Marca da Photographia Americana
Imagem: Museu Paulista/USP, reproduzida no livro Santos e seus Arrabaldes - Álbum de
Militão Augusto de Azevedo, de Gino Caldatto Barbosa (org.), Magma Editora Cultural, São Paulo/SP, 2004
O álbum de Santos
Gino Caldatto Barbosa
A documentação fotográfica da cidade de São Paulo,
realizada entre os anos de 1862 e 1863, levou Militão Augusto de Azevedo a produzir trabalhos similares em locais com expressão cenográfica diversa
da paisagem de terra e tabatinga da capital, captadas em incursões ao litoral, Serra do Mar e zona rural do interior do Estado.
É um período que inicia a trajetória profissional do jovem fotógrafo, na época com 25
anos de idade e alguma experiência no ramo, mostrando limitações que seriam, de certa maneira, contrabalançadas pela expectativa favorável diante do
amplo universo de trabalho a ser desenvolvido. As inúmeras possibilidades na reprodução e exploração de imagens, a liberdade de criação e
organização de ensaios e retratos e o retorno econômico promissor com o novo invento eram atributos compensadores e estimulantes que podem ter
influenciado a decisão de abraçar a carreira de fotógrafo.
Nesse contexto, o álbum da cidade Santos se apresenta como um dos primeiros
investimentos comerciais de Militão de Azevedo e, em particular, aponta para a tentativa de diversificar a produção e conseqüentemente buscar novas
demandas.
É notável que a conservação desse material fotográfico, sensível às rigorosas
condições climáticas dos trópicos, superou as vicissitudes do tempo. O mérito da preservação das antigas imagens ganha importância ao se constatar
que o acervo de pioneiros da fotografia no litoral paulista, antecessores da chegada de Militão, como Justiniano José de Barros, Eduardo Gnerin,
Henrique Deslandes, Jules Casimir entre outros, não teve a mesma sorte, restando infelizmente pouco material em boas condições.
Hoje, as fotos de Santos e arredores agregam valor cultural relevante. O caráter
temporal que o registro fotográfico do litoral paulista incorporou serve, entre outras leituras, como preciosa fonte iconográfica para o estudo da
arquitetura e do urbanismo da região. Imagens que emergem do passado como último testemunho da antiga cidade colonial à beira-mar, erguida com um "saber
fazer" hoje esquecido.
Acanhada e pequena, Santos era o espelho de um porto sem infra-estrutura, poucas
riquezas e vida tranqüila, sensivelmente captada pela lente de Militão e casualmente transformada em visão premonitória dos novos tempos que
estariam por vir. Possivelmente, o fotógrafo não imaginou que, enquanto caminhava pelas tortuosas ruas do porto em busca de melhores ângulos,
estaria registrando o epílogo de um passado que seria radicalmente alterado, poucos anos depois, pela exportação do café.
Os álbuns de Militão - A valorização do trabalho de Militão Augusto de Azevedo
é remota. Desde o início do século XX, suas fotografias eram destinadas a propósitos diversos. Serviriam para publicações em forma de álbuns de
postais, foram referência para pintores (Carvalho & Lima, 1993) e, nas últimas décadas, continuaram sendo tema
recorrente de exposições, estudos acadêmicos e projetos editoriais.
Milhares de fotos que constituem o patrimônio do fotógrafo, hoje com grande parte
incorporada ao acervo do Museu Paulista, atestam a incansável dedicação de quase trinta anos de profissão vividos em São Paulo, cidade que adotou e
de onde extraiu a matéria-prima essencial de trabalho. Militão comercializou álbuns, atendeu a encomendas, registrou personalidades, tipos anônimos,
ruas e casarios, ao sabor dos êxitos e fracassos que a atividade proporcionava.
O despertar do interesse manifestado pela fotografia tem data incerta. Acredita-se que
o envolvimento de Militão com a profissão tenha ocorrido em meados de 1862, quando chegou a São Paulo, vindo do Rio de Janeiro, como ator de uma
companhia teatral. Talvez a vocação artística lhe tenha aguçado a curiosidade para a nova forma de captar cenários, poses e representações,
levando-o a trabalhar na Casa Carneiro & Gaspar, prestigiado estúdio carioca que abrira filial em São Paulo, para em seguida realizar as primeiras
fotografias da cidade (Grangeiro, 2000, pp. 82-85).
