Imagem: reprodução parcial da matéria original
SANTOS NOUTROS TEMPOS
Progressos do ensino e da religião
Costa e Silva Sobrinho
Antigamente...
Para uns, cheira a mofo essa palavra. Não temos disso a menor dúvida.
Para outros, entretanto, ela contém os aromas dum roseiral solitário, buscado apenas pelas
reminiscências e a saudade. Quantas narrativas ouvimos que começavam assim:
- Santos, antigamente...
Ou então:
- Há tempos, faz já muitos anos!...
Provinham de conversas com gente velha. Com aquelas testemunhas vivas do passado, que conviveram
conosco, e para as quais os tempos idos tinham uma poesia misteriosa e suave e um indefinível encanto.
Às vezes, alguma delas ia longe, ia até ao pretérito mais que passado de recordar, dizendo:
- Quando eu era criança...
E o panorama da cidade surgia longínquo.
Vivificavam-se depois os detalhes. Era a torre da Matriz com a cruz e o
galo do catavento. Eram os campanários dos outros templos, a
capelinha rústica do Monte Serrat, a artéria fluvial do estuário, o porto onde descansavam os navios de suas longas viagens, e, enfim, os pátios
e as ruas da cidade colonial.
Aquelas ruas estreitas, batizadas quase todas com nomes tão diferentes dos de hoje, aquelas
travessas, aqueles becos tenebrosos!
Aquelas casas baixas, aqueles sobrados com a porta dos armazéns no andar térreo em correspondência
com as janelas das moradias em cima, os largos beirais de telha canal, o bondezinho de tração animal!
A Rua Direita (agora 15 de Novembro), a de Santo
Antonio (hoje Rua do Comércio), a do Rosário (denominação que os antigos ainda não trocaram), a de São Leopoldo, a de
Martim Afonso, a de Itororó, a de São Francisco, a da Alfândega (de presente Senador Feijó), a
das Flores (Amador Bueno), a Áurea (atualmente General Câmara) e poucas mais eram as
principais da cidade.
Na última delas, no trecho entre a atual Praça Rui Barbosa e a
Praça Mauá, os beirais de algumas casas térreas eram tão salientes, que as aranhas os procuravam de preferência para
armar por baixo a redondela das suas teias insidiosas.
Foi, por sinal, junto a uma das tais casas, que se deu com o gramático Júlio Ribeiro, aquele
terrível incrédulo, que, quando via um padre, pensava que ele era Mafoma e o padre toucinho, tal a ojeriza que tinha pelos sacerdotes, foi ali,
repetimos, que se passou com Júlio Ribeiro uma cena burlesca.
Tinha ele verdadeiro horror aos aracnídeos. Quando via uma lacraia ou uma aranha, confrangia-se
todo de pavor.
Pois bem: corre na tradição que certa vez estava ele a prosear com um amigo no passeio bem
defronte onde se acha hoje a Tecelagem Francesa, quando sentiu cair do beiral da casa e entrar-lhe pela gola do casaco um bicho qualquer. Percebeu
logo no prisma da sua rica imaginação uma enorme aranha a descer-lhe pela espinha.
Então, correu para um café que havia defronte, e em pleno salão repleto de gente, tirou o casaco,
tirou o paletó, tirou o colete, puxou para fora a fralda da camisa, estava em resumo quase em trajos de Adão, quando viu ao pé de si, ali no chão, o
esperneio lento e rígido de um pequeno besouro em decúbito dorsal.
Ante o quê, o autor das Cartas sertanejas, desenxabido e enfadado, só pôde exclamar:
- Que é que querem os senhores? Nesta terra não ganha a gente para sustos!
O Diário de Santos, de 19 de março de 1886, narrando o fato, assim concluía:
"Edificante! Um professor encarregado da
educação moral de muitos meninos, representando cenas tão frescas como esta..."
De fato, Júlio Ribeiro era professor em Santos naquele tempo. Tinha o "Externato Júlio Ribeiro". E
a cidade de Santos estava então muito bem servida, tanto de escolas públicas como de escolas particulares.
