Imagem: reprodução parcial da matéria original
O coronel Albuquerque e a ponte da Alfândega
Costa e Silva Sobrinho
Quando Santos não passava de uma vila
com honras de cidade, quando nem sequer sonhava com os melhoramentos materiais da laboriosa e inquieta urbe de hoje, a festa do Natal constituía
aqui uma das que mais atraíam a atenção do povo.
Na Ordem Terceira do Carmo, à meia noite em ponto, havia missa cantada. À uma hora da madrugada
começava a da igreja de Santo Antonio. A velha Matriz,
toda cheia de louçanias e flores, resplandecia de sedas, de dourados e de luzes nos sete altares.
- "Gloria in excelsis Deo!",
entoava, à meia noite, o sacerdote celebrante, repetindo o louvor e a adoração à onipotência divina.
E os sinos se desfaziam em festivos repiques. Estrugia o popocar dos foguetes. As baterias da
Fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande atroavam solenes, repercutindo além os ecos do fragor das suas
descargas.
Muitas vezes, na porta da Matriz, ficava a Guarda Nacional, com os seus
oficiais agaloados e de vistosos penachos nas barretinas.
No pátio, defronte do templo, viam-se quitandeiras junto dos tabuleiros, e estes com as suas
lanternas lampejantes exibiam guloseimas que faziam crescer água na boca da petizada.
Nessa noite ninguém dormia cedo. Esperava-se a missa do galo e depois a exposição do presépio,
armado com capricho em todas as igrejas.
Nas casas particulares, entre as famílias, havia também o costume de se armarem presépios. Assim,
já quase junto dos nossos dias, gozavam de merecida fama os presépios do dr. Cunha Moreira, de d. Angela Macuco Borges, de Antonio Nicolau de Sá,
bem como os das famílias Patusca, Figueiredo Brazão, Caiaffa, Iguatemi Martins e outras.
Havia presépios monumentais, com ovelhas espalhadas pela relva fofa das colinas, com palmeiras
altas e árvores de virente folhagem, com pontes minúsculas sobre riachos que passeavam por entre as campinas, com monjolos, castelos, cabanas e
figurinhas de variadas cores. Outros eram mais modestos, alguns até bem pequeninos, mas todos eles tendo a sua manjedoura coberta de palha e o
Menino Jesus de mãozinhas levantadas para a Virgem. Perto do berço, São José, encostado ao bordão. Depois os três reis magos com as coroas de ouro e
grandes mantos: Baltazar, Gaspar, Melchior - o branco, o amarelo, o preto, simbolizando a Europa, a Ásia e a África. O burro e a vaca de olhares
meigos. No alto, o tremor da prata de uma estrela.
Para a adoração dos fiéis, que iam depor o ósculo reverente na imagem do Menino, os presépios
ficavam em exposição até o dia de Reis. E o povo de todos os lados a eles afluía, notando-se o comparecimento assíduo de algumas pessoas anos a fio.
No Natal de 1902, entretanto, sentiu-se a ausência de um dos visitantes infalíveis. Era a do
coronel Cândido Anunciado Dias de Albuquerque, que acabava de falecer precisamente às 10 horas da noite do dia 25 de dezembro, daquele ano.
Ia nos oitenta e cinco anos de idade. Desde algum tempo antes que os alentos do octogenário
depereciam sensivelmente.
Na alta sociedade, tratavam-no de "coronel Albuquerque", mas os íntimos e o povo em geral lhe
davam o tratamento de "coronel Candinho".
Era ele filho do major Joaquim Antonio Dia e de d. Eugênia Maria de Albuquerque. Irmão, portanto,
do coronel Joaquim Antonio Dias, herói da guerra do Paraguai; de d. Maria Anunciada Dias, casada com Guilherme Backheuser; de d. Maria Elisa Dias,
que casou com o dr. João Inácio Silveira da Mota, alcunhado de "Mota Gato", pelo forte ronronar da sua asma; de d. Maria Augusto Dias,
segunda mulher de João Otavio Nébias; e ainda de Eugênia e Francisca Dias de Albuquerque.