O entusiasmo pela atividade evidencia-se na determinação e interesse pelo
aprimoramento profissional. Militão traduziu manuais técnicos, estabeleceu relações com fotógrafos experientes, realizou viagens ao exterior, onde
conheceu inovações, e, finalmente, montou negócio próprio, com a aquisição do estabelecimento de Carneiro e Gaspar, inaugurando o ateliê Fotografia
Americana.
Nesse momento, Militão aprimorou certa mentalidade empresarial, redirecionando os
trabalhos para as demandas comerciais emergentes. Acompanhou a febre retratista que tomou conta da capital paulista na segunda metade do século XIX
e empreendeu ensaios fotográficos na forma de álbuns, conseguindo êxitos comerciais razoáveis (Lago, 2001, p.222).
Talvez o resultado editorial mais satisfatório tenha sido o Álbum Comparativo da
Cidade de São Paulo, ironicamente o último trabalho. Produzido em 1887, o álbum juntou imagens da época com os primeiros registros da cidade
feitos pelo fotógrafo 25 anos antes, que serviriam para revelar visualmente e de maneira inédita dois momentos históricos do crescimento urbano da
capital. Proposta certamente amadurecida na época em que o fotógrafo viajou para a Europa, onde conheceu ensaios similares como o que Charles
Marville realizou em Paris (Carvalho & Lima, 1998, p. 114).
Em correspondência enviada a um amigo, Militão manifestou satisfação pessoal na
realização do trabalho, que marcou o encerramento de sua atividade fotográfica. A mesma carta revela uma confusão nas datas comparativas do álbum,
curiosamente o ano de 1878 é sugerido pelo fotógrafo como o período de finalização do trabalho, quando o correto seria 1887.
"Como Verdi despedindo-se da música escreveu seu Othelo,
eu quis despedir-me da photographia fazendo o meu. É um álbum comparativo de São Paulo de 1862 e 1878 [SIC].
Parece-me um trabalho útil e talvez o único que se tem feito em photographia, pois ninguém terá a pachorra de guardar cliches de 25 anos
(...).Neste trabalho andam um bocadinho de amor-próprio do artista e gratidão ao lugar em que estou a 25 anos"
(Kossoy, 2002, p.71).
Ao longo do século XX, seu trabalho teve merecido reconhecimento. Em 1905, ano de
falecimento, é publicado o Álbum São Paulo Antigo, pela editora Vanorden e Co., revelando ao grande público o pioneirismo do fotógrafo, que
nos anos de 1862 mapeou visualmente a paisagem da velha capital com um olhar relativamente despreocupado e romântico.
Quase uma década depois de sua morte, em 1914, a Casa Duprat relançou o Álbum
Comparativo, que incorporou fotos contemporâneas ao trabalho anterior. A versão promovia um sentido de continuidade histórica diante da
organização fotográfica pré-existente. O acréscimo de imagens atualizadas, com perspectiva visual similar à dos registros anteriores, conseguia
aguçar a curiosidade do leitor, que buscava compreender a cronologia construtiva do território paulistano ao mesmo tempo em que se espantava com a
velocidade renovadora do progresso.
O pioneirismo e a curiosidade revelados no Álbum Comparativo de Militão levaram
notoriedade ao fotógrafo para além de sua época. A confrontação entre tempo e espaço é revigorada, sobretudo quando o crescimento desordenado das
cidades, ao longo do século XX, foi marcado pela desqualificação da paisagem construída. A leitura visual da rotatividade do capital imobiliário na
renovação e adensamento urbano determinou ao trabalho fotográfico comparativo uma herança crítica diante do descaso e da ausência de políticas
públicas que coibissem tal destino.
Não foi por acaso que a contribuição iconográfica deixada por Militão mereceu, ainda
no início do século XX, o reconhecimento do jornalista Afonso de Freitas, que lhe atribuiu o título de fotógrafo-historiador (Lemos,
2001).