Contava em 1885 duas escolas públicas, com seis cadeiras. Três para o sexo masculino e três para o
feminino. E eram ocupadas respectivamente pelos seguintes professores: Joaquim Carneiro da Silva Braga, Tobias Jardim Martins da Silva, Aprígio
Carlos de Macedo, d. Gabriela Augusta da Rocha Guimarães, d. Ermelinda Rosa de Toledo e d. Joana Francisca Machado de Macedo.
Na Barra havia uma escola, com duas cadeiras. O professor Daniel
Teotonio Ferreira ocupava a destinada ao sexo masculino; e a relativa ao feminino pertencia a d. Justina Arouche do Espírito Santo.
Possuía o Cubatão também uma escola. Achava-se porem vaga a
reservada aos alunos do sexo masculino. A que competia aos do sexo feminino estava a cargo de d. Cristina Pia.
Não andavam em menor número as escolas particulares. No Largo do Carmo,
7, ficava o Colégio Santista, de Canuto Thorman. Diretores do Colégio Nacional, à Rua do Rosário, 143, para ambos os sexos, eram José Emílio Ribeiro
Campos e d. Alzira A. Pereira Campos.
Na mesma rua, 54, havia o Colégio São Luiz, só para meninos, dirigido por Caetano Nunes do Amaral
Siqueira. Ainda na mesma rua, 38, preparava o Colégio Azurara alunos tanto para a matrícula nas academias do império como para o comércio.
Pertenciam ao corpo docente desse estabelecimento José Joaquim Pereira de Azurara, Cornélio Rezende, Tiburtino Mondim, Canuto Thorman, dr. João
Carvalhal, Pedro Iliausu, Jerónimo Lobo e Benedito Calixto.
Emílio Oscar Fischer era diretor do Colégio Alemão, para ambos os sexos, à Rua Amador Bueno, 28.
À testa do Colégio Tarquínio, para ambos os sexos, à Rua Bittencourt, 48,
estava o grande professor e pedagogo de alta fama Tarquínio da Silva.
No Convento do Carmo, dirigia o Colégio N. S. do Monte Serrat, também
para ambos os sexos, João de Carvalho Anta.
O padre Francisco Gonçalves Barroso, na sua Escola de Santo Antonio, ensinava Português, Francês,
Latim, Alemão, Inglês, Italiano, Geografia, História e Aritmética.
Funcionava finalmente no Convento de Santo Antonio o Colégio de N. S.
do Perpétuo Socorro, da qual era diretora d. Mariana Rosina Hamberger. Do seu programa de ensino constavam as seguintes matérias: Português,
Francês, Alemão, História, Geografia, Aritmética, Piano, Trabalhos de Agulha e Flores.
O saudoso dr. Silvério Fontes ocupava, nomeado pela Câmara Municipal, o cargo de inspetor
literário e rodeava a instrução de pacientes desvelos.
Entre os professores particulares, eram proeminentes e venerados Jorge Behn e Canuto Thorman, no
Desenho; José Feliciano da Silveira Anjos, em Latim; José Michelet, em Francês; Aprígio Carlos de Macedo, em Português e Francês; Emílio Oscar
Fischer, em Francês, Inglês e Alemão; e Tarquínio da Silva, em Português e Francês.
Honravam com o seu talento o ensino da Música: Henrique Paulo da Trindade, Jerônimo Álvares Lobo,
Luiz Arlindo da Trindade, Teodoro Sulzer, Manuel Joaquim da Silva e Anibal Caravaglia.
Figuras de superiores talentos e de alta pre-excelência nas disciplinas que ensinavam,
constituíram elas um grêmio de professores capazes e proficientes, aptos a apostar primores com os mais abalizados.
Daquele belo conjunto de competências, vamos separar uma, talvez a mais humilde, mas em cuja alma
floresceram as rosas divinas da bondade e da piedade. Referimo-nos a d. Mariana Rosina Hamberger, nascida às margens do Danúbio azul, em Viena,
capital da Áustria, a cinco de julho de 1840. Com doze anos chegara ela ao Rio, em companhia dos pais.
