Nesta monografia escrita na década de 1980, o jornalista e historiador santista Paulo Matos (falecido em julho de 2010) analisa a formação da consciência operária em Santos, desde a greve de 1877 no porto de Santos até o período imediatamente após a Primeira Guerra Mundial. O documento datilografado, não assinado, sem bibliografia nem numeração de páginas (notando-se a falta de uma das páginas) serviu de base para a elaboração de seu livro Santos Libertária!:
Imagem: trecho inicial do documento redigido por Paulo Matos
1877/1920 - 43 anos de ação operária em Santos
Paulo Matos
A cena inicial do filme Libertários, de Lauro Escorel, focaliza cenas da greve de 1877 no porto de Santos, com os carregadores de café paralisando seus serviços por aumento de salário, registrando-se esta como a primeira mobilização local. Tal movimento serve como demonstrativo de que já havia trabalhadores assalariados na época, onze anos antes da abolição brasileira. Nessa greve, ocorrem conflitos bastante violentos: de São Paulo são enviados 40 praças para conter os revoltosos, "que não só trabalhavam como se opunham a que seus companheiros voltassem aos labores", diz o jornal A Província de São Paulo, citado na pesquisa de L. Gitahy (N. E.: GITAHY, Maria Lucia Caira. Os trabalhadores do porto de Santos/1889-1910. Dissert. mestrado, Unicamp, 1983, datilog. inédito, conforme bibliografia citada por Paulo Matos no livro Santos Libertária!). Os trabalhadores teriam, nesse episódio, lançado ao mar dois praças e ferido um terceiro, tendo também avariado as peças do navio Setêmbria.
Os cônsules de Portugal e Espanha foram chamados para acalmar os operários e fazê-los voltar ao trabalho, sintoma do significado do operariado imigrante, que por aqui se antecipou ao restante do país.
Na década de [18]90 Santos já se apresenta como segunda área em greves, com 10 ocorrências. Ainda na década de 80, há a greve da construção civil, em 1888, e a dos cocheiros de praça, em 1889.
A primeira grande greve da qual se tem registro é a de 1891, que explodiu em maio desse ano, indo de 11 a 21 desse mês com 4 mil grevistas e violenta repressão. Atingiu os trabalhadores da Docas, onde ela se iniciou, das pranchas, do matadouro, do cemitério, da ferrovia, da construção civil, da alfândega, mesa de rendas, comércio, bancos, armazéns da ferrovia e obras do porto, trabalhadores da "Inglesa" e os carroceiros. Representantes da São Paulo Railway (a "Inglesa") e da Associação Comercial pediram reforços para conter os grevistas, sendo regiamente atendidos: vieram para cá um couraçado e dois cruzadores carregados de tropas, para juntar-se ao destacamento local. De São Paulo vieram mais 500 homens.
Os krumiros, como eram chamados os fura-greves, vieram da capital para substituir os grevistas, tendo também atuado nesta tarefa o ex-líder do quilombo do Jabaquara, Quintino de Lacerda, trazendo seus liderados para o trabalho semi-escravo. Eles eram o exército de mão de obra de reserva, que haviam ficado á margem do mercado de trabalho pelos imigrantes e eram virtualmente arrastados para as atividades antes desempenhadas pelos grevistas. Eram obrigados ao trabalho, carregando sacos "à boca da mauser" (N. E.: Mauser, marca famosa de fabricante de armas de fogo), conforme se refere um jornal da época.
O jornal O Correio Paulistano, de 17/5/1891, assim descreve a agitação: "...trabalhadores das pedreiras, da empresa de cais, caminham em direção à cidade, forçando os que se encontravam em obras de construção e pedreiras a acompanhá-los. O número chega a seiscentos homens, armados de pedras, paus, revólveres etc. um grupo se dirigiu ao cais armado, tendo à frente bandeiras brancas e vermelhas..."
Esses operários foram até os escritórios do governo e, encontrando o chefe de polícia, disseram que não fariam desordens; porém, não permitiriam que outros trabalhassem. Para apoiar o movimento, veio a Santos o deputado do Partido Operário do Rio de Janeiro, tenente Vinhaes. Este, sob a promessa de acalmar os trabalhadores, conseguiu que fosse retirada a polícia da área de greve. Mas em vista de não haver acordo entre trabalhadores e empregadores, Vinhaes conseguiu ajuda financeira para os grevistas e aconselhou-os para que dessem sequência ao movimento. Uma comissão da Associação Comercial pediu ao chefe de polícia sua expulsão da cidade.
A greve de 1894 começa entre os telegrafistas e empregados da São Paulo Railway, de Santos, que reivindicavam um aumento de 30% nos salários. Os grevistas são demitidos, mas recebendo a solidariedade de conferentes e operários, são reintegrados. Em 1897, de 13 a 28 de outubro, se inicia uma greve com 400 estivadores que se alastra pelo porto. Vêm para cá para reprimir o movimento a torpedeira Tymbirá e pelo menos 267 homens vêm de fora, da Marinha e Força Pública
A greve começou com um acidente no vapor Salinas e abrangeu várias categorias, como estivadores e trapicheiros, reivindicando aumento de salário e maior segurança no trabalho, causador de mortes diárias. Enquanto os dirigentes da Docas pedem auxílio às autoridades, os trabalhadores apedrejam os escritórios da empresa. os trabalhadores que iniciaram a greve são demitidos mas, após intensas negociações, a Associação Comercial garante emprego a eles.
Em 1900, chega a vez dos carroceiros, e paralisam a cidade. o comércio fecha suas portas e a polícia chega com a ordem de usar armas.
Em 1903, ocorrem agitações no porto. Realizava-se um sorteio entre os marítimos matriculados para preencher os claros na armada. Foi impetrado um habeas-corpus em favor dos 105 sorteados e ameaçou-se uma greve, caso estes sofressem constrangimento ilegal.
Em abril de 1904, reúnem-se em Santos 16 operários da construção civil dispostos a organizar-se e, após a leitura dos estatutos de outros sindicatos, tomam as providências para a formação de um organismo de classe.