O ensaio fotográfico de Santos e da estrada de ferro - A cidade de São Paulo é
por opção o local em que Militão irá estabelecer relações sociais e profissionais até a aposentadoria, no final da década de 1880. Não se interessou
pela atividade itinerante, dispendiosa e cansativa, recorrente entre os colegas de profissão que acreditavam ser um meio eficaz para sobreviver do
ofício.
Exceção à regra ocorreu nos primeiros anos de profissão, quando realizou viagens para
o interior e litoral paulista motivado por novas perspectivas de trabalho e pela oportunidade de aprimorar o olhar a partir do contato com
paisagens, luzes e texturas diversificadas do universo visual do planalto paulistano. No litoral, o mar tem presença determinante nas fotos;
enquanto, nas imagens do interior e da ferrovia, o meio natural ainda virgem é o cenário predominante.
É impossível precisar as razões que o levaram a fazer um ensaio fotográfico da cidade
de Santos. Talvez decorresse de uma iniciativa pessoal, amadurecida durante o período em que permaneceu na região para retratar a construção da
Estrada de Ferro São Paulo Railway, na Serra do Mar; bem como poderia fazer parte de um amplo trabalho visual realizado a pedido dos capitalistas
ingleses investidores da obra.
A hipótese de as fotos de Santos estarem associadas ao material da ferrovia é
reforçada na documentação que acompanha a série de 21 imagens da cidade tiradas por Militão que fazem parte da coleção de Arnaldo Aguiar Barbosa,
cujas reproduções estão guardadas no arquivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional de São Paulo – IPHAN/SP.
Segundo Aguiar Barbosa, a promoção das fotografias se deve a seu bisavô João da
Fonseca Costa Hayden, banqueiro ligado ao grupo de visconde de Mauá, que havia chegado a Santos antes de 1860, vindo do Rio de Janeiro com a
finalidade de instalar o Banco Mauá e comprar terras para a construção da ferrovia (Barbosa, 1964, s/p.).
Hayden possivelmente adquiriu as fotos por interesse pessoal, pois o valor informativo
das imagens poderia compor relatórios do banco (Bandeira Júnior, 1967, p. 8) a serem apresentados aos investidores
ingleses, ou mesmo para servir como objeto de recordação da cidade, já que a transferência do banqueiro para Montevidéu para assumir o Banco do Rio
da Prata (Revista Commercial, 31/out/1865, p. 3) se dá na mesma época em que as fotografias foram tiradas
(1865).
Se, por um lado, o registro de Santos inicialmente teve propósito específico; num
segundo momento foi reutilizado para atender às necessidades comerciais do fotógrafo, o que se confirma pela encadernação existente no Museu
Paulista com o título Álbum da Cidade de Santos e seus Arrabaldes.
O trabalho de documentação do empreendimento ferroviário associado ao da pequena vila
portuária racionalizaram tempo e despesas de Militão com a estada. É possível que o desejo de organizar um ensaio dessa natureza tenha surgido
anteriormente, já que o fotógrafo estivera na região um pouco antes, o que lhe permitiu ter conhecimento prévio das potencialidades do lugar. Dessa
primeira visita, foi identificada uma foto geral obtida a distância, do outro lado do estuário, provavelmente tirada em 1863, que mostra a pequena
cidade portuária espremida junto ao Monte Serrate.
Nas últimas décadas do século XIX, Militão tentou negociar vistas da cidade de Santos,
dando preferência a tiragens avulsas, que remetia diretamente do estúdio de São Paulo ao consumidor do litoral. A estrada de ferro, que conheceu
desde a implantação, passou a fazer parte do cotidiano empresarial do fotógrafo e seus agenciadores. Pelos trens, enviava a mercadoria previamente
selecionada pelo representante de Santos, que por sua vez despachava em direção ao planalto material fotográfico recém-chegado ao porto.
Distância e falta de comunicação imediata com o varejo seriam contornadas pela
contabilização cuidadosa das remessas. A documentação do material e os procedimentos comerciais eram previamente acertados por correspondência entre
as partes, como forma de evitar problemas futuros. As fotos seguiam organizadas por numeração seqüencial para mapear a demanda, controlar o estoque
e localizar as matrizes no arquivo de negativos, segundo revela uma carta enviada a Friederich Hempel, dono de chapelaria em Santos, que tinha o
costume de vender fotografias como atrativo para o negócio:
"[Senhores] Friederich Hempel e Cia.,
Santos, rua 25 de março.
