As Viúvas Negras do Macuco
Nelson Salazar Marques
Muito da Idade Média ainda chegou vivo às nossas costas
e se fazia presente na década de 40 e, se for visão analisada pelos olhos de hoje, haverá sempre nela um sabor pitoresco. É visão que delicia um
memorialista como eu, mas que perturbará um historiador ou um sociólogo que cave fundo as raízes do fenômeno. Eu falo das viúvas negras. Quem eram
as viúvas negras? Eram mulheres novas e velhas que arrastavam pelo chão da idade aqueles enormes vestidos pretos de retinta cor de azeviche atrás
dos quais se encastelavam em sua viuvez.
Pra mulher portuguesa perder marido era perder tudo. O marido era o seu mundo, o ar
que respirava, o cérebro pelo qual pensava. Marido novo não havia. E então se empacotavam dentro daquelas roupagens negras e se consumiam entre o
trabalho duro e as lembranças do falecido. Marido morto era marido adorado, virava santo.
Não me parece haver na história da civilização ocidental dependência feminina maior do
que a da mulher portuguesa ao seu homem. Servidão total. Apanhavam do marido, levavam surras homéricas, mas continuavam a segui-lo sem queixas nem
azedumes. Vi muita vez em São Paulo tia minha levar bordoada retumbante até ir ao chão, e depois de levantada mais bofetões no rosto. E tudo issso
sem protestar. À noite, o caldo verde à mesa, a conversa entre os dois era tranqüila, como se nada houvesse acontecido. Ele era o Senhor, tinha
sobre ela direitos de vida e de morte. As novelas radiofônicas e mais tarde a televisão foram dando àquelas pobres mulheres uma nova visão do mundo
e esta nova visão deve tê-las perturbado muito.
O ritual de feitura de uma viúva negra era macabro e ao mesmo tempo fascinante para
garoto de minha idade. Começava geralmente cedo, de manhã, com gritos lancinantes que o vento trazia não se sabia ao certo de onde. Minha mãe ia até
a porta e dizia: "Meu Deus, morreu alguém". Então ela se benzia em respeito àquela grande tragédia que o vento trazia até a porta da nossa casa. Eu
terminava o café e saída de mansinho pelas ruas do Macuco à procura daqueles gritos. No percurso às vezes eu encontrava outros garotos que como eu
vagavam pelos caminhos arenosos em busca daquele desespero que se volatilizava no ar. Então nós parávamos e acertávamos nossos relógios: "Você vai
por ali, eu por aqui e você por lá, e o primeiro que descobrir o grito volta para avisar os outros".
Era uma expedição tipo Indiana Jones em busca do Santo Graal. Uma aventura como aquela
logo de manhã cedo era o que de melhor poderia acontecer para garoto da década de 40 naquelas vastidões desertas e arenosas do Macuco. Mas era
difícil encontrar o grito da viúva porque ele era desestruturado pelo vento daqueles descampados que trombavam aqui e ali nas manchas verdes das
chácaras dos japoneses. Alguns garotos se desinteressavam pela tarefa ao toparem com valas cheias de peixinhos das ruas Castro Alves e Bambual e
abandonavam a expedição.
Então alguém descobria a origem daquela gritaria toda e ficava tão fascinado pela cena
que se esquecia de avisar os outros garotos. Quase sempre era um chalé de madeira com um portãozinho de ripas trançadas aberto e franqueado a todos.
Todo chalé de Santos tinha uma varanda comprida trelissada de ripinhas para onde se abriam os quartos. Não havia quartos intercomunicantes porque a
portuguesada em momentos de apertura financeira os alugava para uma ou duas famílias.
E de repente diante de mim a visão súbita e tétrica do quarto do casal transformado em
câmara mortuária: até fins da década de 60 enterro em Santos geralmente saía da casa do morto. Ali ele nascera, ali vivera e dali sairia para a
viagem derradeira. Foi Nelson Rodrigues quem primeiro se rebelou contra o novo costume dos velórios coletivos no pátio dos hospitais semelhantes a
um supermercado onde os corpos ficam expostos à avaliação e curiosidade pública. "O Morto", dizia o dramaturgo famoso, "deve sair de sua casa porque
ali é o seu lugar e a presença do morto santifica esse lugar". A morte tem muito de espetáculo cênico em sua dramaticidade e ela nos cala forte por
uns momentos: ela desperta no homem o sentimento pouco lembrado da fragilidade da condição humana.
A morte não amedrontava garoto e o espetáculo do velório o fascinava. Debruçada por
sobre o caixão, a viúva velava o seu homem toda vestida de preto. Ela soltava gritos agudos e depois parava. Ela não chorava. Hoje, a distância,
relembrando a cena, não me parece que ela chorasse com profundidade de alma, com sentimento vindo das entranhas do ar. Eu não sentia ali dor
emotiva. Eram gritos monocórdicos, estridentes e não tinham a efusão da dor verdadeira. A sua avó fizera assim e assim também a sua mãe antes dela.
Agora chegara a sua vez como mais tarde chegaria a vez de sua filha chorar o seu homem.
