Os trens de passageiros estão entrando no desvio
Texto de Áureo de Carvalho
Fotos e ilustração do Arquivo
A Rede Ferroviária Federal vai suprimir, nos próximos
dias, mais um trem de passageiros de Santos a São Paulo e vice-versa, reduzindo a duas as viagens diárias, em cada sentido. Motivo: o baixo índice
de ocupação das composições que, dos 400 lugares oferecidos em cada viagem, menos de 100 são utilizados pelos passageiros, a maioria dos quais são
ferroviários ou seus familiares que moram ao longo do trajeto.
Diminuindo o número de trens, a estrada de ferro espera melhor distribuição dos
passageiros nos horários restantes, reduzindo dessa forma a ociosidade registrada em cada viagem.
É mais uma tentativa da ferrovia, que vai se somar a muitas outras que malograram,
todas com o sentido de recuperar ou atrair passageiros para os trens, que há trinta anos estão sofrendo esvaziamento paulatino.
A tentativa, embora não confessada oficialmente pela Rede, condiciona a permanência
dos horários aos resultados: se não se chegar ao número desejado, novos trens podem ser retirados progressivamente de circulação. Até se chegar à
extinção completa dos serviços, numa data ainda não fixada mas não muito distante, e que pode estar bem mais perto do que todos desejam. Afinal, a
quem serve a circulação dos trens, se as composições viajam vazias?
Parando na estação do tempo. Um minuto
Os trens de passageiros entre São Paulo e Santos não foram criados para atender à
demanda do transporte ligando os dois pólos: eles promoveram a própria demanda, oferecendo um serviço que só começou a se deteriorar nos anos 50.
Não existe nos arquivos da Rede Ferroviária Federal, que herdou por encampação todo o
acervo da São Paulo Railway, um documento preciso sobre a circulação dos primeiros trens unindo o Planalto à Baixada Santista. Talvez esse material
de arquivo tenha se perdido no grande incêndio que destruiu parte da Estação da Luz.
Mas os historiadores de Santos e de São Paulo contam que, no início do século XX, os
grandes homens de negócio do Planalto desciam a serra diariamente, de segunda a sexta-feira; viajavam da Capital para Santos pela manhã e
regressavam ao anoitecer, sempre pelos trens da São Paulo Railway, também conhecida por Inglesa.
Essas viagens diárias tinham fins comerciais, devido à movimentação do Porto de
Santos, e justificavam-se porque a cidade fundada por Braz Cubas era bastante insalubre, sofrendo epidemias periódicas. Financeiramente, as viagens
ofereciam compensação, porque em Santos e no porto (sempre o porto!) se realizavam grandes transações, notadamente na área do café. Santos, no
entender dos viajantes diários, era um excelente campo de trabalho, favorecendo grandes transações, mas não servia para morar.
A situação não se alterou muito rapidamente, depois que Saturnino de Brito começou a
sanear a metade santista da Ilha de São Vicente, construindo os canais de drenagem.
Por outro lado, a preferência pelo trem se manteve, mesmo quando as viagens
rodoviárias faziam as suas primeiras e tímidas tentativas de concorrência. Para enfrentá-la, a São Paulo Railway mandou vir da Inglaterra
moderníssimas e luxuosas composições diesel-elétricas, substituindo os trens a vapor, mais tarde conhecidos por maria-fumaça. As novas
composições, denominadas Cometa, Planeta e Estrela, marcaram o período áureo das viagens, cumprindo o trajeto São Paulo-Santos
em 100 minutos, cronometrados dentro da conhecida pontualidade britânica.
Já naquele tempo do trem Cometa e mesmo antes dele, os trens normais faziam o
mesmo percurso da Capital à Baixada em duas horas e quarenta minutos, sempre com carros de 1ª e 2ª classes, cobrando preços evidentemente
diferenciados. Só muitos anos depois é que a Estrada de Ferro Santos a Jundiaí (hoje Rede Ferroviária Federal) introduziu a classe única nas
viagens.
Para retratar um pouco a época dos trens tipo Cometa, a palavra dos
ferroviários parece a mais importante. Eles contam que aquelas composições, num termo de comparação, eram superiores ao trem húngaro atual,
oferecendo por outro lado o mesmo luxo e conforto, parecendo avançadas demais para a época em que chegaram ao Brasil. E garantem, não escondendo as
lágrimas, que se a ferrovia tivesse conservado o mesmo padrão de serviço dos trens Cometa, o passageiro nunca trocaria a ferrovia pelo
transporte rodoviário.
Nova parada do trem: Rede explica o atraso
Se outros trens forem suprimidos nas viagens Santos-São Paulo, chegando à extinção do
serviço, a Rede Ferroviária Federal acredita que a população, de um modo geral, não terá problemas maiores para viajar: existem muitas linhas de
ônibus cobrindo o mesmo trajeto, em menos tempo de viagem, de cinco em cinco minutos de freqüência e cobrando tarifas basicamente iguais ao trem.