Remeto-lhes hoje com encomenda pela estrada de ferro as vistas de seu pedido,
mandando-lhes algumas de mais. Incluso vai o recibo da estrada de ferro e a nota das vistas últimas (que) lhe ficão (sic) debita(da) em 1/3 a
consignação. Com as vistas vai um index (para) lhe facilitar os pedidos não precisando mais do (que) (vossas mercês) pedirem pelo número sem mais
explicação. Será bom (vossas mercês) terem sempre aí uma vista de cada número (...) e assim ficarem com uma coleção completa (...) As vistas mais
vendáveis (que) são 8,10,12,14,15, e 18, é bom sempre lá ter demais, e pedir-me antes (que) elas acabem" (23/nov/1886,
transcrição de Araújo, 2003, pp. 125-126).
As imagens de Santos são pouco conhecidas na plenitude. Parcialmente foram exploradas
em pesquisas isoladas a partir da década de 1960, como peças de ilustração de textos e exposições em geral sobre a cidade de outrora. É difícil
precisar o número exato de fotografias diante da insuficiência de informações nas fontes documentais pesquisadas. Possivelmente, a quantidade
catalogada não se limita apenas às imagens apresentadas neste trabalho, em razão da possibilidade da existência de material avulso em poder de
colecionadores particulares ainda sem alcance do público.
Em 1886, Militão pretendia renovar o acervo de fotografias da cidade, talvez por
considerar o material existente já defasado diante do progresso que se evidenciava. Na correspondência a Friederich Hempel, revelava entusiasmo em
produzir novas vistas de Santos, a exemplo das fotos comparativas da cidade de São Paulo que planejava tirar no ano seguinte: "Vou
tirar vistas daqui e pretendo ir aí tirar algumas também (para) ficarmos com uma coleção completa e nova de vistas" (ibidem).
Não há confirmação quanto à concretização do objetivo almejado, na medida em que o
fotógrafo manifestou, tempos depois, pouca ilusão com o mercado litorâneo, o que está demonstrado na correspondência endereçada a Paulo Wilhens,
representante de Santos, em 1º de janeiro de 1887.
"Pelo seu silêncio parece-me que não tem vendido muitas
vistas, e que as cópias ficarão encalhadas. É uma infelicidade para ambos. Admira-me que ahí não se procurem essas cópias..."
(1º/jan/1887, transcrição de Araújo, 2003, p. 126).
Entretanto, a recente divulgação de um álbum da Estrada de Ferro São Paulo Railway ("Santos
em 1868 e a construção da SPR", 17/mar/2004), contendo duas imagens da cidade tiradas no final da década de 1860, levanta a hipótese da
presença do fotógrafo na região em outras ocasiões. Apesar de a autoria do material estar creditada a Edward Haigh, a maior parte das vistas que
configuram a nova coleção da ferrovia é reconhecidamente material de Militão, o que reforça a possibilidade de ocorrência de registros da cidade em
épocas diversas.
As coleções e álbuns pesquisados apresentam um conjunto diversificado de produção, são
objetos únicos de conteúdo distinto, feitos talvez para satisfazer demandas emergentes ou atender determinados clientes. Organizados individualmente
a partir de montagens específicas, divergem entre si na disposição, quantidade e âmbito registrado.
O álbum do Museu Paulista, contendo quarenta fotografias em pequeno formato, serviu
como base na sistematização do universo captado por Militão. Uma observação atenda revela que a obra mais se aproxima de uma construção
despretensiosa do fotógrafo que de um produto formatado para comercialização.
A organização das imagens insinua certa desordem na montagem, além de não obedecer a
seqüência visual lógica. Há fotos repetidas, inúmeras nem sequer possuem identificação, enquanto outras são acompanhadas de legendas imprecisas. Na
capa, a etiqueta manuscrita "Vistas da cidade de São Paulo", colada sobre o título original, Álbum da Cidade de Santos e seus Arrabaldes,
causa estranheza ao mesmo tempo em que lembra material de arquivo.