Dias após, funda-se a Sociedade 1º de Maio, tendo como secretário geral Severino Antunha, que logo instalou uma biblioteca e aulas para os seus associados. A 1º de Maio, segundo análise de L. Gitahy, é a primeira manifestação do anarco-sindicalismo em Santos.
A 1º de Maio abrigava apenas operários da construção civil e outras categorias; junto com dissidentes, organizaram uma segunda associação, a Sociedade Internacional União dos Operários. Segundo o relatório da Federação Operária Local de Santos ao II Congresso Operário Brasileiro, em 1907, a SIUO logo após sua fundação tinha mais de dez mil sócios. Nessa época, a Sociedade 1º de Maio propõe a fusão, em vista dos ataques da repressão, sendo a proposta rejeitada pela Assembleia da Internacional. Mas isto não impediu a atuação conjunta das entidades.
No dia 15 de maio de 1905, a SIUO lidera a greve dos carroceiros contra uma lei municipal obrigando a todos a ficharem-se na polícia, para poderem exercer a profissão. Dois dias de luta foram suficientes para derrubar essa lei, segundo relatório da FOLS ao II Congresso Operário Brasileiro.
No dia 12 de junho de 1905, se inicia uma greve que vai durar uma semana (até o dia 19), apenas, mas que será a mais ampla destas greves, envolvendo toda a cidade. Promovida pela SIUO, com a adesão da 1º de Maio, o movimento se inicia com um incidente com o mestre-estivador P. Amazonas, que se recusa a pagar os trabalhadores no mesmo nível dos demais. Vem para cá um couraçado e pelo menos 57 fuzileiros navais, além de 74 homens da Força Pública, 20 praças do Rio de Janeiro e mais 151 homens da polícia estadual, fora a repressão local. Chegam também os krumiros, ex-escravos fura-greves trazidos das fazendas da Docas, Pilares e Outeirinhos. Aderem a esta greve os carregadores, os trabalhadores de armazéns, Cia. City (inclusive bondes), lixeiros, carroceiros, tecelões, Inglesa, matadouro, padeiros e até barbeiros e engraxates.
No dia 15/6, a sede da SIUO é invadida e quase toda a diretoria é presa. No dia 16, a greve se generaliza e é a primeira a transpor as fronteiras locais, tendo havido greves de solidariedade no Rio e em São Paulo. A reivindicação é a readmissão de 90 homens das Docas (três turmas), pagamento de 30 réis por saca carregada. No Rio, a greve é de solidariedade, aumento de salário e redução da jornada. Entre os organizadores presos nessa greve está o nome de Florentino de Carvalho.
Após a invasão da sede da Internacional, representantes da 1º de Maio dirigiram-se aos diretores que restaram e ofereceram sua sede e toda a ajuda material e moral, sendo rejeitada. Após várias tentativas, as entidades acabam se agrupando, ou melhor, a 1º de Maio se dissolve e vai para a SIUO.
Em setembro de 1905, os carroceiros liderados pela Internacional vão á greve, reivindicando cumprimento do código de posturas, lei municipal que regulamentava a atividade da categoria (peso máximo por carroça, licença para exercer a profissão etc.). O movimento recebe apoio da grande imprensa local e o jornal A Tribuna ressalta o caráter pacífico do movimento, culpando a Câmara pelo não cumprimento da lei.
Em 1905 foi fundada a Sociedade Progresso dos Trabalhadores Brasileiros, uma tentativa dos "amarelos" - adeptos da integração do movimento operário à política oficial partidária - de penetrar no movimento. Os reformistas - os "amarelos" - colocavam que os trabalhadores tinham que se inscrever como eleitores para buscar as modificações, iniciativa sempre frustrada, não apenas pelo fato da maioria dos trabalhadores serem imigrantes, como pela recusa dos anarquistas, que lideravam o movimento, em buscar este caminho, preferindo a "ação direta" - as greves e ações coletivas.
Ainda neste ano, a polícia invade a sede da SIUO, prendendo e espancando seus sócios que estavam reunidos em assembleia, apesar do caráter pacífico do movimento dos carroceiros. Onze trabalhadores são presos e enviados para São Paulo, mas o advogado Benjamim Mota impetra um habeas-corpus para trazê-los de volta a Santos. No final, a greve foi perdida e Borges, tesoureiro da SIUO, fugiu com 14 contos, conta o jornal de São Paulo La Lotta Proletaria, de 6/11/1905.
O ano de 1906 é o ano da greve da Paulista, que paralisa os trabalhadores em todo o Estado, repercutindo em Santos, iniciando-se em 15/5 com a chegada, concomitantemente ao início do movimento, de maciça repressão. Apenas boatos de que haveria uma greve de solidariedade em Santos bastaram para que o presidente Rodrigues Alves enviasse para cá dois navios de guerra com tropas. Durante o transcurso da paralisação, a polícia invadiu e fechou sindicatos em Santos e São Paulo. Funcionários do governo foram enviados para manter a estrada de ferro da Paulista em funcionamento.
Em 25 de janeiro de 1906 ocorre um comício Pró-Domingos Dias, que no dia 6 desse mês havia sido condenado a 8 meses de prisão por espancar um fura-greve, em um piquete. Foram oradores Serafim Soler, Severino Antunha, S. Rocha e Primitivo Raimundo Soares, o "Florentino de Carvalho".
Prosseguem as denúncias de arbitrariedades da Companhia Docas nos jornais operários. O jornal Do Operário, de São Paulo, que tem correspondentes aqui e acompanha o movimento, conta a história de um operário das oficinas da Docas que foi despedido sem saber o motivo, sendo informado que o seu ordenado estava depositado na polícia.
Dizia o texto que "... imaginem o espanto do Ruas, que receava ser preso sem motivo algum..."; "uma pessoa foi à polícia indagar e informaram que era necessário pagar 20$000, do contrário não se entregaria o dinheiro". O pai do citado operário, conta o jornal, estava de cama há mais de um mês, devido a um acidente de trabalho na pedreira da Docas. "E a Sociedade Beneficente, o que diz? Ela obriga os operários a pagar 4$000 todos os meses...".
