Lampião a gás, que funcionou no Largo da Imperatriz até 1944
Desde
setembro de 1872 que a Companhia Água, Gás e Bondes dera a Santos aqueles bondinhos lerdos,
sonolentos, que saíam do Itororó e se iam, à força de dois pobres burros, R. Octaviana (hoje Conselheiro Nébias) acima,
até a estaçãozinha do Boqueirão, fronteira à chácara dos Carneiro Bastos (depois Júlio Conceição).
Sofrível ou não, o serviço da Cia. ia sendo digerido pelo povo, como um "grande
melhoramento" para quem, pouco antes, só tinha os sessenta lampiões de azeite (de 1830), "que
se apagavam nas noites de luar por economia", os pés que Deus lhe dera para caminhar, e as disputadas aguadas
Duas Pedras, Itororó, São Jerônimo e São Bento, para as andanças noturnas e para matar a sede e
refrigerar o corpo, entre o desconforto dominante.
E assim fora até 1884. Nesse ano, diminuíra tanto a água nos chafarizes públicos instalados
pela Companhia, que o povo, quase todo, em procissão, via-se obrigado ao serviço antigo, de colheita do líquido nas velhas fontes, muito mais
distantes, em esperas prolongadas e irritantes, aguardando cada um a sua vez em longas filas.
Nem mesmo as famílias ricas, que tinham torneiras em casa, mercê dos primeiros encanamentos
ingleses, dispunham de água, que pagavam a bom dinheiro, pelo câmbio inglês. A Companhia entendera de diminuir a água nos domicílios,
obrigando o consumidor a sujeitar-se aos caprichos, tendo de pagar, a bom dinheiro, a água que ele esperava, junto à torneira, seguramente um quarto
de hora, para poder encher um copo.
Tornara-se raríssimo, então, o poder ter uma moringa cheia de água em casa, já não se
falando em bilhas e latões para outros misteres, e a higiene do corpo andava atrasadinha... tanto como a própria água nos canos da Companhia.
Escravo limpa lampião de óleo de peixe pela manhã, no Rio de Janeiro
Detalhe da gravura de Jean Baptiste Debret
Irritação - A princípio julgara o
povo que o fato fosse conseqüência de alguma seca nos mananciais ou mesmo alguma anormalidade passageira de ordem técnica. Depois, com o
prolongamento da coisa, começaram os protestos, uma vez que a Companhia não vinha a público dar uma satisfação aos contribuintes e ao zé-povinho...
O Diário de Santos, em seus artigos de redação, bradava contra a anomalia, e,
daquele jeito, os particulares punham a pedidos no mesmo jornal e em outros, reclamando contra o descaso da Companhia. Os populares, por
fim, rugiam em magotes numerosos, pelas esquinas e praças, protestando contra os homens da Câmara, que haviam assinado o contrato apresentado pelo
gerente da Companhia - Sr. H. Heyland -, um inglês que, o quanto tinha de magro, tinha de grande em favor das finanças da empresa entregue à sua
direção.
O tal Sr. Heyland fazia-se surdo ante os clamores da população sedenta e cheia de calor, sem
explicar ou tentar explicar o fato, dando uma satisfação. A Câmara, por sua vez, que aceitara o contrato modificando o modo de abastecer a
população, anteriormente estabelecido, punha-se na moita, mas o povo parecia não estar mais disposto a sujeitar-se ao pinga-pinga maronhento das
torneiras, e ao mutismo líquido dos chafarizes públicos...
Conspiração - A grita geral se transformou em conspiração, por força da aproximação
dos grupos revoltados. Reuniram-se por fim os conspiradores de todos os bairros, os mesmos que já andavam às voltas com a campanha dos
escravos, às turras
com a polícia e os escravocratas.
Miguel Ferreira e Henrique Brugmann, entretanto, tomando mais a peito o caso, resolveram
logo convocar um meeting (N.E.: encontro, reunião) de protesto e o
convocaram para a noite de 23 de dezembro daquele ano, na Praça dos Andradas (N.E.:
defronte à sede da Cia. City).
Veriam ali, às barbas da polícia, o meio melhor para liquidar a questão.
Miguel Ferreira falou às massas, instigou, convidou o povo a tomar uma desforra contra tal
atitude dos ingleses. Henrique Brugmann pilheriou, lembrando ao povo, como bom teuto-brasileiro que era, que ninguém mais usasse água,
passando a consumir cerveja de bomba para a bebida e banho...
