Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0102z14.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 09/03/04 10:03:52
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - ESTRADAS
Mata Atlântica e os caminhos na serra (1)

No livrete Notícias do Mar & Mata Atlântica, publicado em novembro de 1994 pela Editora Segmento Ltda. como projeto da Secretaria dos Negócios dos Transportes do Estado de São Paulo (exemplar gentilmente cedido a Novo Milênio pela professora Maristela Craveiro Santoro, de Santos), foi contada a história dos caminhos da Serra do Mar na região entre Santos e São Paulo e sua influência na economia e sociedade paulista:

Paisagem de ontem: Tropa no Caminho do Mar
Imagem: Thomas Ender (1827)/acervo fotográfico/DIM/PMSP - publicada com o texto

"O mais do espaço não é caminhar, é trepar de pés e mãos, aferrados às raízes das árvores, e por entre quebradas tais e quais despenhadeiros, que confesso de mim, que a primeira vez que passei por aqui, me tremeram as carnes, olhando para baixo. A profundeza dos vales é espantosa: a diversidade dos montes uns sobre outros, parece que tira a esperança de chegar ao fim: quando cuidais que chegais ao cume de um, achai-vos ao pé de outro não menor: e é isto na parte já trilhada e escolhida. Verdade é que recompensava eu o trabalho desta subida de quando em quando; porque assentado sobre um daqueles penedos, donde via o mais alto cume, lançando os olhos para baixo, me parecia que olhava do céu da lua e que via todo o globo da terra posto de baixo de meus pés: e com notável formosura, pela variedade de vistas, do mar, da terra, dos campos, dos bosques, e serranias, tudo variado, e sobremaneira aprazível".

Era assim que o padre Simão de Vasconcelos, em 1656, descrevia o Caminho do Padre José, a primeira "estrada" construída pelos colonizadores portugueses para se viajar com segurança do litoral ao planalto paulista: opção à antiga trilha dos índios Tupiniquins.

Padre José, no caso, era José de Anchieta, fundador de São Paulo. Reza a lenda que o jesuíta foi encarregado por Mem de Sá de buscar um novo caminho de transposição da Serra do Mar, para substituir as viagens pela trilha original que vivia infestada de índios Tamoios, inimigos figadais dos portugueses.

De qualquer forma, mesmo que não tenha sido Anchieta a construí-lo, o nome do caminho relaciona-se aos primórdios de seu aproveitamento pelos padres jesuítas. A trilha dos portugueses utilizava a margem esquerda do rio Perequê a partir do porto das Armadias no rio Cubatão. No planalto, desde o Ponto Alto, servia-se do caminho tupiniquim, mas antes cruzava as cabeceiras do rio das Pedras e os altos vales dos rios Pequeno e Grande.


Paisagem de hoje: dutos de água da Henry Borden
Foto: Tchô Moioli - publicada com o texto

Rotas de progresso

Quem percorre hoje qualquer uma das rodovias ou ferrovias que ligam o litoral ao planalto, especialmente a Imigrantes, não faz a mais remota idéia das dificuldades que os primeiros colonizadores enfrentavam para transpor a Serra do Mar. Especialmente nos três primeiros séculos de colonização, essa viagem era uma verdadeira aventura.

Quando os portugueses aqui chegaram, a Serra do Mar era um manto contínuo de vegetação, quase intocada pela mão do homem. Não existiam a Imigrantes, a Via Anchieta, os tubulões das refinarias de petróleo, as estradas de ferro, a Estrada Velha do Mar, os grandes dutos que levam água da represa Billings para mover as turbinas da usina Henry Borden e muito menos as feridas gravadas na mata como conseqüência do ar poluído que o complexo industrial de Cubatão emitiu por dezenas de anos.

A paisagem era de um paraíso com flora e fauna variadíssimas, espécies que pela sua beleza, e não raro pelo exótico, surpreendiam o colonizador. No Sul do Brasil, antes de Pedro Álvares Cabral, uma extensa rede de caminhos permitia a comunicação entre as inúmeras tribos que habitavam a região. As "estradas" dos gentios atingiam vários pontos do litoral e o mais longínquo interior do país. O tronco desse primitivo sistema era uma grande via ligando as tribos da nação Guarani, da bacia do Paraguai, com a tribo dos Patos, do litoral de Santa Catarina, com os Carijós de Iguape e Cananéia e com as tribos de Piratininga e do litoral próximo.

A primeira trilha utilizada pelos colonizadores para atingir os Campos de Piratininga foi a dos Tupiniquins, percorrida pelo português João Ramalho para chegar ao planalto e aí assentar armas e bagagens como agregado da tribo dos Guaianazes, depois de se casar com uma das filhas do cacique Tibiriçá.