As greves nesse período têm uma exigência comum: de participação dos operários na direção da Sociedade Beneficente da Cia. Docas ou de, pelo menos, nomear o seu cobrador. Os jornais operários comentam assiduamente o papel que desempenha esta instituição, em tese construída para dar assistência aos trabalhadores, mas de fato, apesar de descontar obrigatoriamente uma significativa parcela de seus salários, não lhes dá benefício algum.
Pequenos furtos na folha de pagamento da empresa também são comuns e o trabalhador que se atrevesse a reclamar era sumariamente demitido. Ressalte-se que o superintendente da Docas nesse período, o major Alvaro Fontes, foi importante personagem desse tipo de ação patronal.
O ano de 1907 marca a luta pela jornada de 8 horas, deliberação do Congresso Operário Brasileiro de 1906, que se propunha a alcançar a reivindicação até 1º de maio de 1907. Em Santos, a comemoração do Dia do Trabalhador é feita com conferências alusivas ao significado do dia, em contraste com os festejos promovidos por outros, conforme lembra o jornal do Rio de Janeiro A Terra Livre, de 10/5/1907.
No dia 11, há um comício de solidariedade a Francisco Ferrer - anarquista fuzilado na Espanha por pregar métodos educacionais racionalistas -, com mais de 300 pessoas presentes. Funda-se a União dos Trabalhadores em Café, que se propõe a fazer um seguro-desemprego por conta da sociedade. O fuzilamento de Ferrer motivou edições de jornais e manifestações em todo País.
No dia 21 de maio, os pedreiros, carpinteiros e pintores da cidade, não tendo sido atendidos em seu ofício pedindo as 8 horas, declaram-se em greve. No dia 31, alguns empreiteiros cedem. No dia 1º de junho, cinco dos mais importantes deles anunciam ceder, mas a greve só cessa após o acordo na SIUO. No dia 1º de junho haviam entrado em greve os operários da Tecelagem Santista, protestando contra uma redução de 30% em seus ganhos, que se daria através de uma modificação nas rodas dos teares. Dia 10, os operários do Moinho Santista pararam para reclamar as 8 horas. Dia 14 é a vez dos latoeiros, exigindo também o pagamento quinzenal.
No dia 15 de junho de 1907 os pedreiros, pintores e carpinteiros reúnem-se para formar um sindicato de resistência. Seu programa é claro, demonstrando seu caráter anarco-sindicalista. O jornal A Terra Livre do dia 14 de julho de 1907 traz um pronunciamento dos fundadores falando contra a propriedade privada, pela transformação social, "...preferindo essa clareza à mal encoberta atividade socialisteira... de promessas falsas...". É esta tendência que vai impulsionar o movimento operário em Santos. Os movimentos também se reúnem para fundar o seu sindicato e os operários da Docas fazem um abaixo-assinado pelas 8 horas. No dia 19/7/1907, em assembleia geral, fica fundada a Federação Operária Local de Santos (FOLS), com proposta dos sindicatos dos pedreiros, pintores, carpinteiros, funileiros, carregadores de café e outros. O iniciador da convocação dos operários para a formação da FOLS foi o militante operário Luiz La Scala - o mesmo que havia sido delegado do sindicato da construção civil (era pedreiro) ao Congresso Operário de 1906.
Ainda no ano de 1907, os sindicatos da construção levaram a cabo uma greve bem sucedida de 15 dias, que visava o aumento de seus salários e a redução da jornada de trabalho para 8 horas.
No dia 20/12/1907, o jornal A Terra Livre publica, na página 2, um manifesto da FOLS chamando a atenção para a necessidade de um segundo Congresso Operário, onde se nota a divergência ideológica com a SIUO e o caráter de anarco-sindicalismo, corrente anarquista que adota no próprio procedimento organizador os princípios libertários.
Diz o texto que "hoje o capital prepara-se para dar o golpe decisivo, ensaiando suas armas (...) que resultam potentes em confronto das que esgrime o operariado nas suas organizações defeituosas, moldadas num prejudicial autoritarismo, com seus presidentes e suas leis, cópias mais ou menos exatas da organização burguesas que nos oprime. Daqui provém a grande desorientação que se nota nessas pesadas organizações operárias (...) sem uma linha de conduta, deixando de lado os mais palpitantes problemas da atualidade. Nessa dolorosa emergência, é urgentíssimo reunir energias e atividades (...), trocar ideias, traçar o melhor caminho e seguir na luta...", chamando a seguir para a convocação de um segundo Congresso Operário.
Consta que o dono das carroças, José Novita, ofereceu vinte contos a quem descobrisse o presidente da FOLS. Observe-se que a esta altura a entidade era o mais importante polo de organização e luta dos trabalhadores. Apenas não tinha uma estrutura burocrática e "pesada", ou seja, consoante com a ideologia Socialista Libertária, não tinha estrutura hierárquica fixa ou verticalizada.
Os relatórios dos inspetores dos distritos sanitários de 1895 e 1896 explicam o desencadeamento de epidemias pelas péssimas condições de vida do proletariado local, causadas pela ausência de coleta de lixo, obras de arruamento e falta de condições do cemitério do Paquetá - cujas covas rasas infestavam o lençol d'água da cidade.
O serviço de água e esgoto, a cargo das companhias City e Melhoramentos, são criticados e apontados como as causas desse problemas, no relatório do inspetor em comissão do Segundo Distrito Sanitário, área ocupada pelos trabalhadores, em 1896: "São duas companhias perniciosas a Santos, que não cumpram absolutamente os compromissos tratados".
A propósito, o senador da República Alfredo Ellis, que moveu na ocasião uma campanha contra a Docas e as ferrovias por suas taxas excessivas, defendendo os produtores de café, e que atingiria o auge em 1906, quando obriga a empresa a exibir seus livros - pois que era cláusula contratual que quando o lucro excedesse os vinte por cento as taxas seriam revistas -, comentou que as multas por atraso nunca eram cobradas e os prazos sempre aumentados, sem recíproca da empresa cumprindo os acordos de instalação dos benefícios públicos.