A ferrovia explica que está com todas as atenções (e recursos) voltados ao transporte
de cargas, atendendo assim às exigências do próprio desenvolvimento do Brasil. Para a Rede, atualmente as cargas ganharam condição preferencial nas
linhas existentes, sobrepondo-se ao transporte de passageiros, por dois motivos:
- a estrada de ferro absorve, num só trem, maior volume de cargas que o transporte
rodoviário (caminhões) e com isso há menos consumo de derivados de petróleo;
- os trens de passageiros são deficitários e exigem uma estrutura de atendimento que
os torna quase proibitivos.
Fazendo uma comparação entre passageiros e cargas, a ferrovia da União lembra, como
exemplo, que um vagão de carga basicamente não tem horário fixado para partir ou chegar, pode ficar retido numa estação ou desvio horas seguidas,
sem reclamar da demora. Com o de passageiro, o horário tem que ser respeitado, na partida e na chegada, e o trem não pode ser retirado durante a
viagem porque, entre outras necessidades, o viajante precisa alimentar-se.
Por outro lado, a Rede lembra que as linhas existentes entre São Paulo e Santos estão
praticamente saturadas. No Planalto, entre a Estação da Luz e Paranapiacaba, circulam os trens de subúrbio, atendendo a milhares de pessoas que não
possuem outro meio de transporte. Na Serra do Mar, de Paranapiacaba a Piaçagüera, o sistema cremalheira-aderência permite a passagem de um trem em
cada sentido de 25 em 25 minutos, com até 500 toneladas de carga, e já existe em tráfego um trem nesse trecho, com mais de 400 toneladas, de 30 em
30 minutos, prestes, portanto, ao ponto máximo da capacidade.
Entre Santos e Piaçagüera, trecho não eletrificado, as locomotivas a diesel consomem
quatro litros do combustível por quilômetro percorrido nas duas linhas existentes, um custo elevado que os fretes de carga cobrem mas registram
déficit no trem de passageiros que viaja quase vazio: a mesma locomotiva que puxa um trem de carga com 50 vagões carregados é empregada num trem de
passageiros com quatro vagões, ocupados por 80 passageiros. Por último, a Rede justifica a preferência de cargas na Serra do Mar e na Baixada devido
às necessidades de movimentação do parque industrial cubatense (e a Cosipa principalmente) e o Porto de Santos.
Há poucos viajantes e muitas as reclamações
Nenhum passageiro de trens entende, numa época de economia forçada de derivados de
petróleo, a supressão dos horários. E ninguém vai aceitar a supressão dos serviços.
Muitos vão perguntar por que a ferrovia mantém até agora, em cada estação, uma
estrutura igual à dos anos 50, com o chefe da estação, chefe disto e chefe daquilo. Lembrarão, por exemplo, que nos anos 50 mais de oito mil
passageiros viajavam de Santos a São Paulo e outros tantos no sentido inverso, pelos trens; hoje, menos de 100 passageiros são vistos nos trens, mas
os chefes de estação, os chefes de linha e outros chefes continuam.
Outros podem sugerir à ferrovia um sistema menos complexo na venda de bilhetes e no
embarque, reduzindo os custos de mão-de-obra. Como, por exemplo, a cobrança de passagens no próprio trem, e uma simples catraca aberta na plataforma
de embarque, para controle simples da ferrovia e evitar possível evasão de rendas. Nesse caso, o próprio cobrador do trem seria o responsável pela
composição, cabendo a ele dar o sinal de partida em cada estação, quando tudo estiver OK.
Mas há também os que vão reivindicar mais trens e horários, para concorrer na mesma
faixa do transporte rodoviário. E outros irão repetir queixas anteriores, contra a sujeira dos trens, as janelas sem vidros, os sanitários sem água
etc.
Ainda outros vão reclamar contra a localização da estação ferroviária de Santos,
dizendo que o Largo Marquês de Monte Alegre "fica fora de mão", longe do centro comercial e com pouco transporte urbano servindo à gare. Nesse
trecho, segundo a tônica das queixas, perambulam malandros e prostitutas, à noite e também durante o dia.
Por último, as reclamações serão voltadas para os horários, porque os trens de Santos
e de São Paulo já estão partindo com atraso, que aumenta quando as composições desenvolvem baixa velocidade em trechos de linhas que parecem livres
e desimpedidas. Esses reclamantes vão lembrar que no tempo da SPR os trens sempre partiam e chegavam no horário; em cada estação havia um quadro de
avisos da ferrovia, notificando sobre possíveis atrasos nos trens, quase um pedido de desculpas ao usuário. E lembrarão, finalmente, que nossos avós
já diziam que o trem se espera na estação: quem estiver no horário, embarca e viaja; quem não estiver, sobra ou fica. Parece que no
mundo inteiro é assim. Por que no Brasil vai ser diferente?