Eu via toda a submissão da mulher portuguesa ao seu destino. Ela não se rebelava. Ela
não maldizia a sua sorte. Havia nela uma aceitação estóica da vida, aquela aceitação passiva dos fellahs muçulmanos que nós encontramos ainda
hoje perambulando pelas ruas do Cairo e que, sem dúvida, os mouros levaram para a Península Ibérica e ali a plantaram durante os sete séculos de sua
ocupação. Nem a fatalidade nem tragédia alguma abatiam mulher portuguesa porque ela havia sido criada na convivência diária da aceitação de sua sina
e o que quer que ela lhe reservasse. Nunca vi mulher portuguesa erguer os punhos pros céus em desafio ou praguejar contra a sorte. Sua missão na
terra era seguir o seu homem e, quando ele morria, uma parte dela também morria.
E então acontecia o inesperado: a viúva se arremessava por sobre o caixão e punha-se a
contar a estória do seu homem. Eram estórias que se ouviam com encanto porque tinham o enredo e mergulhavam fundo na vida do morto. Havia detalhes,
minúcias pessoais, perturbadoras intimidades, ditas assim de público sem nervosismo, com mil olhos gravados nela. Aquelas mulheres tinham uma
técnica narrativa admirável e através dela condensavam a vida do morto. Mais tarde, ao ler alguns autos de Gil Vicente, eu me lembraria daquelas
viúvas paramentadas de negro e me ocorreria então que elas deveriam ter sido criadas nas suas aldeias ouvindo aquela rica literatura oral dos
aldeões. Lembro-me de minha avó, Josefa Tuna, incapaz de ler e escrever, aos noventa anos recitando as lendas de João Pequenino e da
Donzela do Castelo. Era pura literatura oral e vinha em versos que minha avó recitava com voz firme e bem postada. Estrofes ainda ressoam em
mim, contadas por ela, uma viúva negra ela própria:
Abre tu a cova
que aqui tens o alvião
Deves saber que o meu pai
Já não faz outro João.
E então a viúva, num tom impessoal e desvestido de emoção, se punha a contar a estória
do seu homem. De como ele um dia tinha resolvido vir para o Brasil, "e ele me disse, mulher, isto aqui não é vida, só trabalho que mal dá para nos
fazer uma malga de caldo e assar algumas batatas... e então ele disse, ó mulher, vamos pro Brasil e quando aqui chegou pôs-se logo a trabalhar como
um mouro e então ele me disse, ó mulher, o aluguel come-nos tudo e nem dinheiro pra ti sobra pra comprares um vestido de chita e pra mim um
borzeguim novo, mas graça em Deus estou amealhando um dinheirinho pra comprar um terreno lá pro Macuco, naquelas terras do barato... ele queria
comprar um terreninho pra levantar um chalé e mandar vir de Portugal a mãe e o pai e o pobre do sobrinho que por lá se desmandava... ai, o meu homem
que em tudo pensava e que agora está estirado aqui neste caixão... o que vai ser de mim...". A viúva se exauria nas palavras e se prostrava numa
cadeira, mas dali a meia hora se punha de pé e desfiava a mesma estória, que era repetida até a saída do enterro.
Mas, ó, fenômeno extraordinário: no dia seguinte, o seu homem já enterrado, daquela
mulher passiva e obediente, nascia uma guerreira. Deixada só, com penca de filhos pequenos, sem casa própria nem aposentadoria, ela se transformava
dentro de sua armadura negra e partia para enfrentar o mundo lá fora, em campo aberto. E o tanque de lavar roupa era o seu campo de batalha e o seu
altar de onde sairia o sustento dos filhos órfãos. E quem por acaso caminhasse pelas ruas do Macuco nos fins de tarde iria encontrá-las afundando os
tamancos na areia fofa, vergadas sob o pesado fardo da trouxa de roupa lavada que elas levavam às casas das patroas. E era admirável ver-se aquelas
mulheres lutadoras vestidas de negro trançando os caminhos de Santos, levando à cabeça o fardo pesado de sua luta. Pareciam Cristo levando a sua
cruz ao Calvário.
Não me lembro de nenhuma delas, mesmo as de idade fresca, que voltasse a buscar
marido. Era como se as paixões se lhes amortecessem. Assexuadas, os apelos da carne quase extintos pelos pesados vestidos negros que lhes chegavam
aos pés, aquelas vestais proletárias atracavam-se durante o dia ao tanque de lavar roupa e à noite prendiam-se ao ferro de passar enquanto a família
se estabilizava sem o braço forte do pai. E se eu tivesse de situar aquela epopéia das valorosas mulheres dentro de uma imagem literária, eu
escolheria Rastignac, personagem de Balzac no Pai Goriot quando ele se põe de pé diante da cidade de Paris e a desafia de peito aberto "Et
maintenant, à nous deux".
Essas mulheres guerreiras desapareceram do panorama de Santos. Nunca mais as vi. Mas
penso nelas às vezes. Dona Albertina, dona Capítula, dona Maria da Fazenda, dona Tristeza, dona Amália. Penso nelas sobretudo quando vejo o nosso
político caminhando pelas ruas atrás de votos: corruptos, salafrários, enganadores, ao contrário da santidade daqueles passos na areia das ruas do
Macuco; lá vão eles deixando atrás de si as marcas malévolas de suas vidinhas pequenas, prontos para o bote, iguais às aves de rapina. E então
cogito e anatematizo: ó Deus, por que puseste duas entidades tão diferentes sob o mesmo céu? |