Um relatório do inspetor do Primeiro Distrito Sanitário de Santos, de 1896, dá uma ideia da situação: "...a maior parte dessas casas não tem soalho e nem atijoladas são; baixas, estreitas, úmidas, escuras e mal arejadas. Paredes velhas, fendidas, esburacadas e sujas. Áreas e pátios lamacentos e chão em natureza. Muitas não têm esgoto; salas e quartos, já naturalmente acanhados, ainda se reduzem por divisões de madeira, criando outros compartimentos. O espaço entre o forro e o teto aproveita-se como dormitório, abrindo-se nele um buraco por onde entram os que lá ocupam. Já vi retirarem-se, puxados pelas pernas, de um desses mictórios singulares, um doente de febre amarela em estado grave e outro que saía de um quarto que era também um depósito de alfafa!".
A convivência entre habitantes e animais no mesmo espaço aumentava a incidência de doenças. Assim como o movimento portuário provocava a multiplicação dos trabalhadores, ocupando precários espaços, a necessidade de transportes de carga provocava a instalação de cocheiras para os animais que puxavam as carroças, junto às moradias, às vezes no mesmo cômodo.
As condições de trabalho eram as piores possíveis, longas e extensas jornadas com acidentes diários que marcavam para sempre os operários, condenando-os a morrerem na miséria, na inexistência de serviços sociais de assistência. O jornal A Tribuna escreve, no dia 13/9/1910, quando a Alfândega condenou um carregamento de batatas, lançando-o ao mar, e "...uma verdadeira procissão de botes e barcos seguiram os batelões, pescando o alimento".
O relatório da Federação Operária Local de Santos ao segundo Congresso Operário Brasileiro, realizado em 8/9/1913 - publicado na íntegra no jornal A Voz do Trabalhador de 1/3/1914 (nº 50) -, traz informações sobre as condições econômicas, "hijienicas" etc. das oficinas onde trabalha o operariado de Santos. Diz que elas são "péssimas" e as habitações operária "mais do que péssimas". "Estas - diz o relatório -, situadas no perímetro da cidade,nada mais são do que cubículos de três ou quatro metros quadrados, faltos de ar e de luz, onde se vêm obrigadas a alojarem-se três a quatro pessoas (...) quando nos subúrbios ou arrabaldes são casas de operários construídas em lugares antissalubres, feitas de tábuas e chapas de zinco, de paredes de barro puro...".
E o texto termina, desejando "Saúde e Revolução Social".
Os cortiços que superpovoavam o centro da cidade na década de [18]90, misturados às cocheiras, a partir dos primeiros anos do século XX sofrem a ação do Estado, através das Comissões de Saneamento e Desinfecção, sendo demolidos e transferidos seus moradores.
Um relatório da Federação Operária Local de Santos, citado no livro de Leslie Maran, fala das condições de moradia. Apenas 20% dos cortiços tinham um banheiro para cada 20 pessoas. A maioria era utilizado por 100 ou 200. As doenças proliferavam. A sina do proletariado era a privação e a exploração.
No ano de 1908, prossegue a luta pela conquista e manutenção, nas empresas onde já havia sido conquistada, da jornada de 8 horas, uma vez que reversões das conquistas ou mesmo diminuições do salário eram constantes quando havia redução da atividade produtiva.
Nessa época, a jornada de trabalho na Docas era de 10 horas, sendo que muitas vezes os operários eram obrigados a trabalhar além deste horário, sem nada receberem além da diária, sofrendo ainda descontos forçados e inexplicáveis - um expediente escuso usado pela Docas para subtrair dinheiro dos operários, constantemente denunciado pela imprensa operária.
Assim, embora o salário fosse de 5$000, baixava para 3$000 por dia - menos de 70$000 por mês -, enquanto os empregados dos armazéns das casas exportadoras, em igual período, recebiam 180$000, e os trabalhadores da City Improvements 8$000 por dia, com uma hora a menos na jornada de trabalho.
No dia 23 de junho, a Docas divulga pela imprensa um comunicado, no qual a partir de 1º de julho resolve arrochar os trabalhadores de carga e os carroceiros, trazendo para si o serviço de contratar trabalhadores para o carregamento de café das carroças para os navios. A Docas pagaria 60 réis por saca carregada (os carroceiros pagavam 80), 5$000 por dia correspondentes a 83 sacas por trabalhador. Dizia o comunicado da Docas que "...por motivo da Docas fazer o serviço, este poderá ir até mais tarde..."; era um golpe nos trabalhadores, pretendendo-se estender sua jornada.
No dia 5/7, param os trabalhadores do Moinho Santista, na lu-
[N. E.: página faltante no original] em seu livro que "...somente em Santos a organização proletária permaneceu ativa, talvez pela composição peculiar de sua economia e de seus trabalhadores. Não havia fábricas tão colossais e tão difíceis de organizar. E talvez os imigrantes espanhóis e portugueses já houvessem encontrado seus laços comuns".
O ano de 1911 não teve grandes mobilizações operárias. Mas merece destaque de um artigo de Eládio Antunha no jornal Aurora Social, da FOLS, entidade que fundara junto com Luiz La Scala, então editado regularmente. Enfoca o problema do progresso técnico, presente nos dias de hoje. Intitulado Belezas do século XX, foi publicado na edição de janeiro desse ano.
"Santos, antigamente, quando era um pântano - diz o texto -, com suas pontes esboroadas exalando um cheiro insuportável, ocupava na carga e descarga dos navios cinco vezes mais pessoal do que atualmente ocupa, com seu paredão, suas casas de máquinas, dragas, guindastes e linhas em todas as direções. O que virá a ser quando tiver em suas mãos o ensaque, transporte e armazém de café, com seus vastos armazéns e poderosa força elétrica? Um verdadeiro feudo, uma bastilha infamante onde o trabalhador terá de ser o servo passivo, sem direito à própria vida".
"Naturalmente - assegura o autor -, o problema do trabalhador não é o progresso, mas sim a minoria astuta que se apodera de todas as novas invenções em seu proveito exclusivo, quando elas deveriam pertencer à coletividade inteira, para maior perfeição dar ao trabalho, tornando-o útil e agradável".
