Imagem: reprodução da página 22 do álbum de
2000
Os tempos românticos da Inglesa e a sua influência na velha Santos
Eu sou inimigo de datas. Nunca gostei delas. As datas congelam pedaços do tempo e me
perturbam. As datas pesam e eu acho que os pássaros nunca seriam capazes de voar se tivessem algum tipo de data na cabeça. Mas, a pedido de Laire
Giraud, estou escrevendo este prefácio sobre a SPR, a famosa Inglesa, para o seu excelente trabalho que aqui vai
impresso e não há como situá-la no tempo sem mencionar datas e épocas.
Santos, até a metade do século XIX, era um vasto mangue empesteado, e vier aqui seria
uma aventura infernal, mas como nós tínhamos um escoadouro marítimo que servia de embarcadouro, a permanência de pessoas por estes lados era
imperiosa. A produção do café paulista descia serra abaixo como podia,no lombo de mulas que vinham pelo Caminho de Lorena e
depois certamente seguiam a trilha aberta na serra pelo padre Anchieta e os antigos colonizadores portugueses.
Deveria haver algumas estalagens pelo caminho para
a troca dos animais e a acomodação dos tropeiros e quem se aventurasse numa viagem dessas nunca estaria certo de voltar ao ponto de partida, porque
os perigos eram imensos. E eu imagino os viajantes que se dirigiam a Santos se despedindo das famílias, que ficavam para trás acenando lenços e
rezando fervorosamente pela sua volta. Sair alguém do planalto paulista e chegar até Santos naqueles tempos era epopeia e os autores de tais
façanhas deveriam certamente se vangloriar delas pelo resto de suas vidas.
Mas ali por meados do século XIX, Irineu Evangelista de Souza, o nosso barão de Mauá,
já tinha pronto um estudo da viabilidade da construção de uma ferrovia descendo desafiadoramente a serra do Mar e chegar em Santos com toda a
segurança e rapidez.
Com a ajuda desse estudo, o engenheiro inglês Daniel Mackinson, soberbamente escorado
em capitais ingleses, lançou serra abaixo a malha de trilhos que alcançou Santos em 1867. Foi façanha soberba jogar poderosamente serra abaixo
aquela enfiada de vagões cheios de café e entregá-los junto aos navios em cerca de umas três horas.
Mas não foi só o café que a SPR nos trouxe. A SPR nos trouxe o requinte, o bom gosto e
a civilização. Santos tornou-se cidade civilizada através dos trens da SPR. Ali, nesse exato momento, deixamos de ser o capiau do mato, para
atingirmos o status de pessoa refinada.
Imagem: reprodução da página 23 do álbum de
2000
Era festa grande para garoto da década de 30 e 40 ficar postado junto às grades da
igreja do Valongo e ver chegar trem de São Paulo aos domingos de manhã. pessoas de casaca e gravata, de chapéu e de
bengala, acompanhadas de damas de vestido longo, desciam a Rua do Comércio até a Praça Rui Barbosa
para pegar o bonde 10. Outras eram engolidas pelo bonde 14 que as esperava pacientemente na estação.
E santista ir até São Paulo e conhecer a metrópole que tinha um ar parisiense virou
moda. Aquilo era um banho de civilização. Era um banho de civilização ver os bondes camarões, as mansões da Avenida
Paulista e estação da Luz. Havia um certo misticismo naquelas visões.
Eu devo ser o santista que mais viajou nos trens da Inglesa. De 1935 até 1941 subia e
descia a serra com minha mãe duas vezes por semana para ter sessões de massagem com um austríaco lá na Santa Casa perto do Largo do Arouche. Meu pai
era conferente da ferrovia e isso nos dava um passe gratuito em primeira classe com direito às vezes ao trem Cometa.
Eu conhecia todo o percurso como a palma da minha mão e vi muito sujeito valente
tremer e se borrar nas calças de medo quando o trem atravessava aqueles viadutos por cima de precipícios que pareciam não ter fundo. Os trens eram
puxados serra acima por cabos de aço amarrados a uma máquina chamada de locobreque, cuja única
função era brecar e parar o trem quando fosse necessário para saciar a sede daquela máquina infernal e valente.
Uma viagem de passeio a São Paulo era inesquecível para um garoto comum e correspondia
em termos de comoção interior ao que hoje seria uma viagem a Miami pela primeira vez. Os preparativos começavam com muita antecedência: preparava-se
um frango assado recheado de farofa, com azeitonas e pão. Havia pratos e talheres. Depois avisávamos todos os vizinhos para lhes dar água na boca e
saboreávamos a inveja e o espanto deles. Os garotos esperavam com ansiedade que o trem acabasse de subir a serra, porque comer enquanto o trem
estivesse na subida era muito difícil, porque a inclinação do vagão era grande e derrubava a comida dos pratos. O lugar da janela era disputado e
havia brigas terríveis para consegui-lo.
Mas o fim da década de 40 traria a Via Anchieta e a Via
Anchieta já era a morte anunciada dos trens da Inglesa. E numa noite do ano de 1948 eu vi através das grades do pátio do
ginásio do Carmo, dos padres carmelitas, que ficava na Rua Augusto Severo, um luxuoso ônibus do Expresso Brasileiro, uma
espécie de foguete importado que vinha descendo da Praça Mauá para ganhar a Praça da República.
Era um ônibus soberbo. Magnífico. Luxuoso. Mas naquela noite começaria a agonia lenta dos trens da heroica SPR, ferrovia que foi criando cidades e
civilização ao longo de seus trilhos mágicos.
Ferrovia que encantou os meninos de minha geração e cujos
trens ainda nos aparecem em sonhos transpondo as porteiras do Brás, rumo à Estação da Luz. Acordei de muito sonho tendo ainda fresca na memória a
imagem do trem Cometa encostado junto à plataforma da estação da Inglesa, ali no Largo Monte
Alegre, enquanto eu comia um chocolate suíço do bar dos Irmãos Gallo, aguardando a minha vez de entrar naquela carruagem frenética que dali a
pouco estaria voando ao longo dos mangues e das plantações de bananas do Cubatão até dar com os costados na
Raiz da Serra.
Nelson Salasar Marques
Professor, escritor, autor de Imagens de
Um Mundo Submerso, uma série de cinco volumes
Imagem: reprodução da página 24 do álbum de
2000 |