Reprodução dos títulos do artigo
Conduziu, no modesto Delahaye, Santos Dumont e Caruso
Um velho chofer, conta à A Tribuna como se trabalhava na praça, há 45
anos (N.E.: cerca de 1910) - Barulhentos, cheirando a gás de carbureto, os
automóveis enguiçavam facilmente - Por 9$000, obtinha-se duas latas de gasolina de 20 litros cada, com direito aos recipientes - Os famosos pneus
Michelin rebentavam à toa nas esburacadas ruas da cidade - A ligação S.Paulo-Santos, feita em automóvel em 1908,
teve como contra-resposta o raid Santos-Cubatão
Francisco de Marchi
Na série de entrevistas evocativas da Santos antiga,
decidimos focalizar, hoje, a vida de um chofer de praça neste meio, nos primeiros anos que se seguiram à aparição do automóvel em terra santista. O
presente relato, portanto, prende-se à época em que o automóvel se perdia na confusão do tráfego, então avassalado pelas carroças, carroções,
aranhas e carruagens das do tipo vitória. Cabe-nos, entretanto, acentuar que o automóvel foi um intruso ladino, que soube apossar-se do
mercado local de transportes de passageiros, sem provocar a ira dos condutores de veículos tirados a cavalos.
Não teriam os condutores de carruagens, certamente, acreditado que o monstrengo,
pesadão e barulhento, se firmasse por aqui; quando, porém, perceberam que o recém-chegado vira e vencera, e estava alcançando a preferência de boa
parte do público, trataram, às carreiras, de também obter a licença da prefeitura para conduzir a ruidosa engenhoca pelas nossas ruas. Os cocheiros
mais burros, que não compreendiam as manobras dos novos carros, é que se resignaram a trabalhar, mais tarde, como ajudantes de motoristas.
Escolhendo para esta entrevista o mais velho dos motoristas em atividade em Santos, e
que conta com 45 anos de contínuo serviço da profissão (N.E.: na época desta matéria, 1955),
devemos informar que o sr. Manoel Lourenço Gouveia, a pessoa em questão, veio para esta cidade em 1886, ainda no tempo da Monarquia.
Aqui trabalhou muito tempo como cocheiro, mas, em 1911, já o encontramos trabalhando
na praça, como motorista. Cobrava 5$000 por uma corrida, que podia se estender da estação da S.P.R. ao
Gonzaga. E trabalhou muito em 1911, no seu Delahaye de 4 cilindros, valente carro francês, de 12 cavalos de força,
e capaz de fazer 40 quilômetros por hora. Através de seu relato, podemos ver como então se trabalhava na praça.
O sr. Lourenço Gouveia falando à A Tribuna:
"Quando acontecia um desastre com algum carro de praça, no dia seguinte
as famílias de Santos já não se serviam de automóveis, preferindo viajar de bonde"
Foto publicada com a matéria
Um automóvel por quatro contos - "O meu Delahaye - começou o nosso
entrevistado - custou-me 4:500$000. Mas, no pagamento da parcela final, como o auto já tivesse algum uso, fizeram-me uma redução de 500$000; fiquei
aí na definitiva posse de um carro tido como maravilhoso, com ótima iluminação a gás de carbureto, partida à manivela, cortinas de pôr e
tirar. Nossos motoristas de hoje não podem fazer idéia do quanto era aborrecido lidar-se com o carbureto, fornecedor do gás a ser queimado nos
faróis do carro. Estávamos sempre com as mãos queimadas, pela constante lida com as pedras de carbureto, e o cheiro desprendido pelo gás era
nauseabundo.
"Não havia quase carros de particulares; o de número 1 pertencia a Benjamin Machado,
dono da Garagem Auto Santista. Seu carro era de marca alemã. Na época, somente encontraríamos por aqui marcas européias. Distinguiam-se, entre
outras marcas, as Delahaye, Berliet, Benz, Renault e Fiat. Não existiam agências para venda de peças; quando de quebrava uma delas,
era fatal a permanência do carro numa oficina por longo tempo. Mas, em compensação, a peça rôta ou gasta era substituída por outra feita aqui mesmo
(hoje os mecânicos dispõem de peças de importação, à vontade, mas às vezes nem sequer as colocam no lugar exato...).
"Logo nos primeiros anos de profissão de motorista, conduzi gente importante. Em 1913,
transportei Santos-Dumont do Gonzaga à Estação. Pedi-lhe 5$00 pela corrida e ele, sorrindo sob o grande chapéu desabado,
fez questão cerrada de dar-me 15$000.
"Caruso também viajou no meu carro; eu o levei a uma casa de pasto
(N.E.: restaurante), que funcionava próximo ao local onde hoje se ergue o
Clube XV (N.E.: então situado na Av. Presidente Wilson, 13, no Gonzaga, esquina da Rua Marcílio Dias).
Anos mais tarde, já no governo de Washington Luís, acompanhei Gago Coutinho na sua descida a Santos
(N.E.: em 7/9/1922, para a inauguração do monumento a Bartolomeu de Gusmão), e presenciei o
espancamento do povo pela nossa polícia, diante da estação da S.P.R. É claro que iria longe se fosse mencionar os
figurões que transportei nestes meus 45 anos de ininterrupta atividade profissional".
