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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - MACUCO
Histórias do início do bairro do Macuco (3)

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Texto publicado no jornal santista A Tribuna e incluído pelo autor na obra Imagens de um Mundo Submerso (volume I, 1995, editora Leopoldianum, Santos/SP):
 


O bonde 19, na Avenida Pedro Lessa, sobre o Canal 5, em 1970
Foto: Franco Leone Caichiolo

O Macuco e seu espírito pioneiro

Nelson Salazar Marques

Eu disse, certa vez, que o bonde 19 representava para a História de Santos o que os carroções dos pioneiros americanos representaram para a conquista do Oeste americano, guardando-se as proporções devidas nessa saga de conquista. É como se o estivesse vendo: ele vinha num trote metálico e imponente pelas Docas abrindo caminho entre os navios atracados e os caminhões da CUT e da CGT (N.E.: centrais sindicais: Central Única dos Trabalhadores e Confederação Geral do Trabalho), e de repete, mergulhava num areal imenso e escaldante a partir da avenida Rodrigues Alves. E dali para frente ele parecia virar um burro de carga, suarento e pesado, rangendo nos ferros a sua dor de ser bonde.

Leito de rua, nem pensar. Só areia. O mundo do Macuco, àquela época, estava ligado à areia da praia: era um lençol só que se esticava pelas avenidas Pedro Lessa e Senador Dantas, ruas Castro Alves, Benjamim Constant, Álvaro Alvin e todas as demais até juntarem-se num oceano de areia ao tocarem com a avenida Afonso Pena. Olhava-se para a direita, para a esquerda, só areia. Ela estava em toda parte; cobria, muita vez, os próprios trilhos do bonde. E o bonde 19 avançava Macuco adentro mais parecendo um galeão espanhol flutuando naquele mar de areia. Esse areal imenso morria ao bater na muralha de residências que seguia a linha da praia ali pela altura da igreja do Embaré. Mas era uma muralha desdentada, desfalcada de muitas casas e através dos grandes espaços ainda conseguíamos ver o mar a uns dois quilômetros de distância.

Nesse deserto escaldante (o calor daquele tempo era muito mais abrasador, infinitamente mais abrasador: no verão chegava-se aos 40º à sombra com facilidade. É coisa interessante: em uma de nossas conversas com o lingüista Charles Bouton, na Alliance Française, de Paris, ele nos fez uma revelação significativa. Em sua infância, ali por volta de 1925, as águas do lago do Jardim Luxemburgo congelavam e ele o atravessava correndo para encurtar o caminho que levava ao Boulevard Saint Michel, mas 30 ou 40 anos mais tarde essas águas passaram a não mais congelar. Isso leva à teoria de que os países frios estão ficando mais quentes e os países quentes estão ficando mais frios) e, então, nesse deserto escaldante do Macuco, surgiam de repente enormes manchas verdes que cobriam áreas imensas: eram as chácaras dos japoneses. Parecia mentira: uma família de japoneses, duas ou três pessoas, esticava naquele areal a perder de vista um quilômetro de plantação e machuchu, um milagre de germinação. Essas chácaras começavam na avenida Conselheiro Nébias, atravessavam o Macuco e avançavam pelos canais 5, 6 e 7. O termo japonês era, para nós, associado a machuchu.

Foi este o Macuco físico que eu encontrei ali por 1939, garotinho ainda. Eu saída da efervescência do Bairro Chinês, onde o tempo parecia até pedir licença para se retirar, tal a sua aderência ao nosso cotidiano. Coisa extraordinária: tudo era Macuco. Metade de Santos parecia ser Macuco. Saíamos da faixa do cais e já penetrávamos no Macuco. Avenida Afonso Pena - um mar de areia - Rua Castro Alves, região próxima à Avenida Conselheiro Nébias, Canal 4, Canal 5, Canal 6, tudo Macuco. Nesse território gigantesco pequenos enclaves mantinham certo charme pelos nomes arrevesados e sonoros: a Vila Hayden e a Vila Jockey. Ali, garoto ainda, caía na solidão dos grandes espaços... e naqueles dias de chuva víamos da janela o mundo desabar em água, numa chuva desobstruída caindo por quilômetros com uma fúria quase inumana.