Do supracitado Backheuser era filha d. Eugênia Helena Backheuser, esposa do coronel José Proost de
Sousa; o dr. Silveira da Mota era pai do dr. Renato Fulton Silveira da Mota; e de João Otavio era filha d. Laura Otavio Nébias, que casou com Tito
Marcos Pacheco Soares.
Estava o coronel Candinho, como se vê, unido pelos vínculos de parentesco à gente mais qualificada
de Santos do seu tempo.
Em 1847 ligou à sua a existência de uma excelente senhora, que estivera a princípio desposada com
Francisco Martins Setubal. Era ela d. Maria José de Sousa Machado Setubal, natural de Santa Catarina.
Vieram-lhe desse enlace, como de documentos consta, nove filhos, sendo quatro homens e cinco
mulheres. Destas, a de nome Eugênia casou com o dr. Alberto Bezamat, mais tarde juiz de Direito em Santos; com os dezesseis anos encantadores de
Cândida matrimoniou-se o norte-americano Henrique Guilherme Clark; casou-se Josefa com Antonio Luis Tavares; e as mais novas Albina e Julieta ainda
eram solteiras em 1874.
Moças de beleza peregrina, tinham todas elas o aprumo juvenil e o garbo da mocidade sadia e
alegre. À esmerada educação juntavam a fragrância das flores finas.
Na escola de d. Umbelina Joaquina de Santana, professora que com os ensinamentos recebidos do
padre mestre Joaquim José de Santana honrou durante muitos anos o magistério nesta cidade, haviam sido condiscípulas de d. Inácia de Campos Moura,
de d. Balbina Ambrosina Amorim e de outras distintas alunas.
O professor Tomaz Paulo do Bonsucesso Galhardo, em ofício que enviou em 23 de dezembro de 1872 ao
dr. José Antonio de Magalhães Castro Sobrinho, inspetor da instrução pública do distrito de Santos, assim se manifestou a respeito da professora
Umbelina: "Meus sinceros parabéns aos senhores pais de família que confiaram suas filhas à
carinhosa e digna professora, a exma. sra. d. Umbelina Joaquina de Santana, que soube tão lisonjeiramente corresponder a essa confiança".
Anda corrente na tradição, que era ela tão preparada, que até tirava em vulgar com grande
facilidade a Eneida de Virgílio e as fábulas de Fédro.
Aquele homem alto e seco, singelo no trato e alinhado no traje, que era o coronel Candinho,
freqüentava-lhe, por isso, a proveitosa conversação.
Aliás, entre as suas relações contava ele Félix Bento Viana, João Manuel Alfaia Rodrigues Júnior,
o visconde de Embaré e várias outras figuras de relevo na sociedade santista da época. Era, ademais, compadre do conselheiro dr. Luis Pereira do
Couto Ferraz (visconde de Bom Retiro) e do conselheiro José Antonio Saraiva, notável chefe do partido liberal, a quem a República deu uma cural de
senador federal pela Bahia.
Deixou ele por toda parte os traços da sua munificência. Assim, com Francisco Martins dos Santos,
Manuel Lourenço da Rocha e outros, contribuiu em 1852 para a aquisição do sino grande da nossa antiga Matriz.
Vendo em 1887 que a casa da Fortaleza da Bertioga estava em
vésperas de ir abaixo, pelo seu estado de ruína, mandou proceder por sua conta a reparos que a deixaram em estado de poder conservar-se por muitos
anos.
Sempre labutando pela vida, tinha uma fábrica de cal no sítio Morrinho, e em 1873 era chefe do
Estado-Maior da Guarda Nacional e juiz de paz.
Fora antes vereador no quadriênio de 1869 a 1872, tendo a Câmara como presidente o dr.
Ignácio Cochrane. Possuía ainda a insígnia de comendador da Imperial Ordem da Rosa.