O povo ria e imprecava ao mesmo tempo, inspirado nos arrebatamentos de Ferreira e nas
pilhérias de Brugmann, e nada pôde ser resolvido naquela noite. Marcou-se novo meeting no antigo Largo da Misericórdia (hoje
Praça Mauá).
No Largo da Coroação (que era seu nome então), a coisa mudou de
figura. Novos e inflamados oradores discursaram. Constantino de Mesquita foi o último que falou, irritado, violento, endemoniado, preconizando uma
demonstração de força, o empastelamento da Companhia, para demonstrar aos ingleses que com o povo santista não se brincava...
Praça Mauá em 1905:
o casario cedeu lugar depois ao Palácio José Bonifácio, que abriga o Paço Municipal
Um monte de lenha - Na esquina de baixo, onde hoje está o novo
Paço Municipal, havia um estabelecimento de secos e molhados do Zé Botinha, um estimado comerciante português, e, à porta dele, lá estava uma
carrada de lenha miúda, tarolinhos roliços de cambuí, formando um monte na sarjeta, à espera de recolhimento na manhã seguinte.
Ao meio dos discursos, quando mais inflamado estava o "respeitável auditório", uma voz
qualquer, no meio da multidão, gritou:
- Qué...bra.a.a.a!...
Outra voz mais distante secundou:
- Viva o Zé Botinha!...
Era o mesmo que dizer: "Viva a lenha do Zé Botinha, o instrumento do quebra-quebra!"
E num abrir e fechar de olhos, aquelas centenas de tarolinhos pesados desapareceram nas mãos
do povo. Foi como um rastilho. Não ficou um lampião por quebrar, ali na praça, na Rua General Câmara, no Largo do Rosário
(hoje Praça Rui Barbosa), no Beco do Consulado, na Rua das Flores (hoje Amador Bueno), em todo
o centro da cidade... Só escaparam, mesmo, os lampiões da Santa Casa da Misericórdia. E a onda de gente exaltada, sempre
aos gritos de "Quebra! Quebra!", continuava a rodar pelas ruas e travessas, crescendo cada vez mais, como uma procissão diabólica.
O Corpo de Urbanos (força da polícia) se recolhera todo ao quartel, por ordem do Delegado,
para evitar mal maior, e talvez para dar mais força e mais razão ao povo.
Bonde santista puxado por mulas, em 1900
Foto: Coleção Allen Morrison, New York/EUA
Passava um bondinho vindo da Barra, e atrás dele vinham outros, e ao vê-los a multidão
ululou - "Qué...braaaa!" O primeiro bondinho foi atacado, desatrelado, arrastado para o Cais do Consulado e atirado ao
mar. Outro bonde - que se dirigia para a Barra, fazendo a viagem das 8 horas da noite - foi igualmente agredido e
afogado... E assim mais outros e outros mais, todos os que iam passando e que foram encontrados. Dois ou três foram quebrados e queimados.
Até trilhos foram arrancados, e nos chafarizes não ficou uma torneira para lembrança... foram arrancadas, dando assim livre curso à água.
Depois de concluída a destruição da cidade, o povo tomou rumo do
Boqueirão (mais de três quilômetros de marcha...), para a casa de Heyland, o gerente, a fim de lhe dar uma ensinadela. Heyland, porém, já
avisado do estouro, e vendo que na Índia brasileira havia sangue... e a população não era para brincadeiras... já se tinha passado de armas e
bagagens, com mulher e filhos, para a Fortaleza da Barra Grande...
Conta a tradição que a mulher de Heyland, apesar de protestante, sabedora do que ocorria,
fez uma promessa ao Senhor dos Passos, obrigando-se, caso não acontecesse nada ao marido, a iluminar com arcos de luz as principais ruas de Santos,
por onde passasse todos os anos a sua procissão tradicional.
Depois disso, durante muitos e muitos anos não houve falta de água em Santos, e, enquanto
Mr. Heyland esteve à testa da Companhia, embora contra a sua vontade, a promessa da mulher foi cumprida, passando o Senhor dos Passos a ter arcos de
gás na Rua General Câmara, na Rua e no Largo do Rosário e no Largo da Coroação, à passagem das suas famosas procissões.