Esses dias molhados, longos e arrastados, puxavam-nos para a introspecção. Às vezes, ao empinar papagaio, tinha a atenção presa nos grandes navios que entravam na barra. Era uma visão súbita porque eles não entravam apitando... De repente lá estava aquele monstro pré-histórico diante de nossos olhos. A primeira dessas visões foi impressionante e eu acho que deveria ter sido o navio alemão Cap Arcona, pelo seu porte gigantesco. A vista era desimpedida, o descortino, total, porque não havia casa para aqueles lados, só chácaras... mas a distância, a pouca altura das estacas que sustinham os machuchais era minimizada de tal maneira que podíamos ver o casco negro dos grandes transatlânticos e, em certas partes, até a água espumante que a sua tonelagem deslocava ao passar. E não era raro ver-se alguém apoiado no cabo de uma enxada, as tarefas momentaneamente interrompidas, embevecido na visão súbita. O Cap Arcona parecia uma cidade flutuante e ele deslizava belamente por cima dos machuchais. Era uma visão hipnotizadora.

E viriam outros grandes transatlânticos, geralmente da Mala Real Inglesa, como o Alcântara, o Astúrias, Arlanza. O navio francês Normandie, de tão grande, nem conseguia entrar no porto de Santos: ancorava na Ilha das Palmas e os seus passageiros eram transportados de lancha até o cais. E por muito tempo, na Praça Mauá e na Praça Rui Barbosa, a cidade só falava no Normandie. Havia exageros e alguns diziam que ele tinha um quilômetro de comprimento. Muitos acreditavam realmente.

Esses grandes transatlânticos saíam à noite e a visão era ainda mais impressionante. Aqueles milhares de luzes acesas dentro da noite, movendo-se em direção ao mar aberto, coruscavam como diamantes e arrepiavam. Eles saíam do porto apitando, os navios hoje já não apitam mais, são frios e inumanos. Era um apito triste que deixava ressonâncias pungentes nas noites escuras do Macuco;  tão logo o barco anunciava a sua presença, nós, lá em casa, íamos para a varanda seguir a sua trajetória noturna. Ele chegava ao fim do canal, soltava um último apito; depois se aprumava em direção ao mar e as suas luzes iam se embolando na escuridão. A minha mãe acenava para ele e dizia com grande emoção: "Deus te guie".

Então estourou a guerra e os grandes transatlânticos desapareceram de Santos e do mundo, engolfados pela era dos aviões a jato. Um dia escrevi uma carta para uma correspondente alemã que morava em Bonn: "Você teria condições de me dizer por onde anda o Cap Arcona"? Ela foi à embaixada, revirou papéis, consultou redações de jornais e por fim mandou a resposta: "O Cap Arcona foi transformado em transporte de guerra por ordens de Hitler e afundado pelos ingleses em 1943, e hoje repousa no fundo do Mar Mediterrâneo". Ó Cap Arcona, requiescat in pace: um pedaço da minha infância afundou comigo. E de muitas outras infâncias.


O bonde 19, na região do Mercado, a caminho da Av. Pedro Lessa, em 1950
Foto: Museu dos Transportes

E o bonde 19 já ia trazendo gente, povoando aquelas regiões desérticas, gente que logo se instalava em chalés de madeira. Em nenhum outro bairro de Santos o chalé imperou tanto como no Macuco... eram ruas inteiras de chalés, a Comendador Alfaia, a Nabuco de Araújo, Torres Homem, a Liberdade e dezenas delas. Era o tipo de construção adequada para o pioneiro... O chão era quase de graça e em dois ou três dias a casa estava de pé. Os vizinhos ajudavam e eu carreguei muito prego.

Coisa interessante, o Macuco chegou a desenvolver ali pela década de 40 um tipo de sociedade ruralista que o tornava auto-suficiente e isso se deveu ao seu território até então virgem e intocado; por debaixo daquele lençol de areia havia uma espessura de uns vinte centímetros de uma camada de terra semelhante a uma geléia negra. Depois vinha uma camada cor de gelo de uma areia quebradiça e sem consistência, logo seguida por um tipo de argila arenosa cor de doce de leite toda empapada de água... Buraco de mais de meio metro de fundura deixava vazar água e isto esterilizava o solo da ilha para práticas agrícolas.