A viagem ao passado começa pelo Valongo
Milhares de santistas e forasteiros cruzam diariamente o Largo
Marquês de Monte Alegre, mas poucos conhecem internamente a gare da Rede Ferroviária Federal: é maior por dentro que
por fora.
A fachada resistiu às restaurações e conserva ainda toda a beleza da arquitetura
vitoriana, uma herança das mais valiosas, que os engenheiros ingleses - os mesmos que construíram a estrada de ferro na segunda metade do século
passado (N.E.: século XIX) - ofereceram a Santos.
Ao entrar na gare, o santista de hoje vai se surpreender com o amplo saguão interno,
onde ficam as bilheterias e o acesso propriamente dito às plataformas de embarque. Mas não há muito tempo para detalhar visualmente o local enorme
porque o trem já encostou na plataforma e recebe os primeiros passageiros. Quatro carros de aço formam o trem, que será levado até Piaçagüera por
uma locomotiva diesel-elétrica. Cada carro tem lugar para 100 passageiros sentados, além de bastante espaço no corredor central e entre as poltronas
triplas. No assento e encosto estofados notam-se as habilidades manuais dos vândalos no manejo de canivetes e outros instrumentos cortantes.
Tudo isso chega a ser irrelevante porque uma campainha toca e a locomotiva apita,
movimentando vagarosamente o trem, que ganha velocidade à medida que avança pelo pátio ferroviário, sempre congestionado de vagões de carga. No
minuto seguinte, o trem já está passando ao lado do Largo da Saudade e deixando para trás o viaduto do Chico de Paula, que não é tão feio como
parece visto por outro ângulo.
Os minutos seguintes da viagem são para a travessia do Rio Casqueiro, numa curva que
só termina quando o trem passa ao largo de um aglomerado de palafitas com o nome poético de Vila dos Pescadores. Aí já estamos em Cubatão, cidade
administrativamente enriquecida pelas chaminés industriais, que empobrecem cada vez mais seus insistentes habitantes. Adiante, outra curva, mais
palafitas sobre os terrenos alagadiços e chega-se à estação de Cubatão.
A parada é curta, só um minuto, e novamente o trem se põe em marcha, agora rumo a
Piaçagüera, que chega logo, depois de vencer uma grande paisagem de bananais. Mas, para alcançar Piaçagüera, onde o azul do céu agora é cor de
fuligem, o trem é obrigado a desviar-se de algumas chaminés de fábricas e quase colide com os altos-fornos da
Cosipa antes de encostar à plataforma da estação. Nesse local, em dias de sol, o passageiro fica sabendo por que tanto se fala da
poluição atmosférica e vai entender por que os pardais que ainda existem na região são pretos.
Na estação de Piaçagüera também a permanência é curta, tempo suficiente para que a
sinalização ferroviária dê linha livre para o trem deixar a plataforma e rumar à Raiz da Serra. Ali começa a cremalheira,
um sistema de rodas dentadas que vai levar o trem ao Planalto, subindo cerca de 900 metros nos onze quilômetros seguintes. Se for um dia de sol, há
panoramas belíssimos para serem descobertos, muita coisa realmente para ser admirada em 25 minutos apenas. Nem dá para notar que a locomotiva diesel
ficou na Raiz da Serra e agora o sistema de tração é eletrificado, com duas locomotivas.
Num instante chega-se a Paranapiacaba (Alto da Serra) e agora as atenções se voltam à
beleza da estação onde o trem encosta, dá adeus às locomotivas da cremalheira e, com os próprios recursos das alavancas retráteis, liga-se à rede do
sistema eletrificado que só vai terminar na Estação da Luz.
A viagem, desse ponto em diante, se modifica até na paisagem: é mais silenciosa e mais
rápida. Passa-se por Campo Grande, Rio Grande, Ribeirão Pires e Mauá, antes do adensamento de Santo André. É nesse trecho que o passageiro que veio
de Santos fica sabendo o verdadeiro significado do adjetivo Grande ABC, cuja grandeza se funde à periferia de São Paulo, a partir da Moóca.
A viagem está chegando ao fim, e justamente se torna cansativa nos minutos finais,
onde nada há para ver exceto a magnitude interna da gare da Luz, também maior por dentro que por fora. Causa espanto e admiração o que a engenharia
inglesa implantou na área, construindo há 80 anos, ou mais (N.E.:em relação à data da matéria, portanto no início do
século XX), um complexo ferroviário quase subterrâneo, escondido da grande cidade que crescia ao redor da Praça da Luz.
Quando o trem pára, há uma grande escadaria para ser vencida, que só termina no mundo
exterior da São Paulo que todos conhecem. É o fim da viagem que vai ser extinta, tão bonita que dá vontade de ser repetida logo em seguida. Antes
que acabe.
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