Por outro lado, a coleção de Aguiar Barbosa sugere a criação de subprodutos gerados a
partir do universo total documentado, direcionados para atender a demandas específicas.
Ao contrário da empreitada comercial que o Álbum de São Paulo assumiu em 1863,
os retratos de Santos tiveram resultado de vendas incerto. Embora a intenção inicial fosse a comercialização de um álbum de fotografias, a
negociação de imagens avulsas a serem vendidas em lojas e papelarias tornou-se prática comum nos anos subseqüentes ao ensaio.
A série de vistas de Santos, localizada na coleção de Luiz de Azevedo na década de
1970, reuniu cinqüenta imagens, boa parte inédita, cujas reproduções atualmente fazem parte do acervo do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,
Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo - Condephaat. Trata-se do registro mais completo de Santos que se conhece e possivelmente
teria servido de catálogo para comercialização avulsa. A numeração existente na parte superior de algumas fotos sugere destinação comercial
unitária, atividade que pautou o trabalho de Militão até os últimos anos.
Os registros do princípio da carreira revelam um momento de experimentação técnica e
visual do fotógrafo marcado pelo desprendimento estético e ausência de comprometimento profissional. Provavelmente, os temas urbanos valorizados nos
ensaios estivessem condicionados ao limitado universo fotográfico dos primeiros anos de atividade, considerando a incipiente vida profissional de
Militão e os precários recursos técnicos disponíveis: "A opção pela cidade-artefato deve-se, em parte, à baixa
sensibilidade das chapas fotográficas, que por isso exigiam um longo tempo de exposição, dificultando o registro com nitidez de elementos em
movimento" (Carvalho & Lima, 1998, p. 114).
Fatores de certa forma determinantes no condicionamento da linguagem estética por meio
da similaridade entre as imagens dos primeiros álbuns. Enquadramento, posição da câmera, temas retratados, tudo parece conspirar para a ocorrência
de registros quase simultâneos de lugares tão distantes.
Nas fotos de Santos, a leitura proposta não difere da narrativa linear contida nos
trabalhos de São Paulo e da estrada de ferro. A morfologia da cidade converge como narrativa predominante, construída por enquadramentos rígidos e
ponto de fuga centralizado. Na paisagem urbana, predomina o olhar distante, voltado mais para a leitura geral, interrompido às vezes por algumas
aproximações particularizadas. Valoriza-se o meio natural, edifícios, perspectivas e vistas panorâmicas; em contraposição aos personagens e tipos
urbanos, por exemplo, mostrados como espectadores distantes postados a serviço da escala da cidade e que exemplificam, em certa medida, as
limitações técnicas do momento conjugadas a uma percepção em formação.
Outro aspecto inerente às restrições técnicas vivenciadas e quase inevitáveis à
fotografia urbana consistia na ocorrência de efeitos visuais indesejáveis, causados pela incômoda presença de pessoas em trânsito captadas como
espectro, "fantasmas", que os fotógrafos mais experientes procuravam afastar das imagens (Lago, 2000, p. 22).
Por outro lado, a eternização da foto exigia do retratado a rigidez da pose e uma boa
dose de temo. Imobilidade impensável diante da atividade incessante do trabalhador, sobretudo escravo, condicionado a ser um corpo desfocado, objeto
inconveniente para a qualidade e precisão da imagem. Enquanto artigo ligado às elites, a fotografia, nos primeiros anos, incorporou de maneira
invisível os contrastes sociais do período, obtendo retratos desiguais dos habitantes - isto é, ao mesmo tempo em que registrava o ócio, dissimulava
o trabalho.
Militão se revela um fotógrafo despreocupado com as interferências prejudiciais dos "fantasmas"
na qualidade final da imagem, talvez por encontrar-se numa fase de superação de outras deficiências técnicas, o que acidentalmente o fez obter um
resultado visual próximo ao cotidiano vivenciado. Documentou elementos que identificam os atributos de cidade portuária, os navios ancorados no
estuário, as canoas, o mar, observados em certos momentos por curiosos transeuntes. As ruas ora cheias de carroças em movimento contrastam muitas
vezes com um cenário estático e vazio. Situações inusitadas e opostas do dia-a-dia da cidade, apresentada como espaço dinâmico e agitado que ao
mesmo tempo se revela um lugar desabitado e sem alma.
