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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM...
1860 - por Augusto Emílio Zaluar

"A vida no entanto é aqui muito ativa, o comércio próspero e florescente..."

Ao longo dos séculos, as povoações se transformam, vão se adaptando às novas condições e necessidades de vida, perdem e ganham características, crescem ou ficam estagnadas conforme as mudanças econômicas, políticas, culturais, sociais. Artistas, fotógrafos e pesquisadores captam instantes da vida, que ajudam a entender como ela era então.

Na obra Peregrinação pela Província de S. Paulo, Augusto Emílio Zaluar apresenta um panorama de Santos em 1860, que foi transcrito 113 anos depois (com ortografia atualizada e notas explicativas entre parêntesis) no Almanaque da Baixada Santista - 1973, do falecido pesquisador santista Olao Rodrigues (produzido pela editora Indicador Turístico de Santos, de Bandeira Júnior, Santos/SP, 1973):


"Porto de Santos em 1879", óleo sobre tela produzido em 1922 por Benedito Calixto
Imagem enviada a Novo Milênio por professores da USP

Santos em 1860

Augusto Emílio Zaluar
(in Peregrinação pela Província de S. Paulo)

Para quem sai de São Paulo pela estrada de Santos, depois de haver deixado o pitoresco sítio da Glória, célebre por uma casa que se vê distante do caminho e pelo eco que aí se desafia nas belas noites de luar, o primeiro objeto digno de menção que encontra é, a pouco mais de uma légua da cidade, um lugar estéril, abandonado e ermo, onde crescem algumas ervas rasteiras e arbustos enfezados, por entre os quais serpeia um triste arroio, e onde imperam a solidão e o silêncio. Este lugar chama-se campina do Ipiranga! Não há um monumento, uma coluna, uma pedra, uma estaca ao menos que indique ao passante ser este o átrio onde se consumou o fato mais brilhante da história nacional, e onde se gravou a data imortal da independência de um povo!

Quando passamos neste sítio, lembram-nos da soberba apóstrofe de Garret no seu grande poema Camões, e seguimos nosso caminho repetindo mentalmente estes dois versos:

"Nem o humilde lugar onde repousam
As cinzas de Camões conhece o Luxo!"

Pouco mais adiante de Ipiranga encontra-se uma belíssima figueira brava, cujos galhos, bacejando em sanefas de verdura, formam um dossel em toda a largura da estrada. É este o sítio das despedidas saudosas. Aqui vêm abraçar-se e jurar eterna amizade aqueles que se separam, para em opostas direções da estrada seguirem depois, e quantas vezes na vida, um caminho e um destino também diversos.

É conhecida esta figueira pelo poético nome de Árvore das Lágrimas.

Ao lado desta árvore fica um rancho de tropeiros, onde também se abrigam e descansam muitas vezes as pessoas que transitam por estas paragens.

Continuando a seguir pela estrada de Santos, encontram-se os seguintes pousos: São Bernardo, que é uma pequena povoação adornada de uma igreja; o Ponto Alto, o Rio Grande, Caveiras, o Zanzalar, Rio das Pedras, e finalmente o Alto da Serra e a Cachoeira [1].

Já se vê que não faltam pousadas nessa estrada, que é uma das mais povoadas e a de mais trânsito que existe na província de São Paulo.

Antes de chegar ao alto da serra começa a sentir-se um efeito maravilhoso da luz e do ar, que vem como em lampejos dos confins do horizonte, e que nos anuncia a proximidade do oceano, que há tanto tempo não víamos, peregrinando no seio das florestas, ou admirando às vezes o curso de rios gigantescos ou o fio cristalino das águas de um arroio! Aspiramos portanto com sofreguidão o ar puro da serra de Paranapiacaba, que se ergue como um colosso de granito às portas do mar, e parece repetiremos em sua majestade imponente as estrofes dessa magnífica ode que soube inspirar a um dos nossos melhores poetas, o sr. Dr. João Cardoso de Menezes e Souza.