Em julho de 1912, os trabalhadores da Docas haviam parado de trabalhar por não terem recebido o aumento salarial prometido em 1908. A resposta foi a habitual: fura-greves, navios com tropas da Marinha, trens repletos de soldados. Processos de deportação fora iniciados. Florentino de Carvalho, expulso do país um ano antes, em uma de suas viagens clandestinas participou dessa greve. Iniciada no dia 15/7, por causa dela, ele e José Vieitas são expulsos do Brasil.
O livro de Leslie Maran focaliza um artigo publicado pelo jornal O Estado de São Paulo nessa época, onde chega-se a inverter a lógica. Diz que é impossível alegar o custo de vida como causador das greves, pois se os trabalhadores conseguem ficar tanto tempo parados é porque dispõem de algumas economias. "Por conseguinte - diz o órgão de imprensa paulistano - parece-nos que estas reclamações não refletem a verdade".
Em 1913, dos quase 40 mil estrangeiros em Santos, menos de 9 mil são espanhóis, mas ainda assim eles são maioria na liderança. Nesse ano, o filho do presidente Hermes da Fonseca - Mário Hermes - organiza um "encontro trabalhista" a que denomina Quarto Congresso Operário, considerando os primeiros congressos socialistas como congressos operários e o I Congresso como o terceiro.
Nele, propõe um partido operário - fórmula de pacificação proletária - e lista uma série de reivindicações. Realizado d e7 a 11 de novembro, no Palácio Monroe do Rio de Janeiro, a Federação Operária da Capital Federal considerou este encontro como uma criação "velhaca e mistificadora". Em setembro havia se realizado o verdadeiro II Congresso Operário Brasileiro.
Indignado com os atos de selvageria praticados pela polícia contra os militantes operários em Santos, a COB enviou mensagens à Europa com o propósito de anular a campanha de aliciamento de imigrantes por parte do governo brasileiro e nomeou delegados dessa missão líderes trabalhistas expulsos do país, incumbidos de lá relatarem as práticas aqui utilizadas. Segundo esta entidade anarco-sindicalista, seus membros em Santos representavam quatro vezes o número do Rio de Janeiro: 22.500 contra 5 mil.
O governo efetuou, entre 1913 e 1914, o maior número de deportações desde 1907. O deputado Adolfo Gordo fez aprovar a eliminação das isenções à lei de sua autoria contra os líderes grevistas, em 1907, que passa a vigorar em 1913. Sua alegação era de que 26 entidades anarquistas, dominadas por estrangeiros, faziam as greves em São Paulo. Era preciso expulsá-los.
O renascimento da organização operária foi efêmero após esse período, observa Maran. A economia brasileira estava em declínio, motivado pela Primeira Grande Guerra, perdendo exportações que causaram o fechamento de fábricas e a paralisação das construções, assim como a semana de trabalho, motivaram desemprego urbano. Segundo ele, as greves de 1914, 1915 e 1916 foram mais reivindicativas do pagamento de salários atrasados do que de aumentos salariais. O tema dos comícios é a carestia de vida. O ministro da Agricultura, Pedro de Toledo, propõe como solução a criação de feiras-livres, sem atravessadores, que datam daí. Os comerciantes denunciam as feiras-livres como um plano "subversivo, anarquista e socialista".
No dia 1º de maio de 1913 ocorre um comício na Praça Marquês de Monte Alegre, às duas horas da tarde, falando Eládio Antunha, Manoel Perdigão e Manoel Campos. Ocorre também um massivo desfile pelas ruas da cidade cantando a Internacional, a 1º de Maio e Filhos do Povo, canções revolucionárias de então. No dia 5 de junho de 1914, o juiz de Direito de Santos condena a 24 anos de prisão celular o dirigente operário e organizador sindical Adolfo Anta, por ter insultado e abatido a tiros na rua um agente provocador.
No dia 2 de agosto de 1914, os trabalhadores santistas promovem um comício contra a guerra, dando vivas à fraternidade dos povos e elevando cartazes que diziam "Abaixo a guerra", "Abaixo os imperialistas", "Abaixo a sangueira provocada pelo capitalismo" e "Paz entre nós, guerra aos imperialistas". Sobre a enorme massa humana que compareceu ao comício sobreveio maciça repressão policial. A sede da FOLS foi novamente fechada e foram presos os líderes sindicais Manoel Campos e Angelo Perez, que tinham falado no comício.
O advogado Benjamin Mota, colaborador de muitas das lutas operárias, defendeu os dirigentes sindicais Adolfo Anta e Manoel Perdigão, julgados no dia vinte e seis de agosto de 1914. Ainda que sob ameaças de enviados dos patrões da City e da Docas e advogados famosos de acusação, eles são absolvidos.
No 1º de maio de 1915 é promovido um comício contra a continuação da guerra, a mistificação patriótica e a exploração capitalista.
O crescimento é retomado em 1916, com o mercado mundial se abrindo novamente à indústria brasileira. Veio um período de prosperidade sem precedentes, do qual o trabalho organizado ficou à margem, pois que havia sido esmagado. Apenas alguns sindicatos chegaram a reviver em 1916. Assim, os salários dos trabalhadores não foram aumentados de forma a compensar as reduções salariais da época da crise, nem o aumento do custo de vida. Tomando por base o ano de 1914, em 1917 o custo de vida saltou de 100 para 128, tendo os salários ido até 107. Em 1918, o custo de vida foi a 144 e os salários a 117.
No dia 13 de julho de 1917, a União Geral dos Trabalhadores de Santos promove um comício em sua sede social, na Rua Braz Cubas nº 375, de apoio aos trabalhadores de São Paulo em greve, assim como das reivindicações que serão apresentadas aos patrões pelos operários santistas. Ameaça de greve geral. No dia 16 ela é declarada e seu resultado foi um completo fracasso. A Cia. Paulista, com seus armazéns bem guarnecidos pelas forças policiais, evitando pilhagens, foi contratando novos operários para substituir os grevistas. No dia 23, a greve estava reduzida aos empregados da construção civil e aos trabalhadores dos armazéns gerais de café. No dia 24, todos retornam ao trabalho, alguns alegando que a UGTS nada fizera de útil, e é decretado o encerramento da greve.
