ESCRITOS
Molecada do Macuco era muito matreira
Apesar da esperteza, os meninos nunca conseguiram surpreender Papai Noel
Narciso de Andrade (*)
Colaborador
Se você não acredita, não ganha presente. E a gente
passava a acreditar, com muitas reservas, achando que não passava de um velho louco com a mania de entrar na casa da gente pela chaminé.
- Então, vamos esperar na cozinha e dar o flagra nele.
A molecada do Macuco era escolada e matreira. Mas nunca, nunca de núncaras,
conseguimos surpreendê-lo.
- Também, já passava da meia-noite, baixou o sono. Descuidamos.
Mas que ele estivera lá não dava para duvidar.
- Mãe, chama o Papai Noel, não foi isso que eu pedi.
- Papai Noel já foi, só volta no ano que vem.
- Sacanagem.
Mesmo assim o presente era exibido para os Necos, Rafas, Cyros e Tupãs, tropa gloriosa
do bairro, cada um mais valente e curioso do que o outro.
- É pra ver não é pra mexer.
- Então, pode se mandar.
- E os teus, cadê os teus presentes? Também quero ver.
- Eu ganhei um patinete azul, de corrida. Rolemã especial.
- Rolemã especial, o que é isso?
- Isso é isso mesmo. Duvida?
Geralmente, o que a turma ganhava no Natal era criado e produzido pelos próprios pais
que punham o maior capricho na confecção do brinquedo. E o tal rolemã especial era coisa da cabeça do pai do Zezo inventada para bordar um pouco a
alegria do moleque. Por causa disso, Zezo e Tunha, depois de esvaziar o estoque das feras palavras aprendidas nas ousadas excursões pela
Bacia, estão quase se pegando.
Mas aí intervém São Sebastião, o maior e o mais manso da turma, sempre chegando na
hora certa para evitar as achas e bolachas. Que os meninos do bairro não davam moleza nem no Dia do Natal. Esse São Sebastião, que falei, nunca
levou flechada, mas tinha a cuca feita e o azul do olhar dele parecia mesmo de santo. Nunca brigou com nenhum de nós, não precisava. Bastava olhar
para ele para entender que estava com a razão.
A gente tinha orgulho daquele amigo que surgia sempre na hora certa. E nem sabíamos
onde morava. São Sebastião no Macuco, cujo sonho era tocar surdo militar na Banda dos Fuzileiros Navais. Aliás, esse era um sonho comum a muitos
daqueles habitantes dos vastos areais macuquenses.
Estou falando de um tempo muito antigo em um 25 de dezembro que chega até aqui meio
embaçado, mas ainda azul. Muito antigo mesmo. Quando aquele velho senhor de barbas brancas e rutilante traje vermelho chegava no bonde 5, no 15 ou
no 19. Ou então, revivendo seus tempos de moleque, "pegava gás" num carroção de café e atravessava a Silva Jardim de ponta a ponta, desde o Mercado
até a Afonso Pena.
E olha que era um senhor trajeto, principalmente para quem vinha carregado de
encomendas. Quem viveu aqueles tempos sabe disso. As ruas não eram calçadas, tudo areião. Na Afonso Pena tinha uma árvore que exigia 6 ou 7 homens
para ser abraçada. Isso eu nunca vi, mas me contaram, não é do meu tempo. Passei como ouvi. E vou em frente.
Tenho a impressão de que o referido senhor de barbas brancas chegava lá pelas alturas
do Macuco depois de ter percorrido certos bairros de fortuna privilegiada como o Gonzaga e redondezas. Na verdade, sobrava pouca coisa para a gente.
Eu posso afirmar o que digo porque também morei no Gonzaga e no Boqueirão, onde meu irmão nasceu no então 577 da Conselheiro Nébias.
Mas isso não é uma queixa, mesmo porque criança tem outras preocupações. E tanto me
dei bem no Ginásio Santista como no pequeno colégio primário de D. Natalina, filha do emérito educador prof. Tarquínio Silva, ali na Rua Luís Gama.
Esse negócio de divisão de classes sociais é coisa de adulto. De mau-caráter. Os tais que só aceitam Cristo porque era descendente de Davi. Para
nós, Cristo era apenas o filho de José que tinha igreja no bairro.
(*) Narciso de Andrade é poeta e escritor. |