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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
O bispo que ganhou um porto

D. Mateus, ao desembarcar em Santos, teve seu cargo associado ao lugar: e o antigo Porto das Canoas passou a ser conhecido como Porto do Bispo

São razões pequeninas, às vezes, as que decidem o surgimento de um topônimo. O fato de alguém morar ali, o formato da área, ou então algum fato ali ocorrido. E assim foi com o primitivo Porto das Canoas, cuja denominação óbvia foi trocada por outra que remete à memória dos santistas: Porto do Bispo. E assim ficou até desaparecer, com a criação do porto organizado de Santos e o aterro de um rio que passava no meio do atual Largo Marquês de Monte Alegre, no Valongo.

Sobre o tema, dissertou o pesquisador Costa e Silva Sobrinho, em meio à sua extensa série Santos Noutros Tempos, neste artigo (que depois seria incluído na sua obra Romagem pela Terra dos Andradas) publicado no jornal santista A Tribuna, página 19 (capa do segundo caderno) da edição de 23 de novembro de 1952 (ortografia atualizada nesta transcrição):


Imagem: reprodução parcial da matéria original

A chegada de d. Mateus

Costa e Silva Sobrinho

Após o falecimento de d. frei Manuel da Ressurreição, a diocese de S. Paulo só veio a ter novo bispo em 1794, quando foi eleito d. Mateus de Abreu Pereira, cuja entrada na capital se fez a 31 de maio de 1797.

Corria ele então nos seus cinqüenta e dois anos; pois havia nascido na Ilha da Madeira a 8 de agosto de 1741.

Em Santos chegava quase inesperado. Apenas três dias antes haviam sido tomadas as providências para a sua recepção. E memorável prova disso fornece-nos a velha Câmara, nesta ata:

"Aos 29 dias do mês de abril de 1797 anos, nesta Vila e Praça de Santos, nas casas da Câmara e paços do Concelho dela, onde foi vindo o primeiro vereador o capitão Otávio Gregório Nébias, juiz presidente pela Ordenação no impedimento do doutor juiz de fora presidente, e o sargento-mor Caetano José da Silva, no impedimento do segundo vereador, com assistência do procurador pretérito o capitão Bento José de Sousa, no impedimento do atual Manuel Marques do Vale, para efeito de proverem o bem comum da República, sendo aí determinaram a mim escrivão que lavrasse um edital para que todos os moradores desta Vila mandassem limpar as suas testadas, consertar as calçadas e caiar as frentes das casas para a chegada do exmo. e revmo. bispo desta Capitania, dom Mateus, e, da noite do dia em diante até a terceira noite inclusive se iluminassem as frentes das casas, com pena de que o que não observasse o determinado, pagaria seis mil réis da cadeia onde estaria 30 dias, e acordaram de ir esperar o mesmo exmo. bispo na sua chegada, nada mais determinaram, e mandaram fazer este termo que assinam, e eu Manuel da Silva Borges, escrivão da Câmara, que o escrevi. - Nébias - Silva. - Sousa."

Agitou-se destarte o povo num enorme corre-corre quando o trovejar solene da artilharia na Fortaleza da Barra e os festivos repiques de sinos nos campanários começaram a saudar a aproximação do navio em que vinha embarcado o príncipe da Igreja.

Da Rua dos Quartéis, da Rua da Praia e do porto das Canoas já recebia o estuário a interrogação curiosa dos olhares.

O barco, afinal, entrava suavemente. As velas flácidas o impeliam devagar sobre o brunido esverdeado da baía, até que atracou no Porto das Canoas. Pouco depois, batendo a compassado rijo o bracejo dos remos, um escaler abordava à terra. Era a conjuntura do faustoso recebimento de d. Mateus de Abreu Pereira.

A cumprimentá-lo ali estava um oficial graduado representando o governador e capitão-general Bernardo José de Lorena; o capitão Otávio Gregório Nébias, presidente da Câmara; o sargento-mor Caetano José da Silva e o capitão Bento José de Sousa, vereadores; o sargento-mor comandante Manuel José da Graça; o guarda-mor Inácio Luís da Silva; o vigário colado e da vara, padre José Xavier de Toledo; os capitães-mores Bento Tomaz Viana e Francisco Xavier da Costa Aguiar.