Em outubro de 1917, são colocados a bordo do Curvello, em Santos, os anarquistas Florentino de Carvalho, Nalepinsky e José Sarmento Marques, para serem deportados. Notava-se a ausência de Gigi Damiani. Em 10/11 eles conseguem sustar sua expulsão do país. A expulsão de agitadores era um forte argumento de repressão para esmagar a resistência operária, sendo também o mais temeroso e o mais ágil: bastavam acusações.
Entre 1917 e 1920, ocorreu uma onda quase contínua de greves, com ampla participação dos trabalhadores. Foi o período mais ativo da história sindical brasileira, justificado parcialmente pelas condições econômicas da época. Os operários haviam ficado quatro anos sem aumento de salários e o país havia experimentado uma situação econômica de depressão, fortalecendo o movimento operário, que desta vez reagiu com vigor inusitado. O drástico impulso da atividade sindical não pode ser atribuído às mudanças estruturais, que haviam fortalecido o papel do operariado.
A grande expansão do operariado urbano, durante e depois da guerra, também não é suficiente para explicar o avanço do movimento operário. Sua força depende do seu grau de organização e não do tamanho de seus componentes. E o seu grau de organização depende, fundamentalmente, da atividade do proletariado em relação ao seu envolvimento nas greves e no dia-a-dia do seu sindicato.
Na análise que o brasilianista Sheldon Leslie Maran faz desse processo, a chave da compreensão desse fenômeno (1917/1920) foi a mudança de atitude do trabalhador estrangeiro em relação à sua participação no trabalho organizado. Seu sonho de ascender socialmente e retornar rico à terra natal havia se desvanecido. A maioria aceitava tornar o Brasil sua terra permanente. Atormentados pela inflação, passaram a considerar o seu envolvimento no trabalho organizado como um meio necessário à sua sobrevivência, na mesma intensidade que haviam procurado evitá-lo anteriormente.
Com essa tese, segundo Maran, havia se superado um dos problemas para que o movimento operário se desenvolvesse, ou seja, se tornasse massivo e consumasse seus objetivos. Os imigrantes tinham o Brasil apenas como lugar passageiro, para onde tinham vindo trabalhar e enriquecer. A maioria ficou por aqui. Nessa época, paira o desemprego. No primeiro semestre de 1917, a oferta de trabalhadores supera a capacidade de absorção do mercado. O proletariado se reativa nas demonstrações coletivas contra o custo de vida.
O Comitê de Defesa Proletária de São Paulo divulga um programa de quinze itens para melhor articular as reivindicações dos trabalhadores e angariar apoio popular para a causa operária: semana de cinco dias e meio, jornada de oito horas, aumentos salariais, restrições à contratação de mulheres e adolescentes, entre outros. Lá, nos conflitos dos operários com a polícia, um jovem de 21 anos é assassinado. Em seu funeral comparecem milhares de pessoas. No dia seguinte, os trabalhadores dirigem-se para o centro, fechando lojas e interceptando coletivos. É a greve geral.
Crescem os conflitos. Metralhadoras são armadas nas ruas. Em julho, milhares de soldados ocupam a cidade. O governo e a grande indústria aceita a intermediação de um recém-formado comitê operário composto de dirigentes do movimento. A repercussão das greves em São Paulo ecoava em todo o país, chamando e encorajando novas paralisações. A relação dos presos, dos deportados e dos que fugiram para evitar a prisão ou a expulsão bem poderia ser a própria lista da chamada liderança do movimento operário. Entre outros, incluía cinco dos seis representantes do Comitê de Defesa Proletária, que tomaram parte nas negociações de julho: Edgard Leuenroth, Antonio Duarte Candeias, Gigi Damiani, Teodoro Monicelli e Francisco Cianci.
A epidemia de gripe e a desproporcional repressão, além de alguns acordos do patronato com os operários, arrefeceram a vitalidade do movimento. Em 1918, apenas em alguns centros e esporadicamente há avanços. Aqui, em 7 de maio de 1918 a polícia persegue manifestantes em fuga no Mercado Municipal, espancando todos. A imprensa e um vereador denunciavam a ação da polícia.
Em Santos, a 29 de julho é assassinado em um bonde um dos administradores da Docas, Ascelyno Dantas. A polícia atribuiu o crime à liderança anarquista e uma multidão que incluía pessoas "das melhores camadas sociais" resolveu fazer justiça com suas próprias mãos, pilhando a sede da Sociedade União dos Estivadores. Três dias depois, o jornal A Tribuna anunciava entusiasticamente que o "Batalhão Patriótico das classes conservadoras" havia sido formado para prestar "incondicional apoio à polícia, no combate à ameaça radical".
Em meio à repressão maciça ao movimento operário, pilhagem de sindicatos, deportações em massa e prisões, a situação chegou ao ponto de estremecer as relações entre a Itália e o Brasil. O governo italiano recusou-se a emitir passaportes para os deportados para aquele país, a não ser que o governo brasileiro apresentasse provas concretas que corroborassem as acusações e o presidente Epitácio Pessoa disse que o Brasil estaria pronto a cortar relações com a Itália.
A repressão foi um sério golpe ao trabalho organizado. Gigi Damiani, que o governo já tentara expulsar em 1917, desta vez é deportado junto com dezenas de companheiros. O governo distribui nota às fileiras do operariado, dizendo que eles pagariam caro por seu ativismo.
O jornal A Razão, de 19/12/1919, descreve uma história que provocou medo nos que ainda persistiam em reivindicar. Giovanni Miceli, que fora deportado, deixou aqui sua mulher com 9 filhos, 4 dos quais nascidos aqui. Ela se recusara a voltar com o marido. Dizia ela que preferia ficar aqui com os filhos, pois quando ele chegasse à Itália seria imediatamente preso e se ela o acompanhasse levaria uma vida miserável. Era essa a realidade do movimento.
No mês de setembro,o delegado de polícia de Santos, Ibrahim Nobre, encarcerara Manuel Campos, acusando-o de cumplicidade no assassínio de um feitor da Docas. No dia 16 de outubro, os motorneiros de bonde da City declaram-se em greve. Motivo: a Câmara Municipal não atendera ao seu pedido para que fizesse cessar o treinamento de soldados do corpo de bombeiros como motorneiros, feito para furar os movimentos grevistas. Uma greve geral é decretada em protesto contra o grande número de motorneiros presos, sendo que a repressão atinge também outras categorias como pedreiros, estivadores e carroceiros.