Naquele tempo, o povo santista era de brio, de sangue nas guelras, não engolia
desaforo, vexame ou pouco caso, principalmente de estrangeiro.
Carlos Vitorino, testemunha ocular, conta o episódio acima em seu livro Reminiscências -
1875-1898 (páginas 56 a 68).
Lampião a gás no destaque desta foto da ampliação do Largo do Rosário,
atual Praça Rui Barbosa, em 1902
Como era - Em 17/1/1810 foi expedido regulamento para o
serviço de iluminação pública por meio de azeite de peixe, com 69 lampiões, número que foi caindo até chegar a 20 lamparinas. Em 16/3/1840, o
presidente da Província, desembargador Manoel Machado Neves, baixou regulamento aumentando para 60 lampiões de 4 luzes, ainda a óleo de peixe, mas
ainda assim só funcionando até as 20 horas, ao toque de recolher soado na Cadeia.
Uns 25 anos depois, o combustível foi substituído por petróleo, um
pouco melhor. Em 1871, os engenheiros Tomas Cócrane e Eduardo Everet Benet, junto com João Frederico Russel, além do abastecimento de água,
assinaram contrato para a iluminação da cidade a gás de hulha, obrigando-se a instalar "200 lampiões nas ruas e praças,
tendo cada combustor a intensidade de 9 velas e funcionando todas as noites, mesmo as de luar". A iluminação a gás em
Santos foi inaugurada em 7/9/1872.
Essa
iluminação se tornou tradicional em Santos, prevalecendo por mais de 30 anos, até a chegada da energia elétrica, testada primeiramente na Avenida
Conselheiro Nébias - onde, desde 16/8/1902, começaram a funcionar 12 lâmpadas alimentadas por dínamo. Em 7/1/1903, a Câmara julgou as propostas
apresentadas pela The City of Santos Improvements Ltd. e a vencedora Companhia Ferro Carril Santista sobre a iluminação elétrica naquela avenida.
Numa noite de sábado, em 15/8/1903, foi inaugurada na Av. Ana Costa
a iluminação pública elétrica, citando o jornal A Tribuna: "As lâmpadas colocadas à distância de 50 metros, no
percurso do ponto de bondes da Vila Matias à Rua Carvalho de Mendonça. A experiência deu ótimo resultado".
A usina elétrica ficava situada nas instalações da empresa de bondes na Vila Mathias.
Na noite de 14/9/1903, uma segunda-feira, também ocorria inauguração semelhante na Av.
Conselheiro Nébias. Registrava o mesmo jornal: "Os moradores da Av. Conselheiro Nébias foram surpreendidos com os
jorros de luz elétrica, cuja primeira experiência não estava anunciada. A surpresa não podia ser mais agradável, fazendo vir à porta das casas os
moradores daquela avenida, que não ocultavam seu contentamento". O jornal Diário de Santos também registrava, no
dia seguinte, ter sido "assaz satisfatório o resultado, porquanto as lâmpadas estiveram acesas das 19 às 21 horas,
projetando luz fixa e radiante".
Em janeiro de 1904, a Cia. Ferro Carril Santista foi adquirida pela City, que assumiu também
o serviço de eletricidade para iluminação residencial. A sede santista da City era na Praça dos Andradas, no mesmo lugar em que funcionaram depois
os escritórios das sucessoras responsáveis pelo fornecimento de energia elétrica à cidade. No dia 11/9/1944, foi removido do antigo Largo da
Imperatriz, atual Largo Dona Tereza Cristina, o último lampião a gás a funcionar em Santos.
Um dos primeiros cortes de energia elétrica domiciliar foi registrado apenas alguns meses
depois. A qualidade da eletricidade gerada era sofrível e causava protestos e aborrecimentos gerais. Tanto que o jornal A Tribuna publicou,
em 17/2/1904, o curioso anúncio: "Previne-se às pessoas que viram cortar a luz elétrica no prédio nº 39 da Rua XV de
Novembro, deixando a casa às escuras, que o fato foi por falta espontânea de pagamento, por questão do preço e pouca quantidade de luz".
O último lampião de gás funcionou até 1944 no Largo Tereza Cristina
Foto: História de Santos/Poliantéia Santista, de Francisco Martins dos Santos/Fernando Martins Lichti, vol.
3º, 1996, Ed. Caudex Ltda., S. Vicente/SP
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