da coisa, tiveram início os protestos, uma vez que a Companhia não vinha a público dar uma satisfação aos contribuintes.

O Diário de Santos, em seus artigos de redação, bradava contra a Companhia, os particulares punham "a pedidos" no mesmo jornal e em outros, reclamando contra a anomalia, e os populares, por fim, rugiam em magotes numerosos, pelas esquinas e praças, protestando contra os homens da Câmara, que haviam assinado o novo contrato apresentado pelo gerente da Companhia - o sr. H. Heyland -, um inglês que, o quanto era magro, era também ativo em prol das finanças da empresa sob sua direção.

O tal Sr. Heyland fazia-se surdo ante os clamores da população sedenta e calorenta. Não havia modo de ceder ou explicar-se, ao menos. A Câmara, por sua vez, aceitara o contrato que modificava o modo de abastecer a população, e se punha na moita, mas o povo parecia não estar mais disposto a sujeitar-se ao pinga-pinga maronhento das torneiras.

Reuniram-se os conspiradores, e havia-os bons em Santos naquela época, os mesmos que já andavam às voltas com a campanha dos escravos, às turras com a polícia e os escravocratas, os organizadores do glorioso Jabaquara.

Miguel Ferreira e Henrique Brugmann, entretanto, tomaram mais a peito o caso e, na noite de 23 de dezembro, daquele ano de 1884, realizaram um meeting (N.E.: encontro, reunião) no jardim da Praça dos Andradas (N.E.: defronte à sede da Cia. City). Veriam, ali, às barbas da polícia, o meio melhor para liquidar a questão.

Miguel Ferreira falou às massas, instigou, convidou o povo a tomar uma desforra contra tal atitude dos ingleses... Henrique Brugmann pilheriou... lembrando ao povo, como bom teuto-brasileiro que era, que acabariam tendo que consumir cerveja de bomba para bebida e banho...

Haveria outro meeting no Largo da Coroação (N.E.: antigo Largo da Misericórdia e atual Praça Mauá). O povo ria e imprecava ao mesmo tempo, e Brugmann concitou-o para a nova reunião na praça vizinha.

Lá, no Largo da Coroação, novos e inflamados oradores discursaram. Constantino de Mesquita foi o primeiro que falou, irritado, violento, endemoniado, preconizando uma demonstração de força, para mostrar aos ingleses que com o povo santista não se brincava...

Na esquina de baixo, onde hoje está o novo Paço Municipal, havia um estabelecimento de secos e molhados do Zé Botinha, conceituado negociante de então, e em sua porta lá estava uma carrada de lenha miúda, tarolinhos roliços, amontoada na sarjeta, para ser recolhida no dia seguinte.

No meio dos discursos, quando mais inflamado estava o respeitável auditório, uma voz do povo gritou:

- Quebra!...

Outra voz, mais distante, secundou:

- Viva o Zé Botinha!...

Era o mesmo que dizer: "Viva a lenha do Zé Botinha!" E num instante, aqueles milhares de tarolinhos pesados desapareceram na multidão. Foi como um rastilho. Não ficou um lampião por quebrar, ali na Rua General Câmara, no Largo do Rosário (N.E.: hoje Praça Rui Barbosa), no Beco do Consulado (N.E.: atual Rua Frei Gaspar), na Rua Direita (N.E.: atual Rua XV de Novembro), na Praça da Matriz (N.E.: atual Praça da República) no Largo dos Andradas, na Rua do Rosário (N.E.: atual Rua João Pessoa), na Rua das Flores (N.E.: hoje Amador Bueno), na cidade inteira... Só escaparam os lampiões da Santa Casa da Misericórdia. E a onda de gente, sempre aos gritos de "Quebra!", continuava a rodar pelas ruas, crescendo, crescendo cada vez mais, como uma procissão do Encontro.

A polícia se recolhera toda ao quartel, por ordem do delegado, para evitar mal maior...

Vinha um bonde da Barra.

- "Quebra!" - gritaram todos; e o bondinho foi atacado, desatrelado, arrastado para o Cais da Alfândega e atirado ao mar. Outro bonde, mais outro e mais outro, todos que encontrou, o povo quebrou, atirando a carcaça ao estuário - à praia - como diziam. Até trilhos arrancaram, e nos chafarizes não ficou uma torneira para lembrança...

Depois de concluída a destruição na cidade, o povo dirigiu-se para o Boqueirão, à casa de Mr. Heyland, a fim de lhe dar uma ensinadela. Mr. Heyland, porém, avisado do estouro, já estava refugiado na Fortaleza da Barra, com sua mulher e toda a matalotagem...

Conta a tradição que a mulher de Mr. Heyland, apesar de protestante, sabedora do que ocorria, fez uma promessa ao Senhor dos Passos, obrigando-se, caso não acontecesse nada ao marido, a iluminar, com arcos de luz, as ruas principais de Santos, por onde passasse todos os anos a sua procissão tradicional.

Nunca mais houve falta de água em Santos, e, enquanto Mr. Heyland esteve à testa da Companhia, a promessa de sua mulher foi cumprida, passando o Senhor dos Passos a ter arcos de gás na Rua General Câmara, na Rua e no Largo do Rosário, à passagem das suas procissões.

Já lá vão cinqüenta e cinco bons anos...

Leva para a página seguinte da série