Sobressaíam ademais entre a turba impaciente e jubilosa o tenente José Antônio Vieira de Carvalho, o tenente-coronel José Fernandes Martins, o capitão Manuel de Alvarenga Braga, Luís Pereira Machado, Valentim Gomes de Miranda e diversas outras pessoas que seria longo e fatigante mencionar.

Depois de se ter d. Mateus recolhido ao Convento de Santo Antonio, começara o cortejo do mundo oficial, do clero e da gente mais grada da Vila.

Muito interessante foi esta cerimônia: em nome do governador e capitão-general oferecera-lhe o sargento-mor comandante toda a tropa, e os oficiais apresentaram-lhe as chaves das fortalezas e pediram-lhe o santo e senha.

Foi-lhe posta de guarda uma companhia completa e determinado que se lhe fizessem as continências militares por todo lugar onde passasse.

As fachadas dos edifícios, pela míngua e apertura do tempo, não tinham sido caiadas. Mas em todas elas as luminárias constelavam a noite.

Do convento passou d. Mateus à igreja de Santo Antonio, onde se paramentou e de onde saiu em procissão para a Matriz. Congregara-se ali, então, para assistir às solenidades religiosas, quanto havia de mais ilustre e graduado na vila.

Esteve d. Mateus todo o mês de maio em Santos. Puderam os santistas, assim, desfrutar as primícias da sua convivência e do seu labor apostólico.

Primoroso nas obrigações da sua dignidade, enviava logo à Câmara os agradecimentos pelo carinho da acolhida, como se depreende da seguinte ata:

"Aos 6 dias do mês de maio de 1797 anos, nesta Vila e Praça de Santos e nas casas da Câmara e paços do Concelho dela, onde foram vindos o capitão Otávio Gregório Nébias, primeiro vereador e juiz presidente no impedimento do doutor juiz de fora presidente, e o terceiro vereador com assistência do atual procurador Manuel Marques do Vale, todos abaixo assinados, para efeito de prover o bem comum da República, sendo aí abriu-se uma carta do exmo. e revmo. sr. bispo desta Capitania, a qual carta escreveu a esta Câmara agradecendo o obséquio que a mesma Câmara lhe tem feito com a sua chegada, a qual carta mandaram que eu escrivão a registrasse, e nada mais, etc. - Nébias. - Pedroso. - Marques."

Indo assumir a direção da sua diocese, o bispo d. Mateus deu entrada em São Paulo a 31 de maio de 1797, como no começo dissemos. Acompanhava-o numerosa comitiva.

A travessia de Santos ao Cubatão ainda era por água. Oferecia dificuldades graves e às vezes sérios perigos. A estrada que levava da raiz ao alto da Serra tinha sido, porém, reconstruída pelo governador Lorena. Traçada com 180 ângulos e calçada com pedras trazidas de lugares distantes, estendia-se ela desde o atual Cruzeiro Quinhentista até o divisor de águas da montanha, num percurso de 9 quilômetros.

Em S. Paulo a chegada fora verdadeiramente triunfal. Todos os homens da governança, com os trajos próprios para o ato, confluíram à igreja dos religiosos de S. Francisco, onde iam esperar o novo prelado.

Nesse templo ele se paramentou. E dali saiu uma pomposa procissão em direitura à Santa Sé Catedral. À porta do templo o capitão-general Bernardo José de Lorena, com diversos militares, esperava o bispo.

Sem tardança chegaram todos. Estavam a cavalo, inclusive d. Mateus, sob o pálio conduzido pelos membros do Senado da Câmara. Houve, então, na Catedral, as formalidades rituais com invulgar esplendência. S. Paulo em peso estava ali. Ia assegurar-lhe para sempre a sua mais inabalável estima.