Enfim, um dos serviços prestados à sua terra pelo coronel Candinho, que não pode ser olvidado, é o
relativo à ponte flutuante da Alfândega.
Santos, a capital marítima da Província, não possuía até então nas águas da cidade um lugar
defronte da Alfândega onde as embarcações fundeassem e desembarcassem comodamente as mercadorias.
Resolveu ousadamente esse problema, em 1857, o coronel Candido Anunciado. Por instrumento assinado
a 24 de novembro de 1857, contratou ele com o governo imperial a construção de uma ponte flutuante no cais da Alfândega desta cidade, pela
importância de 97:461$000, pagável em duas prestações. E, para garantir o cumprimento do contrato, deu em hipoteca à Fazenda Nacional a 4 de março
de 1858 todos os bens do seu casal, obrigando-se a não dispor de nenhum deles sem que tivesse satisfeito as condições estipuladas.
Doze dias depois dessa escritura, os trabalhos já estavam começados, pois na sessão da Câmara de
15 de março daquele ano, constou do expediente um ofício do presidente da Província, de 9 do mês anterior, mandando informar o ofício de 22 do
mesmo, em que o empresário da Ponte da Alfândega pedia autorização para empregar naquela obra algumas pedras de uma
antiga fortaleza, denominada São Luís, na Bertioga, bem como utilizar
na mesma obra umas pedras do cais da Alfândega, que dizia acharem-se desaproveitadas.
E a Câmara resolveu que se informasse ao presidente que tanto as pedras da fortaleza de S. Luís,
como as do cais da Alfândega, estavam no caso de serem aproveitadas pelo empresário da Ponte da Alfândega, desde que as do cais fossem empregadas na
continuação do próprio cais.
Eis aí onde foram parar os apagados vestígios da fortaleza de S. Luís, antes chamada de S. Felipe,
na barra da Bertioga, do lado da Armação!
Vamos encontrar ainda, no jornal O Comercial, de 7 de julho de 1859, esta notícia, sob o
título "Ponte de ferro":
"Está quase toda desembarcada, de bordo do
brigue inglês William & Mary, a ponte de ferro que o senhor tenente-coronel Cândido Anunciado Dias de Albuquerque foi buscar na Europa, por
contrato com o governo imperial. Por algumas peças que temos visto calculamos que é uma obra de suma importância, talvez a principal deste gênero no
Império.
"Em conseqüência da falta dos necessários aparelhos, o senhor tenente-coronel Albuquerque tem
encontrado consideráveis embaraços em realizar o desembarque das volumosas e pesadas peças de que se compõe a ponte, restando-lhe ainda a superar
maiores dificuldades na colocação dela, atenta a carência de operários habilitados para semelhante trabalho.
"É de esperar entretanto que a atividade e energia do empresário
vençam todos os obstáculos, e que, dentro de poucos meses, possa o comércio desta praça utilizar-se do importante melhoramento, que tem por fim
tornar mais prontas e fáceis as descargas que se fazem no nosso porto".
***
Essas miudezas históricas estavam há muito sepultadas no esquecimento.
O nome do coronel Cândido não caiu, porém, de todo em desmemória. Falam nele volta e meia os que
navegam pelo rio da Bertioga, quando atravessam o largo do Candinho, outrora largo do Caeté.
O sítio que ali teve o coronel Cândido Anunciado fez que o largo do Caeté passasse a chamar-se
largo do Candinho, denominação que perdura até hoje.
A recordação é uma planta caprichosa, que deve ser semeada com cuidado ou, então, jogada a esmo.
Neste último caso, quando enraíza, não é fácil de se extirpar, é como as denominações toponímicas dadas pelo povo.
O Arsenal, o Forte de Monte Serrat e a Alfândega com a ponte flutuante, em 1882, após alguns
melhoramentos
Imagem: bico-de-pena de Lauro Ribeiro da
Silva (Ribs), publicado com o texto |