Esse torrão de geléia negra eu só vim conhecer no Macuco e tudo que se possa imaginar germinava ali. E cruzar os quintais daquelas casas, na década de 40, era ver hortas imponentes, criação de galinhas e porcos. E ele se foi transformando num grande empório e essa atividade foi fazendo do Macuco um bairro extremamente poderoso economicamente. Mas essa prosperidade não veio só: ela trouxe em sua esteira os valentões, uma fauna estranha e quase incompreensível para uma pessoa de nossos dias.

Quem eram esses valentões e o que queriam? Não chegavam a ser marginais, no sentido que esse vocábulo tem hoje. Não eram gangsters e nem pertenciam a grupos mafiosos. Não tinham interesses maiores e nem escusos: só queriam ser respeitados, impor medo. Seu habitat natural era a temida Bacia do Macuco, mas depois da década de 30, com a prosperidade das terras vizinhas, eles foram se achegando. Eles tinham um código de honra, facilmente discernível atrás de sua conduta: não molestavam crianças, nem mulheres, nem velhos. Não se tinha notícia de que jamais tivessem roubado e o seu domínio era circunscrito a áreas determinadas. Mas ai daquele que desafiasse um valentão, que perturbasse o seu universo de conquistas e poder. E o que era desafiar um valentão? Era contradizê-lo, dizer que ele estava errado, em público.

Os seus bunkers eram os bares. O Mar e Terra, na zona portuária; o São Francisco, na Pedro Lessa. Ali eles reinavam; às vezes dois valentões se pegaam e o Macuco tremia. Me lembro de uma dessas lutas em frente ao Cine Santo Antônio, luta a faca, lambedeira friccionando lambedeira, naquele ruído de metal de lâminas que se encontravam. As pessoas assistindo em círculo aberto... e os valentões na refrega de vida e de morte até que um golpe certeiro estripou um deles. Ainda me recordo de que o vencedor não fugiu, ficou por ali conversando com os assistentes até que a polícia apareceu. Evidentemente que queria prolongar por mais tempo o desfrute da vitória e depois entregou-se pacificamente sem protestos nem nada. O mais famoso deles era o Navalhada. O seu nome passou a ser uma lenda viva e ele realmente assustava.

Mas o meu espírito ficaria muito inquieto se eu não falasse aqui do mais singular dos valentões: o Simião. Simião era gordo e bonachão. Ele caminhava lento como se nunca tivesse pressa em chegar ao seu destino, jogando os flancos para os lados, ao caminhar, antes de levar o passo à frente. Não tinha pressa nos gestos e na fala. Simião tinha uma característica que despertava a atenção: naquela soalheira de 40º à sombra, seu rosto luzidio estava sempre seco. Sua presença não inspirava medo e ele distribuía balas para a garotada. Lembro-me de tê-lo visto distribuir balas. E mais tarde eu o compararia àqueles marinheiros do livro "A Ilha do Tesouro".

Lembro-me de tê-lo visto uma tarde. Ele deveria ter ido visitar um amigo e de minha janela eu podia vê-lo bem de perto. Ele estava tranqüilamente sentado sobre um cepo de tronco de árvore que fazia as vezes de um banco e lia... a Bíblia... os Santos Evangelhos à sombra de uma ameixeira. Eu vi apenas um livro, foi minha mãe quem reconheceu nele a Bíblia. Simião era crente. A década de 50 pôs fim a essa era um tanto romântica dos valentões que faziam as noites do Macuco perigosas e excitantes. Ó estranha fauna de homens, que tudo o que queriam era impor respeito.

Aquele que hoje se detenha a pensar sobre a guerra de 39 e os seus efeitos, dificilmente terá uma idéia sequer aproximada da neurose que se abateu sobre Santos, e, evidentemente, outras cidades costeiras brasileiras; mas Santos, por ser o sistema nervoso central da economia do País, sofreu mais. Víamo-nos cercados por invasões iminentes dos alemães e quando íamos à praia os olhos automaticamente corriam o mar à procura de periscópios de submarinos: "Olha, olha, lá tem um"... "Eu vi um lá", eram exclamações freqüentes.