Ficou onde a trilha desembocava no campo, na altura da atual cidade de Santo André. Daí o nome de Borda-do-Campo dado à povoação que em 1553 Tomé de Souza (primeiro governador-geral do Brasil) transformou em vila.

A trilha partia de Piaçagüera, subia pelo vale do rio Moji e seguia à esquerda, junto à Serra do Meio, atravessando o rio Grande antes da garganta do Botujuru, já nas colinas do planalto. Martim Afonso de Souza subiu por esse caminho para visitar os Campos de Piratininga e depois dele, levado por João Ramalho, o padre Manoel da Nóbrega, para escolher o local onde seria fundado o colégio jesuíta que originou São Paulo. A partir de 1560, por ordem de Mem de Sá, a trilha dos Tupiniquins foi abandonada.


Ilustração: Elena Marini - reprodução das páginas

Até mesmo nesta terra tão generosa, que os primeiros cronistas não cansaram de elogiar, era preciso escolher com cuidado o sítio para a fundação das vilas. Foi na altura da Capitania de São Paulo, na latitude de 24º, partindo de São Vicente, que os colonizadores pela primeira vez subiram ao planalto e dirigiram-se para o interior.

São várias as razões geográficas que explicam esse impulso a partir dos núcleos de colonização da ilha de São Vicente. Primeiro, o estreitamento da faixa costeira. Perto de São Vicente e de Santos o mar não dista mais do que quinze quilômetros da base da serra. Esse acanhado espaço era quase inaproveitável, com terrenos baixos, mangues e pântanos imprestáveis para a agricultura e insalubres.

O planalto, ao contrário, apresentava condições naturais muito mais favoráveis ao povoamento e numerosas tribos indígenas supriam os colonos com farta mão-de-obra. Em toda a linha da barreira natural da Serra do Mar, é justamente a ilha de São Vicente que oferece maior facilidade de acesso ao planalto. Os índios, bem antes dos portugueses, usavam a região como passagem e parada obrigatória nos seus deslocamentos periódicos.


Ilustração publicada com o texto

Escolhidos direção e sentido, os colonizadores rumaram para onde hoje fica a capital do estado. Primeiro chegaram à imensa clareira natural da floresta, os Campos de Piratininga. Depois, pelas mãos dos jesuítas, caminharam em direção ao que é hoje o Pátio do Colégio e aí começaram a formar uma aldeia em esplêndida posição estratégica.

O sítio, no alto de uma colina, era naturalmente defendido por escarpas abruptas e acessível apenas por um dos seus lados. Também era o centro do sistema hidrográfico regional, com abundância de peixes e permanente abastecimento d'água para o gado. Os jesuítas fundaram a cidade num ponto onde os rios, como o Tietê, Pinheiros e Tamanduateí, irradiavam em quase todas as direções. O desenvolvimento ímpar dessa vila promoveu a influência que São Paulo até hoje exerce sobre as demais cidades do estado.


Pátio do Colégio, marco da fundação de São Paulo
Foto: Tchô Moioli/Integração Natureza - publicada com o texto

Mas nem sempre foi assim. As dificuldades de transposição da serra também promoveram o isolamento em que o planalto paulista viveu durante quase todo o período colonial, criando para as regiões de "serra acima" uma configuração sócio-econômica toda especial dentro da comunidade brasileira.

Na frase do historiador Alfredo Ellis Júnior, "o planalto de Piratininga viveu sempre ensimesmado", dando à sociedade que ali habitava características econômicas, psicológicas, étnicas e sociais próprias; criando um espírito original e independente da metrópole, muito diferente das regiões nordestinas, onde tudo transpirava os humores do reino português.

Enquanto no Nordeste predominava a grande propriedade açucareira com produção voltada para o mercado externo, no planalto paulista prevalecia a pequena propriedade, a agricultura de subsistência, a policultura, o aprisionamento dos indígenas, a expansão geográfica, o pouco lustre de sua vida cultural, o nomadismo a que se dedicaram os bandeirantes.

Eram marcas tão fortes que alguns autores chegam a falar numa espécie de "indianização" da Paulistânia refletida no hábito de dormir em rede, nas artes da caça e da pesca e no fato da própria língua Tupi ser tão falada em São Paulo quanto a portuguesa.


Final do século XVIII, em São Paulo:
produção de açúcar com mão-de-obra de escravos africanos
Foto: Editora Ática - publicada com o texto

Leva para a página seguinte da série