O aparente cotidiano retratado a partir de uma estética romântica se mostrará ambíguo
ao olhar colonizador do europeu. Assim, o casario antigo desalinhado, a rua de terra, os navios ancorados junto às pontes de madeira, a montanha
ainda virgem contemplando a cidade passam a ser testemunhos da incapacidade dos habitantes em prosperar: enfim, a própria imagem do
subdesenvolvimento, do atraso (Carvalho & Lima, 1998, p. 114).
Com a junção dos três álbuns fotográficos, involuntariamente Militão conseguiu
produzir um abrangente enfoque do espaço geográfico paulista. Imagens de Santos, estrada de ferro, São Paulo e arredores revelam estrutura visual
sistemática, observada no universo particular dos ensaios individuais, que reunidos se expressam como conjunto uniforme, dialogando entre si por
meio da narrativa linear empregada nas fotografias.
Se, por um lado, a produção de álbuns isolados tinha o objetivo de atender a demandas
específicas para suprir as necessidades financeiras de Militão; a reunião desses trabalhos, providencialmente ou não, constituiu ampla documentação
da paisagem construída do Estado de São Paulo, estruturada pelo eixo inicial do Porto de Santos, até finalizar no planalto rural, serra acima.
Preocupação inerente na elaboração do Álbum da Estrada de Ferro, de 1865, que
Militão organiza como uma espécie de guia de viagem, um itinerário fotográfico linear de aspecto quase didático. O observador é transportado como
viajante, seguindo os trilhos por meio da incursão visual principiada no litoral, onde embarca na estação ferroviária do
Valongo, para percorrer as escarpas da Serra do Mar por diversos planos inclinados, até cruzar a cidade de São Paulo,
passando pelas estações Bresser, Luz e Belém, encerrando a viagem em Jundiaí.
Militão em Santos - Em 1865, Militão reaparece na cidade de Santos para um
amplo ensaio fotográfico, dando seqüência aos registros urbanos idealizados em experiências inicialmente feitas em São Paulo. A iniciativa para
novos trabalhos, exploração de outros lugares, inspiração nos negócios eram atitudes que exemplificam, em certa medida, a motivação profissional dos
primeiros anos, que tempos depois se esvaiu.
Na chegada ao litoral, encontrou uma cidade de 8.000 habitantes, quase metade do
número da capital, amontoados em casas de pedra junto à tortuosa linha do cais. Santos possuía infra-estrutura precária, não havia esgoto nem água
encanada. O movimento dos navios próximo a toscos pontilhões de madeira lançados sobre a costa lamacenta do porto; o barulho das carroças que, em
grande número, transitavam diariamente pelas ruas Direita e Santo Antônio; as obras da estrada
de ferro, no bairro do Valongo, serviam de componente adicional para arrematar o quadro de deterioração ambiental que se agravaria tempos depois.
O rigor climático da região contribuía intensamente para acentuar as dificuldades de
adaptação dos viajantes. Quente, úmido, chuvoso e abafado durante quase todo o ano, o clima era um tormento adicional para quem desembarcasse no
porto. Até mesmo o ilustre explorador Richard Burton, nomeado cônsul britânico em Santos, preferiu as temperaturas amenas de São Paulo, mudando-se
junto com a esposa, Isabel, semanas depois da chegada à cidade litorânea, em setembro de 1865 (Burton, 1897, p. 250).
Similar impressão teve Maurício Lamberg, fotógrafo associado à firma Henschel & C., durante passagem pela cidade em julho de 1887, que no relatório
de viagem descreve:
"O clima é em geral insalubre, nos meses de verão, isto
é, de novembro a maio, torna-se realmente mortífero, podendo-se dizer que essa cidade pertence ao número das mais insalubres do mundo. Não há verão
em que a febre não ceife grande número de europeus. É preciso acrescentar que ultimamente Santos tem melhorado e feito obras importantes no porto:
mesmo como higiene e como clima ficou sendo um pouco melhor que antigamente" (Silva, 1995, p.
128).