O blackout permanente a que fomos submetidos teve efeitos psicológicos devastadores... Vidro de porta e janela pintado de preto... Bonde que circulasse pela praia tinha a luz amortecida e as corredeiras de lona verde descidas... Acender cigarro nas ruas era risco certo de ser tomado por espião alemão. Vizinho desconfiava de vizinho: "Ontem à noite ele deixou a porta da frente aberta para avisar os alemães". Os trens da SPR que vinham de São Paulo tomavam precauções que, vistas a distância, revestem-se de um ridículo atroz: quando a composição ia se aproximando do Rio Casqueiro, vinha um inspetor e fechava todas as janelas; e se alguém perguntasse ao inspetor a razão daquilo, ele simplesmente dizia: "São os submarinos alemães".

As histórias corriam com a rapidez do vento. Algumas eram fantásticas, mas as pessoas acreditavam: um dia alguém disse ter visto uma lanterna brilhar no alto da torre da Igreja do Embaré e a lanterna apontava para o mar e fazia sinais para a esquadra alemã que estava prestes a bombardear Santos. À noite muitas pessoas iam sorrateiramente até lá para ver as tais luzinhas saindo da torre. Eu também fiz uma dessas viagens, altas horas da noite. Sentávamos no meio-fio e ali ficávamos, olho grudado na torre da igreja, mas ninguém via a tal luzinha. "Eles agora estão usando raios infravermelhos que só os alemães podem ver", alguém dizia. Desolados, nós descíamos a Rua Benjamin Constant em direção a casa. Era tão pouco o que nós queríamos: bastava que um frade capuchinho, amigo e compreensivo, abrisse apenas uma janela e nós já teríamos o que contar em casa e na escola.

E então os japoneses desapareceram do Macuco. Caminhões sombrios, cobertos de lona, deslizavam discretamente na calada da noite e expeliam, de seu bojo, soldados do exército fortemente armados. As famílias japonesas foram enfiadas nesses caminhões só com a roupa do corpo e nunca mais foram vistas em Santos. Pra onde foram? O que aconteceu com elas? Eu nunca soube dizer. E os dias subseqüentes trariam em seu bojo cenas inenarráveis de vandalismo: o início dos saques.

Tenho desse episódio visão nítida e indelével que mais de quarenta anos não conseguiram sepultar. Eu descia a Avenida Senador Dantas certa manhã, acompanhado de meu irmão mais velho a caminho da escola - deveria ser ali por volta de 1942 - e então eu os vi... eram os saqueadores. Eles vinham por trilhas de dentro dos capinzais e pareciam formiguinhas obreiras. Eram homens, mulheres, crianças e até velhinhos e velhinhas de passos trôpegos, todos trazendo às costas os produtos roubados das casas dos japoneses, deixadas vazias e sem guarda à porta. Eram incansáveis. Centenas deles que iam e vinham carregando, a princípio, móveis, rádios, vassouras, roupas, galinhas, porcos e até cachorros, e, mais tarde, o próprio produto das chácaras: machuchus, batatas e abóboras, tudo arrancado do solo. Eles desciam a Senador Dantas carregando pencas de batatas com as raízes à mostra e, em longas filas sinistras, as exibiam com orgulho de um troféu de batalha. Lembro-me de que alguns se esgueiravam envergonhados e desviavam o olhar.

Fruto de uma educação disciplinada, eu não podia compreender uma coisa daquelas e a devida avaliação desse fato eu só faria mais tarde. A teoria de Rousseau sobre a bondade inata do homem e da força deletéria da civilização, sofreu ali um golpe mortal. E, então, fui me convencendo de que o homem é um ser basicamente mau e que só a civilização e a escola o humanizam e o despojam de suas origens animais latentes, mas sempre prontas a aflorar à superfície. Mas com todas essas torpezas - que eu acredito sejam inerentes ao gênero humano - o Macuco foi um bairro heróico e pioneiro: ele foi o grande laboratório experimental de Santos.