Da serra do Cubatão descobre-se um dos panoramas mais soberbos que se podem oferecer aos olhos do viajante! Os plainos imensos e azulados do oceano traduzem apenas a sua imobilidade pelas franjas de branca espuma com que as ondas bordam as curvas arenosas das praias. As ilhas, os canais, os aterrados, e lá ao longe as torres das igrejas e as paredes alvas das casas da cidade de Santos, ilha cercada pelo Cubatão e pelo Casqueiro, dois rios que deságuam na barra de São Vicente, compõem uma paisagem admirável, cuja impressão se grava por muito tempo na memória, como a reminiscência agradável de um sonho da fantasia.

É um desses painéis sublimes que parece a natureza haver traçado para mostrar ao homem a grandeza de suas criações e amesquinhá-lo em presença deste gigantesco paralelo!


Tropa no Caminho do Mar
Imagem: Thomas Ender (1827)/acervo fotográfico/DIM/PMSP

A descida da serra é um declive bastante rápido, e os caminhos mal conservados ainda mais dificultam a jornada. O trânsito dos passageiros e das tropas é aqui continuado e incessante. Tudo concorre para tornar muitas vezes até perigosa a estrada, ou antes os trilhos medonhos desta serra.

Apesar de tantas vezes melhorado, e de tantos anos e mesmo séculos decorridos, ainda faz lembrar a seguinte descrição de Simão de Vasconcelos, descrevendo a ascenção do Cubatão, quando os primeiros povoadores buscaram outra senda para evitar o encontro arriscado dos indígenas, dirigindo-se em suas excursões aos campos férteis de Piratininga.

"O mais do espaço não é caminhar, diz ele, é trepar de pés e mãos, aferrados às raízes das árvores, e por entre quebradas tais e tais despenhadeiros, que confesso de mim que a primeira vez que passei por aqui me tremeram as carnes, olhando para baixo. A profundeza dos vales é espantosa; a diversidade dos montes uns sobre os outros parece tirar a esperança de chegar ao fim; quando cuidais que chegais ao cume de um, achai-vos ao pé de outro não menor; e é isto na parte já trilhada e escolhida. Verdade é que recompensava eu o trabalho desta subida de quando em quando, porque, assentado sobre um daqueles penedos, donde via o mais alto cume, lançando os olhos para baixo, me parecia que olhava do céu da lua e que via todo o globo da terra posto debaixo de meus pés, e com notável formosura, pela variedade de vistas, do mar, da terra, dos campos, dos bosques e serranias, tudo vário e sobremaneira aprazível".

"Se se houvera de medir o grande diâmetro desta serra, houvéramos de achar melhor de oito léguas; porque, suposto que vai fazendo em algumas paragens algumas chãs a modo de taboleiros, sempre vai subindo, e tornando a mesma aspereza, ainda que em nome diversa, chamada em uma das paragens Praná Piacá Miri, e logo em outra Cabaru Paramgaba; e tudo é a mesma serrania. E finalmente vai subindo sempre até chegar ao raso dos campos, e à segunda região do ar, e onde corre tão delgado que parece se não podem fartar os que de novo vão a ela".

Chegando à base da serra, onde existe uma barreira e se cobra um imposto por animal para conservação (!) do caminho, entra-se em um pequeno arraial, e depois nesse imenso aterrado que prende os últimos limites do grande chapeirão da cordilheira do mar aos terrenos baixos do litoral, atravessando um caminho desabrigado e ingrato, exposto aos rigores do sol, e onde se observa apenas digno de atenção as duas grandes pontes do Cubatão e do Casqueiro.

Depois de duas horas e meia de marcha por esta monótona estrada, entra-se finalmente na cidade de Santos, uma das mais antigas, ou, para melhor dizer, das primeiras povoações do Brasil.

As ruas são pela maior parte largas e bem calçadas, adornadas de alguns prédios elegantes e de muitos edifícios notáveis, o que, ainda junto ao grande tráfego que anima a população, não tira ao lugar um aspecto sombrio e pesado, para o que muito concorre a natureza do clima e o ar quente que se aí respira, tão outro do que gozávamos nas paragens colocadas acima da serra.