Se a situação encontrada era desprovida de tranqüilidade e conforto, em compensação a
geografia se revela como cenografia privilegiada para ensaios fotográficos. O aspecto plano das ruas em contraste com o elevado morro em frente à
cidade, navios repousando no estuário e a Serra do Mar ao fundo atraíram a atenção de Militão durante todo o processo de trabalho.
As inúmeras possibilidades oferecidas pela paisagem devem ter estimulado o olhar do
fotógrafo na escolha dos melhores ângulos para a lente da câmera. Incansável, explorou a região em busca dos pontos ideais, atravessou o estuário e
subiu o morro tentando registrar a cidade por inteiro, percorreu todas as ruas até alcançar o subúrbio mais distante, junto à serra, para mapear
completamente o cenário vivenciado. Abusou de montagens panorâmicas por meio da junção de fotos, recurso usualmente adotado em outros trabalhos que
oferecia o máximo de fidelidade do local observado. Ao todo, reuniu um conjunto expressivo de imagens, próximo da dimensão do ensaio feito para a
cidade de São Paulo.
Curiosamente, algumas fotografias fazem lembrar o trabalho de
William Burchell, viajante inglês que registrou em aquarelas, no ano 1826, a pequena cidade de Santos. Burchell pintou dezoito paisagens e uma
vista geral, parcialmente publicadas na década de 1980 por Gilberto Ferrez.
A proximidade entre o registro de ambos levanta a probabilidade de um mesmo cenário
indutor. Ao adentrar o universo explorado de Santos, estabelecem métodos similares de reconhecimento territorial, persuadidos pela morfologia linear
do vilarejo portuário, às vezes com a escolha de vistas comuns. A permanência da paisagem urbana colonial, inerente às fontes iconográficas, se
apresenta como fio condutor atemporal entre os dois momentos distintos e oferece um sentido complementar para a construção visual da cidade no
passado.
A narrativa, empregada à guisa de mapeamento fotográfico, tem início na abordagem
geral da cidade, por meio de leituras panorâmicas, para em seguida focar ângulos particulares, feitos passo a passo, onde a rua estrutura todo o
roteiro visitado. Nesse ponto, os recursos da fotografia não são explorados apenas como instantâneo do tempo-espaço, nem como registro isolado de
imagens, mas posicionados para perfazer em papel a totalidade do ambiente observado.
Beneficiando-se das características físicas da pequena cidade, Militão procurou
reinventar à sua maneira a espacialidade da região. É como um processo de reconstrução da paisagem em que os fragmentos urbanos fotografados são
remontados em seqüência para rematerializar a leitura e a percepção plena do lugar.
Em cada ponto, observa-se uma preocupação em reunir o máximo de informação possível
diante das restrições técnicas impostas pela câmera. Realiza panorâmicas com fotos seqüenciais, registra planos opostos de um mesmo ponto, reinventa
perspectivas com a junção de imagens sucessivas, como se buscasse transgredir os limites de enquadramento retangular inerente à chapa fotográfica.
Os registros feitos nas ruas São Bento, Santo Antônio, Direita,
Caminho da Barra e Meridional são exemplos de tomadas conseguidas pelo movimento circular da câmera a partir de um ponto. Na montagem de vistas
consecutivas, o fotógrafo recorre às referências arquitetônicas e geográficas para balizar a justaposição de imagens, a exemplo de William Burchell,
que empregou equipamentos auxiliares para reproduzir com exatidão a representação gráfica da cidade, em jornadas distintas, do lugar onde havia
parado (Ferrez, 1981, p. 23).
Militão utiliza expediente menos sofisticado, elegendo em mais de um caso o telhado de
sobrados como ponto de contato entre duas fotografias, demonstrado em panorâmicas tiradas das ruas do Campo, Meridional e da Praia. Registros feitos
do alto de um sobrado parecem constituir um quadro fragmentado em que a ausência de partes complementares impede a leitura visual em 180 graus.
Outro grupo de vistas realizadas do porto demonstra uma provável seqüência interrompida, certamente composta por mais do que as cinco fotos
remanescentes.
Indiferente à disposição quase aleatória das imagens do álbum conservado no Museu
Paulista, a abrangência do universo fotografado deixa supor a existência de um roteiro viário previamente traçado por Militão para o deslocamento da
câmera. Assim, é possível construir uma seqüência visual quase didática, dentre as inúmeras possíveis, a partir do universo produzido, que, de certa
maneira, condensa a intenção descritiva do fotógrafo.