É difícil dizer-se quando um bairro começa a se descaracterizar, quando as suas arestas vão se polindo na mesmice daquele cotidiano avassalador, até ele se tornar uma esfera igual a todas as outras esferas. Mas, embora correndo os riscos a que se expõe um tecelão da História, eu vou tentar explicar a lenta e gradual descaracterização daquele Macuco dos valentões que eu encontrei no início da década de 40. A saída dos japoneses trouxe a eliminação das chácaras e o aparecimento das grandes várzeas. Essas várzeas foram se transformando em campos de futebol, que proliferaram em mais de centenas deles, tornando o bairro um aprazível centro esportivo (o goleiro Gilmar, campeão mundial de 1958, surgiu num desses campos, ali junto à Rua Álvaro Alvim, no Liberdade Futebol Clube).

O surgimento súbito do Grupo Escolar Cidade de Santos, construído pela Companhia Docas de Santos e cedido à Prefeitura, ali por volta de 1939 e 40, foi outra importante etapa nesta metamorfose. Ele civilizou o Macuco. Até então a única grande escola do bairro eram as ruas. O Cidade de Santos disciplinou a molecada, levou-a para os livros, para as leituras de Viriato Correia e Monteiro Lobato... do Tocha Humana e do Príncipe Submarino. O Cidade de Santos era uma escola de um requinte e luxo excepcionais para a época e aluno que saía dali fazia boa figura no Ginásio Santista com as suas fardas brancas de gala, no Colégio Canadá e no colégio dos padres carmelitas. E aquela garotada que caçava peixinhos nas valas infectas do Macuco começou a desfilar pelas ruas da cidade em suas belas fardas cobertas de medalhas honrosas - quem se salientava nos estudos ganhava uma bela medalha, algumas delas até banhadas em ouro: parecíamos generais de batalhas incruentas iguais a esses dessas repúblicas sul-americanas.

Depois veio o cine Santo Antônio e universalizou o Macuco aos demais bairros de Santos, tirando-o daquele isolamento a que ele tanto se afeiçoara e dentro do qual tanto crescera. E depois, ó, golpe, fatal e decisivo, veio a rua Castro Alves e as suas mansões. Castro Alves, primeira rua realmente chique que Santos teve, cuja atmosfera exalava requinte e luxo.

Ela saía da praia e como um arpão destruidor e mortal foi penetrando o Macuco, que ainda conseguiu detê-la, a muito custo, ali na Pedro Lessa. Mas o estrago já estava feito e seria irreversível. A rua Castro Alves trouxe a rua São José e elitizou a área e o velho Macuco selvagem já começava a agonizar.

Então aconteceu um fenômeno surpreendente: a palavra Macuco passou a incomodar e, se indagado onde morasse, a pessoa ia logo dizendo que morava no Embaré. Macuco? Não, eu moro no Embaré. E por um diabólico processo de engenharia e arruamento, o Bairro do Macuco começou a encolher. Primeiro foi contido pela avenida Pedro Lessa e depois, retrocedendo sempre, foi amarrado pelo grande corte transversal da avenida Afonso Pena. E então, lentamente, foi voltando às suas origens, à velha e legendária Bacia do Macuco... ó, ingratidão, ó, velho Macuco, como te maltrataram!

Mas ainda hoje, quem por acaso fale com seus velhos moradores, ouve estórias interessantes e surpreendentes. Uma delas é que nas noites invernosas em que as pessoas se recolhem mais cedo e quando uma tênue cortina de nevoeiro cobre as avenidas Pedro Lessa e Senador Dantas, ouve-se , dentro das casas, o ruído de um bonde passando lá embaixo na avenida deserta. Alguns afirmam ser o velho bonde 19 que volta ao seu percurso normal. Outros dizem, ainda, que são capazes de ouvir a voz do bonde na articulação daquele ranger de ferros cadenciado, e que o bonde com voz profética solta maldições terríveis contra os administradores burros que arrancaram da terra generosa aqueles trilhos pioneiros e sobre ela fizeram correr esses ônibus trambolhudos, deficientes e deficitários.

É bem verdade que alguns desses moradores dizem que a tal voz do bonde e as suas medonhas maldições são coisas de saudosismo. Mas todos eles concordam que o velho bonde é ouvido fazer o seu passeio noturno pelo Macuco nas madrugadas nevoentas de inverno.


O bonde 19, na Avenida Pedro Lessa, sobre o Canal 5, em 1970
Foto: Franco Leone Caichiolo

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