No ano seguinte, isto é, em 1798, fora ele a Paranaguá, em visita pastoral. O vereador Pedro Gomes Sobral, na derradeira sessão da Câmara dali, pediu que ficassem constando da respectiva ata estas palavras: "O que tinha achado no presente ano mais memorável foi a vinda do exmo. e revmo. sr. dom Mateus de Abreu Pereira, bispo diocesano da cidade de S. Paulo, que, vindo a esta vila, foi de todo este povo recebido com justa alegria, dando todos demonstração do maior contentamento; pois além de iluminarem as suas portas, e branquearem as paredes dos edifícios, fizeram-se várias funções pelas ruas públicas, em cujo templo abriu o mesmo exmo. bispo o Crisma e Ordens a alguns pretendentes, não só desta vila, como a uns que vieram de Minas Gerais, sendo de todos a sua vinda muito aplaudida".

O governador e capitão-general Luís Teles da Silva, quando em 1813 passou a governador do Rio Grande do Sul, fora substituído até 8 de dezembro de 1814 pelo bispo d. Mateus, o ouvidor d. Nuno Eugênio de Lóssio e o intendente da marinha Miguel José de Oliveira Pinto.

Demais, no período agitado da Independência, o governo provisório de S. Paulo, que serviu até 8 de janeiro de 1823, estava assim constituído: bispo d. Mateus de Abreu Pereira; ouvidor geral da capital, José Corrêa Pacheco e Silva; e marechal de campo Cândido Xavier de Almeida e Sousa.

Seu amor pela nossa terra fê-lo partidário da Independência. Invoquemos a esse respeito a palavra dos mestres. Vamos ao Direito Civil Eclesiástico Brasileiro, obra magistral, onde Cândido Mendes abona o que deixamos enunciado, por estas palavras: "Este prelado, notável por suas virtudes, concorreu muito para se levar a efeito a Independência do Brasil" (vol. 2, p. 660).

Em S. Paulo, residiu d. Mateus à Rua do Carmo n. 20 (antigo). Era um sobrado, de sacadas de rótula. Conta-se que defronte dessa casa havia um terreno coberto de mato rasteiro, onde se fazia despejo de lixo. Ali era costume enjeitarem-se crianças.

D. Mateus, tocado de compaixão pela sorte das infelizes crianças, logo que ouvia choro de alguma delas, mandava imediatamente o seu criado buscá-la e, da janela, batizava-a, receoso de que antes que o criado ali chegasse os porcos e outros animais a devorassem.

Essa grande alma, em que viçaram as flores divinais da bondade, da piedade e do amor, adormeceu no sono perpétuo em 5 de maio de 1824, na idade crepuscular de 82 anos.

Em Santos, a tradição cultuou-lhe a memória até ainda depois de 1860, conservando a denominação de Porto do Bispo, dada no ano da Independência à praia que ia desde o muro do convento de Santo Antonio, até defronte da Rua do Sal, hoje Rua José Ricardo.

No trecho dessa praia fronteiro à referida Rua José Ricardo, ficava até então o Porto das Canoas, onde d. Mateus desembarcara sem saber que o seu nome ficaria vinculado a um recanto da terra dos Andradas.

A Câmara Municipal, em 29 de maio de 1860, permutou com Manuel Joaquim Ferreira Neto um terreno no "Porto do Bispo" por outro que ele possuía ao lado do Ribeiro de S. Jerônimo. Realizou-se essa permuta porque Ferreira Neto ia começar uma edificação de "largas dimensões", como ele próprio dizia, em frente à atual estação da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí.

E ergueu, de fato, aqueles dois sobradões do Largo Marquês de Monte Alegre, onde mais tarde, num deles, viria a funcionar, por muitos anos, a Câmara Municipal. Esses dois velhos casarões, nos quais flutua a penumbra dourada do passado, poderão dizer ainda muitas coisas à memória e ao coração da nossa gente.

Prédio construído pelo comendador Ferreira Neto - lado do antigo Porto do Bispo

Imagem: bico-de-pena de Lauro Ribeiro da Silva (Ribs) e legenda, publicados na matéria original

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