Passaram-se depois para o Rio Grande do Sul, onde se entregou ao ensino de crianças órfãs e onde também ela própria ficou órfã.
Alguns anos após, regressava ao Rio. Foi ali professora do Asilo de Santa Leopoldina, n Icaraí,
dirigido pelas irmãs do Sagrado Coração de Maria. Em 1875, a convite do padre João Siqueira de Andrade, fora dirigir em Petrópolis a Escola
Doméstica de N. S. do Amparo, fundada por aquele sacerdote.
Completamente embebida no seu trabalho, ali esteve até 1887, época em que se transferiu para
Santos, onde tinha uma irmã, de nome Luísa Clara Kaiser, casada com o relojoeiro Júlio Kaiser. Foi quando abriu, numa
dependência do Convento de Santo Antonio do Valongo, o seu Colégio de N. S. do Perpétuo Socorro. Excelentes auxiliares teve ela na organização e
direção da escola. Falta-nos, porém, espaço para mencioná-las.
Estando entregue aos encargos do seu mister de professora, recebeu ela de uma feita a visita do
dr. Saladino Figueira de Melo, que, conhecedor das suas nobilitantes virtudes, queria conhecê-la. Foi então que, tendo ele ensejo de discorrer da
sua devoção para com o S. Coração de Jesus, lembrou a possibilidade de ser fundado em Santos um Centro do Apostolado da Oração.
Era essa também, há longo tempo, a idéia acariciada por d. Mariana Hamberger. Onde medrava o
desenvolvimento intelectual, não podia desmedrar o religioso. Em 6 de junho de 1888, como dádiva do mesmo dr. Saladino, chegava a esta cidade uma
linda estátua do santo, em tamanho natural. Dois dias depois, isto é, a 8 de junho, festa do Coração de Jesus, na igreja de Santo Antonio do Valongo,
o padre Bartolomeu Taddei benzeu a mencionada estátua.
A 9 de julho de 1893, na mesma igreja, o diretor geral do Apostolado no Brasil fundou e agregou o
novo centro. Após a missa e a prática do padre Taddei acerca do Coração de Jesus, reuniu-se o Centro do Apostolado, e nomeou sua presidente d.
Mariana Hamberger.
Fundado assim o apostolado, sentiu-se logo d. Mariana empolgada por esta idéia grandiosa: erigir
em Santos, por meio do Apostolado, um santuário ao Sagrado Coração de Jesus. Exteriorizou o seu pensamento ao padre Taddei. Este lhe afervorou o
desígnio; pois, no conceito de Rui, "não há resistir a senhoras, mormente quando o prestígio de sua franqueza se reforça com as armas da piedade e
da abnegação".
Destarte, no dia 13 de março de 1897, o Apostolado do S. Coração de Jesus, por seu diretor geral,
padre Taddei, representado por seu procurador Francisco de Paula Coelho, adquiria por doze contos, de Manuel Augusto Alfaia Rodrigues e sua esposa,
um terreno com 38 metros de frente para a a Rua da Constituição e 40 de fundo para a Rua Henrique Porchat, com a qual fazia esquina. Nesse local, a
25 de outubro de 1902, realizava-se a bênção do Santuário, e no dia seguinte a sua inauguração.
Nesse dia tão faustoso, tão de gala para os católicos de Santos, foi enviado um telegrama ao Santo
Padre, que amoravelmente respondeu. Monsenhor Freppel, bispo de d'Angers, disse algures, numa de suas obras pastorais e oratoriais: "Está
na tradição da piedade cristã que os grandes atos da vida religiosa de um povo se manifestam em geral por algum monumento público que lhes perpetua
a memória. Daí essas igrejas e capelas comemorativas, cuja origem se prende aos fatos mais importantes da nossa história. Testemunhos perenes de uma
fé reconhecida, esses templos nos recordam o que Deus fez pelos nossos pais nos séculos passados".
Em remate: - o povo de Santos, alçando há cinqüenta anos
(N.E.: portanto, em 1902) esse santuário,
assinalou indelevelmente a sua devoção. |