Para o público, já alarmado com as notícias de uma explosão fatal, a tão alardeada rebelião anarquista, o jornal A Plebe, de São Paulo, atacou os que atribuíam à greve de Santos uma origem política: "o movimento é exclusivamente reivindicatório e não passa de um protesto contra as imposições imbecis de uma autoridade atrabiliária". O vereador Heitor de Morais, defensor dos operários, impetrou um habeas-corpus em favor de 474 operários da City que haviam sido presos.
O Brasil nunca havia presenciado uma onda tão grande de greves como a que varreu o país em 1919. Parecia que esse ano plantava um poderoso movimento sindical que se alastrava em solo brasileiro. Os líderes políticos e econômicos reagiam diferentemente à situação. Agora já se ouviam rumores sobre reformas, eram poucos os que pregavam a antiga postura de só usar a repressão - considerando a questão social como "caso de polícia".
O próprio presidente Rodrigues Alves, que anteriormente havia negado a existência de qualquer questão social no Brasil, já reconhecia que os trabalhadores tinham problemas sérios. Declarou que o Brasil necessitava aperfeiçoar sua legislação social, de forma a harmonizar os interesses do capital e do trabalho.
Em janeiro de 1919, a primeira lei de compensação para a classe trabalhadora: alguns patrões já dão as 8 horas "espontaneamente", enquanto ouros dão folga no dia 1º de Maio. No ano em que significativos avanços eram conquistados, os patrões e os políticos tentavam adocicar a questão, prometendo reformas que os operários deviam aguardar, ordenadamente. Mas estes preferiam aderir à ação direta, a esperar pela consecução das promessas patronais.
No dia 11 de maio de 1919, o clima em Santos também é tenso. Nesse dia, quando a estação de bondes da Vila Mathias estava ocupada pelos operários em greve, o delegado de polícia Ibrahim Nobre foi lá pessoalmente, pedir aos trabalhadores para cessar o movimento. Sua recepção, respondendo aos maus-tratos que impunha à classe operária santista, foi um tiro no peito - dado pelo operário Manoel Batista -, que atingiu e resvalo no botão da gravata de Ibrahim.
A greve dos operários da Docas e dos trabalhadores em transportes públicos resulta em aumento salarial para estes e na jornada de 8 horas para os doqueiros ainda não beneficiados, diz A Tribuna em 13/5/1919.
No Rio de Janeiro, as manifestações do 1º de Maio mostram um vigor inusitado. Cerca de 60.000 operários reúnem-se na Praça Mauá para ouvirem seus líderes, inclusive os membros do Partido Comunista Anarquista. Cantaram a Internacional e marcharam pelas avenidas cantando hinos revolucionários. Nos degraus da Biblioteca Nacional, denunciaram o capitalismo e saudaram a Revolução Russa. Convencidos de que chegara o momento da revolução, os anarquistas ensaiam uma ação armada, logo frustrada pela polícia.
Em 27 de outubro, Everardo Dias é preso e trazido para Santos. Ele escreve em A Plebe de 22/11/1919 que "... não és capaz de imaginar o que sofri em Santos. Fui preso em uma solitária infecta, nu, durante 3 dias, sem comer ou beber. Ao sair dali, levei 25 chicotadas nas costas". "Tinha um frio horrível - continua ele -, ardendo em febre, com a boca pastosa, sem poder gritar ou falar. Apanhei que nem vagabundo ou ladrão...". No dia 30/11 Everardo Dias é deportado, tuberculoso, fraco. Ele e os companheiros cantam, na saída do navio, a Internacional. Autor do livro História das Lutas Sociais no Brasil, editado em 1962, Everardo Dias foi tipógrafo-caixista no jornal O Estado de São Paulo. Nascido em 1883, foi um dos maiores teóricos e ativistas da ação operária no Brasil.
Mas eles não se livrariam de Everardo assim tão facilmente: na parada do navio que o levou para o exílio no Recife, ele desembarca amparado por um habeas-corpus finalmente deferido, acusando o delegado de Santos, Ibrahim Nobre, de ter ordenado seu espancamento. Foi recebido com festas na capital pernambucana.
Em fins de 1919, o Brasil estava atormentado pelas greves. O trabalho organizado ameaçava tornar-se uma força poderosa e independente. O terror vermelho, causado pela Revolução Russa e pelos levantes proletários na Europa, atingiam seu clímax. Abundavam boatos de uma trama revolucionária e os jornais anteriormente liberais tinham mudado de posição quanto ao conflito trabalhista. O jornal A Tribuna, de 14/11/1919, fala da situação, quando jornais como O Estado e o Jornal do Brasil passam a defender a repressão e a expulsão dos agitadores.
No dia 15/2/1919, os trabalhadores haviam conquistado uma antiga reivindicação: a lei federal 3.724, amparando os operários vitimados em acidentes de trabalho. O problema será seu cumprimento.
A lei Arnolpho Azevedo, que regulava a expulsão de estrangeiros, foi utilizada pela primeira vez na greve desencadeada em dezembro de 1920 pelo pessoal da Docas de Santos, que se queixava de trabalho excessivo e escorchante, que por 10 horas de serviço pagava apenas 5$000. O delegado Ibrahim Nobre prendeu grande número de grevistas, não se esquecendo também a deportação de estrangeiros. Estava particularmente interessado em expulsar Manuel Campos, embora este residisse no Brasil desde criança. Preso em São Paulo em 29/12/1920, Manuel Campos foi transferido para Santos, onde ficou preso e incomunicável a maior parte do tempo.
Em fins de novembro desse ano, os operários da Docas paralisaram por dois messes os serviços nesta greve, e, depois de prisões em massa e invasões de sindicatos pela polícia, ela fora derrotada. A Docas demitiu dois mil e cem trabalhadores, substituindo-os por fura-greves.