Apesar da organização descontínua do material, a montagem do Álbum de Santos
revela indícios de estruturação seqüencial denotados, inicialmente, pela disposição de imagens gerais da cidade como forma de estabelecer
aproximação com o objeto retratado.
Tomadas do alto do morro, as primeiras fotografias se convertem em mapas de
reconhecimento do local, de onde se constroem as referências iniciais do sítio, identificando os eixos viários, a geografia e o adensamento das
construções na orla portuária. Do outro lado do estuário, a cidade, horizontal e uniforme, é revelada por inteiro. A presença da arquitetura é o
contraponto ao meio natural, que se impõe e determina a fragilidade do lugar, que sucumbe diante da proximidade do Monte Serrate. A imagem,
articulada por meio da justaposição de duas fotos, desperta atenção pelo olhar romântico, semipictórico de Militão, que posteriormente irá
influenciar a linguagem visual de todo o ensaio.
Na seqüência proposta, o porto, retratado em quase toda a extensão, é o ponto de
chegada de onde se avistam navios atracados que induzem o observador ao sentido de desembarque. A descida prevista poderia ser em qualquer
pontilhão, entretanto o cais da Alfândega, no coração da cidade, se destina como local mais adequado, que atraiu o interesse
de Militão, o que se denota em face da quantidade de imagens feitas do logradouro, constituindo cerca de vinte por cento do ensaio.
O mapeamento fotográfico se desdobra no sentido Sul, pelo Caminho da Barra, onde
realiza algumas tomadas, redirecionando o trajeto para o lado Oeste da cidade, pelas ruas Áurea,
Rosário, Direita, Santo Antônio, da Praia, até alcançar o bairro do Valongo, pelo eixo viário das ruas Formosa e São Bento.
Nesse ponto, a presença da estação ferroviária, recém-construída, com galpões e
atracadouro para navios, somada ao registro do cemitério dos ingleses, no bairro de Paquetá, insinuam o compromisso do
ensaio com uma clientela específica. Pelos trilhos da estrada de ferro, a incursão termina no encontro com a Serra do Mar, mostrando a pequena
estação de Cubatão, as obras e o acampamento precário dos operários.
Mesmo com recursos técnicos limitados, Militão realizou experimentações centradas na
composição das fotos, sobretudo na montagem de panoramas obtidos nos registros urbanos de São Paulo e Santos entre os anos de 1862 a 1865.
Talvez fossem oportunidades momentâneas para exercitar a criatividade com a câmera se
comparadas com a rotina do retratista, passada a maior parte do tempo dentro do estúdio em meio à repetição de poses rígidas e limitação
cenográfica. A simplicidade das cenas de ruas e casarios, quase uma reprodução dos enquadramentos e perspectivas que a pintura havia explorado no
passado, ganha sentido renovador por meio das tomadas panorâmicas que organizou. Constituídas da divisão do espaço em planos, uma vez agrupadas
possibilitam uma visão peculiar da paisagem registrada, método que estranhamente ficou restrito aos primeiros ensaios fotográficos.
Militão nunca mais empreendeu experimentações similares; mesmo com a produção do
Álbum Comparativo, em 1887, sua preocupação ficou limitada a cotejar dois momentos históricos da cidade, deixando de lado a leitura seqüencial
do espaço documentado 25 anos antes.
Um olhar cuidadoso para a natureza da representação
das duas cidades revela o vocabulário comum a cada trabalho e, paralelamente, sugere a tentativa de Militão em organizar uma linguagem fotográfica
própria. A configuração das imagens em termos de forma e conteúdo - quase sempre pautada pela imobilidade do enquadramento, horizontalidade da
composição, montagem de panoramas, despojamento e informalidade nas cenas registradas, recorte angular das arestas do papel fotográfico - desperta
atenção para o perfil homogêneo de seu trabalho. Ao mesmo tempo, é o reconhecimento do maneirismo que exercitou, ainda que de forma inconsciente,
nos primeiros anos de atividade profissional, quando realizou o Álbum de Santos.
BIBLIOGRAFIA
ARAÚJO, Iris
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