A vida no entanto é aqui muito ativa, o comércio próspero e florescente, agradável e franco em geral o trato de seus habitantes.

Esta cidade marítima e mercantil teve por seus primeiros povoadores, segundo Milliet, Pascoal Fernandes e Domingos Pires, que abriram caminho para as matas pela Vila de São Vicente, e ali edificaram suas moradias, encantados com a excelente água que encontraram naqueles sítios. Passado pouco tempo, no decurso do ano de 1543, o capitão Braz Cubas, representante do donatário Martim Afonso de Souza, mandou construir o primeiro hospital do Brasil, e em 1546 impetrou o título de vila para aquele porto, que veio a ser o da vila de São Vicente, por isso que nela aportavam com facilidade os barcos que não podiam subir pelo braço do mar chamado rio de São Vicente. Braz Cubas, um dos benfeitores da humanidade, faleceu em 1592, depois de haver tido a consolação de ver prosperar aquela nova vila, e foi enterrado na capela do hospital de que era fundador.

No século XVIII, prossegue ainda o mesmo autor, foi posta a vila de Santos em estado de sítio pelos holandeses e pelos ingleses.

Foi pátria de Alexandre de Gusmão e de José Bonifácio de Andrada e Silva, um dos mais venerandos patriarcas da independência do Brasil. Podem contar-se estes, sem dúvida, como os títulos mais importantes de sua glória.


Igreja do Carmo, Pelourinho e Arsenal de Marinha, em quadro de Benedito Calixto
Reprodução: Benedito Calixto - Um pintor à beira-mar - A painter by the sea,
edição da Fundação Pinacoteca Benedicto Calixto, agosto de 2002, Santos/SP

Um dos principais templos que avista quem entra em Santos é a Igreja do Carmo, onde está ereta a venerável Ordem Terceira, em capela separada, à esquerda do convento. Aqui existe riquíssima imagem do Senhor dos Passos, e três altares laterais, cujos relevos e entalhes parecem datar de épocas remotas.

A este templo segue-se o convento de Santo Antônio, onde também está ereta a venerável Ordem Terceira de São Francisco, e cujo altar-mor é de entalhe e representa baixos-relevos de madeira, obra também de data antiga.

O mosteiro de São Bento é uma construção de caráter regular, edificada na aba de uma montanha e sobre uma pequena colina.

A igreja matriz é um templo espaçoso e colocado em um dos melhores largos da cidade, perto de todo o movimento do porto e ao lado das repartições da alfândega e do correio.

Há ainda em Santos a igreja do Rosário, a Santa Casa de Misericórdia e sua igreja, que é a segunda que se construiu nesta cidade, pois da anterior, que foi a primeira que se edificou no Brasil, já nem sequer existem vestígios. Temos depois a igreja Maria José, a capelinha da Graça, pertencente ao convento do Carmo, e finalmente N. S. do Monte Serrat, onde está o telégrafo, e donde se domina uma vista soberba, pois além da cidade toda, descobre-se o mar largo a perder-se num horizonte infinito.

Entre os estabelecimentos públicos de Santos devemos enumerar a alfândega, a coletoria, o consulado, o arsenal, o forte e o quartel, o trem, a cadeia velha, que se acha em péssimo estado, e a nova, por concluir, edifício de largas dimensões e solidez, em uma bela praça, mas encobrindo totalmente a fachada da igreja da Misericórdia. Tudo isto são construções importantes, bem como o matadouro e o cemitério, ambos arredados da povoação.

Entre as indústrias locais devemos citar em primeiro lugar uma fábrica de cortumes, movida a vapor, estabelecida no lugar denominado Vila Nova e pertencente a Henrique Porchat. Há em Santos uma outra fábrica também de cortumes, propriedade de João Monte Bastos, porém não a vapor e mais pequena que a precedente.