Em janeiro, os jornais noticiam a explosão de várias bombas de dinamite. O jornal operário O Combate sugeriu que as explosões, inócuas, eram "invenções da polícia" para justificar o tratamento duro dispensado aos grevistas. O delegado Ibrahim Nobre instaurou inquérito para descobrir os responsáveis pelas "graves ocorrências" e concluiu que elas eram originárias do movimento operário.
Apesar do número de operários que não aderiram ao movimento, a greve revelou-se de proporções, terminando no final de fevereiro de 1921. Antes disso, a diretoria do Lloyd Brasileiro estudou a possibilidade de levar para o porto do Rio de Janeiro os navios que se achavam paralisados em Santos. No inquérito dessa greve, o delegado Ibrahim Nobre indiciou 16 indivíduos, entre os quais João Gutierrez, João Domingos Gonçalves e o diretor da Gazeta do Povo, segundo Nobre implicados em atentados. O nome de Antonio Julião, português e professor de uma escola moderna, encabeçava a lista de indiciados. Nobre considerou-o mentor e principal responsável pelo movimento grevista, acusando-o de criar cinco comitês para auxiliá-lo no trabalho revolucionário.
Segundo Leslie Maran, nesse ano os anarco-sindicalistas ajudaram a deflagrar sua própria queda, promovendo uma série de greves gerais que minaram as energias do movimento operário e ofereceram ao governo a chance de esmagar com todo vigor repressivo a mais intensa mobilização operária de que se teve notícia neste país. Mas este não seria o fator determinante para a liquidação desta organização independente da classe operária, embora fosse uma de suas causas. As greves mal planejadas, deflagradas nos momentos de crise da produção, davam oportunidade ao patronato para demissões em massa sem maiores prejuízos.
Na repressão, a fama das prisões santistas ultrapassava fronteiras. Em 1920, o deputado federal socialista Mauricio de Lacerda, exercendo o último ano de seu mandato no Congresso, colaborou assiduamente no jornal operário A Voz do Povo. Em um artigo sobre a Conferência do Trabalho em Washington, observou que Afranio de Melo Franco havia assegurado, a seus colegas internacionais, que os estrangeiros no Brasil gozavam das mesmas garantias constitucionais que os brasileiros natos. "Não há dúvida", escreveu Lacerda, "que serão as mesmas. Pois os brasileiros também não são expulsos, presos e surrados nas bastilhas de Santos?".
Na ocasião, o deputado defensor dos direitos do operariado acusou o governo de expulsar 60 estrangeiros por suas ideias avançadas e de usar "a chibata nas prisões e a espada nas ruas". Disse que a inépcia do governo em lidar com a questão operária só favorecia a ação de grupos radicais, impedindo uma transição pacífica. A "ação radical", no caso, era o único instrumento do proletariado.
Segundo o Censo de 1920, nesse ano o Brasil tinha 9 milhões de trabalhadores rurais e 275 mil trabalhadores nas fábricas.
Ouça:
Hino A Internacional, em russo, pelo coro e orquestra do Teatro Bolsohi, regido por G. Rozhdestvensky em 1977 (arquivo MP3 com 5,6 MB, 3'59", 192 kbps):
Hino A Internacional, em português, versão do Partido Comunista (arquivo MP3 com 2,3 MB, 2'30", 182 kbps):
Arquivos sonoros originais em Hymn.ru. (consulta em 30/8/2012).
Primeira partitura da versão francesa L'Internationale, de 1888, com versos criados em 1871 por Eugène Pottier (1816-1887) e música por Pierre Degeyter (1848-1932), disponível na Wikipedia (consulta em 30/8/2012)
Veja:
"Libertários" - documentário dirigido por Lauro Escorel em 1976, produzido em preto-e-branco pela CDI/Dinafilme, vídeo postado no YouTube por Terra do Sol em 28/7/2023 (acesso: 15/11/2024)
Existe também uma versão restaurada do filme, publicada em 24/2/2020 pelo Projeto Laboratório Virtual - FAU ITEC UFPA
Clique >>aqui<< para obter o vídeo original em formato MP4 (28'33", 187 MB)
No início do século XX, muitos imigrantes (principalmente italianos, portugueses e espanhóis) chegam a São Paulo em busca de melhores condições de vida. Eles tentam se estabelecer no campo, mas os proprietários não vendem terras para eles. Eles são contratados para trabalhar na agricultura (café, algodão, etc.) em péssimas condições de trabalho e salários muito baixos. Eles se mudam para a cidade de São Paulo para trabalhar na indústria (Crespi, Votorantin, Matarazzo) e liderados por anarquistas, formam a classe trabalhadora no Brasil, organizando greves e lutando por melhores condições de trabalho e salários.
Em 1972, Lauro Escorel Filho iniciou as pesquisas para este documentário em um período muito difícil, quando o Brasil era governado pela ditadura militar. O resultado é um documentário magnífico, que explica a formação da classe trabalhadora no Brasil. Lauro Escorel Filho usa filmagens do filme privado de 1935 do fascista Conde Rodolfo Crespi chamado “Quinze anos de colonização italiana no Brasil”, feito para a Conde Crespi, mostrando seus pertences no Brasil, incluindo sua fábrica em São Paulo, e foi de fato uma propaganda fascista.
“Libertários” mostra as reais condições dos trabalhadores da indústria do Conde Crespi. Nos dias atuais, é engraçado ver os créditos que começam com a bibliografia usada para a produção do documentário, certamente para evitar problemas com a censura brasileira na época.
Sinopse de Cláudio Carvalho.
Lauro Escorel nasceu em Washington, Estados Unidos, em 1950. Um dos principais diretores de fotografia do cinema brasileiro, trabalhou em filmes como São Bernardo (1972), de Leon Hirszman, Toda Nudez Será Castigada (1973), de Arnaldo Jabor, Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1977, 1ª Mostra), de Hector Babenco, e Mar de Rosas (1978), de Ana Carolina. Dirigiu, entre outros, os curtas documentais Libertários (1976, 37ª Mostra) e Improvável Encontro (2016, 40ª Mostra), além dos longas Sonho Sem Fim (1985), A Fera na Selva (2017, 41ª Mostra) e Fotografação (2019). Foi membro do Júri da 30ª Mostra, em 2006.