Do outro lado da espécie de baía que forma o porto está situada a magnífica olaria de Santa Rita, em frente da cidade. Não nos deve escapar mencionar aqui, visto havermos falado nos negócios públicos de Santos, a grande ponte de ferro flutuante da alfândega, obra de muita solidez e utilidade, mandada construir por conta do governo geral!

Em Santos há uma porção de chafarizes, entre os quais lembramos a decantada Fonte de Itororó, celebrada em um soneto pelo conselheiro Antônio Carlos de Andrade Machado em 1823, quando Santos ainda era Vila.

No largo da Misericórdia está edificado o teatro, que é pequeno, mas agradável, e onde já representaram Furtado Coelho e Joaquim Nabuco.

A população desta comarca é orçada pelo sr. Machado de Oliveira em 32.500 habitantes.

A sua cultura principal é café, arroz, chá e cana. Visto por este porto se fazer uma grande parte da exportação dos produtos agrícolas do interior, existe aqui um grande número de consignatários de café, exportadores para o estrangeiro, e uma casa bancária de Mauá & Cia., que tem prestado muitos serviços ao comércio.

Alguns bons hotéis, poucos ranchos oferecem as suas comodidades aos viajantes e passageiros que a todo momento estão desembarcando de navios surtos no porto, ou descendo da serra, e aqui afluem a tratar de seus negócios, dando à localidade movimento, animação e continuado interesse.

O passeio mais predileto, não só dos moradores como dos que visitam esta cidade, é a pitoresca praia da Barra. Lindas chácaras e agradáveis casas de campo bordam, em frente ao mar, a deliciosa curva deste risonho arraial, cujos chão é compacto e ressonante, como se caminhássemos sobre uma abóboda de granito.

O oceano espraia-se a perder de vista no horizonte, ora manso e tranqüilo, beijando as ribas alpestres, ora irritado e furioso, quebrando os vagalhões espumantes sobre os fraguedos e os alcantís marinhos que guardam e defendem as encostas das montanhas.

Ao cabo de três léguas, caminhando sempre pela borda do mar, encontra-se a antiga povoação de São Vicente, lugar onde se estabeleceram os descobridores quando os galeões de Martim Afonso aproaram às raias de Buritioga. A vila de São Vicente está hoje voltada ao abandono e quase reduzida a ruínas. Santos absorveu São Vicente.

Pelo que levamos dito já pode fazer-se uma idéia aproximada da importância do primeiro porto marítimo de São Paulo; acrescentando porém a isto o grande impulso que lhe vai dar a estrada de ferro [2] em construção, cujo fim é ligar este ponto à capital da província, estendendo-se talvez o seu traçado a Jundiaí e Campinas, fácil é augurar um lisonjeiro futuro a esta próspera e ativa povoação.


Topografia do porto em 1868
Detalhe de mapa incluído no Atlas do Império do Brazil,
editado no Rio de Janeiro em 1868 por Cândido Mendes

NOTAS:

[1] Em outro trecho da narrativa o autor faz interessante descrição das estalagens da época: "Tudo é arbitrário nestas estalagens de roça, os cômodos, e o sustento, o serviço e o preço; tudo enfim depende do capricho momentâneo do chefe da casa. Pagar ou deixar hipotecados animais, bagagens, e até pagens, se o cidadão não está munido para esta dilapidação atroz, é a única alternativa que se lhe oferece. Um almoço de estalagem compõe-se ordinariamente do seguinte: arroz, feijão, carne de porco, farinha e vinho; e quando o viajante se trata, acrescenta-se a esta lista uma galinha ensopada e um prato de ovos estrelados. O jantar e a ceia são moldados pelo mesmo teor. A escala do preço não depende da variedade de iguarias, porém do tratamento do hóspede e do asseio da toalha; e por isso pode variar entre dez (mil réis) e cem (mil réis)"...

[2] Trata-se da Saint Paul Railway Co., hoje Estrada de Ferro Santos-Jundiaí.