Eis o primeiro Hispano-Suiza que apareceu
em Santos. Pertenceu a Lourenço Gouveia,
integrante da turma que se vê no carro. Embora bem mais novo que o Delahaye de 1911,
o auto em questão ostentava, ainda, faróis alimentados a gás de carbureto
Foto publicada com a matéria
Por causa das serpentinas o carro pegou fogo - Indagado se a profissão de
motorista, naqueles tempos, era compensadora, Lourenço Gouveia contestou:
"As corridas a 5$000 mal davam para que o motorista enfrentasse seus gastos
particulares e os de conservação do carro. Um pneu custava 70$000 (da marca do famoso Michelin), porém durava apenas alguns meses; estourava
com facilidade, ou ficava cortado pelo aro da própria roda. Quando olhamos os atuais pneumáticos, ficamos admirados do progresso experimentado no
seu fabrico. Em 1911, um simples prego fazia terríveis estragos no pneu de nome mais reputado. Por causa dos objetos perfurantes, chegou a ser
lançado em Santos uma espécie de pneu blindado, coberto de chapinhas de metal. Não aprovou e era indiscreto; quando o carro se punha em movimento,
faziam, as chapinhas, verdadeira zoeira.
"Não havia também, na época, postos de distribuição de gasolina.
Esta era importada em caixas, contendo duas latas de 20 litros cada. As duas latas (recipiente inclusive) custavam apenas 9$000! O óleo, que hoje
custa Cr$ 22,00, em Santos era comprado a 1$000. E se no Carnaval ganhávamos mais um pouco, tínhamos, em compensação, que
estar à inteira disposição do passageiro, durante 3 dias e 3 noites. O corso, feito nas ruas centrais (Rua e Largo do
Rosário, Ruas General Câmara e Conselheiro Nébias), reunia, em tremenda mistura, carruagens, carretões e automóveis
de aluguel. Era difícil guiar um carro, tendo pela frente carroças puxadas por burros nervosos.
"Cobrava-se pelo serviço (3 dias e 3 noites a fio), 600$000 ou 700$000, mas, depois,
gastava-se o dinheiro recebido em reparos: conserto dos cajados da capota, quebrados pelos foliões endoidecidos, que pulavam o tempo todo
sobre as capotas arriadas; recomposição da pintura do carro etc. Os carnavais eram animados. Montes de serpentinas cobriam totalmente as ruas,
chegando a impedir o trânsito. De uma feita, no Largo do Rosário, um carro chegou a se incendiar, devido ao fato de terem as serpentinas, amontoadas
no chão, pegado fogo em contato com o cano de escapamento do auto, aquecido ao rubro."
A perua de A Tribuna assinala o ponto em que terminou a primeira viagem de
automóvel
São Paulo-Santos. Ali, na subida do morro de São Bento, defronte à rua do mesmo nome,
foi colocada a placa comemorativa do feito
Foto publicada com a matéria
O raid Santos-Cubatão fez o comércio fechar
- Seria tolerável o estado das ruas de Santos, na época? O sr. Lourenço disse-nos que não:
"Se, hoje, as ruas de Santos são más para o tráfego, eram bem piores naqueles tempos.
Calçadas mesmo, apenas as ruas mais centrais. Quando chovia, apenas se podia ir ao Macuco e Campo
Grande, utilizando-se as duas avenidas de ligação. Morava então na Rua Antonio Bento, mas, não poucas vezes, fiquei com o meu carro encalhado em
frente à minha residência. Tinha então que retirar o magneto do auto, secá-lo cuidadosamente, para tentar, em seguida, pôr o motor a funcionar (os
carros de então enguiçavam à toa).
"Mas, apesar de nossa habilidade no volante, ainda assim não inspirávamos muita
confiança aos passageiros. Se sucedia registrar-se na cidade um acidente qualquer com um carro de praça, no dia seguinte as famílias de Santos já
não se serviam de automóveis, preferindo viajar de bonde. A vida era dura: fazendo corridas a 5$000, ou tratando serviço a 15$000 por hora,
quando obtínhamos no fim do dia 40$000 ficávamos em festa. Porque havia dias em que não se fazia um tostão...
"Por tais motivos, éramos tidos como indivíduos teimosos. E havia razão, para a fama:
por força das circunstâncias, adotávamos as atitudes mais inesperadas. Uma, de rebeldia, pode ser ilustrada pela greve que fizemos no tempo em que
era delegado Ibrahim Nobre. Foi dirigida contra o aumento do preço da gasolina: ganhamos a parada.
"Mas, também, revelávamos espírito esportivo. Quem não ouviu falar na famosa viagem de
automóvel S. Paulo-Santos, feita por um grupo de esportistas, em 1908? O raid, feito através de picadas no mato, e
na serra por largos trechos de estradas somente utilizáveis por animais de montaria, durou dias. A repercussão do fato foi grande, mas deixou muito
motorista por aqui com um osso na garganta. Anos depois, Chaddad, um chofer desta praça, aborrecido com o cartaz dos esportistas
paulistanos, decidiu também fazer um raid, em sentido inverso: em certa tarde de um dia útil, demandou a Cubatão. Lá chegou no seu Berliet
e causou sucesso, fazendo que o pequeno comércio local fechasse as portas, em regozijo ao notável feito..."
A placa comemorativa da primeira ligação de automóvel São Paulo-Santos.
Colocada 30 anos após a realização daquele verdadeiro raid, contém os
seguintes dizeres:
"Aqui se concluiu em 17-4-1908 a primeira viagem de automóvel São Paulo-Santos feita
por Antônio Prado Jr., Mário Cardim, Clóvis Glycerio, Bento Canabarro - 17-4-1938"
Foto publicada com a matéria
Vida
dura, no passado e no presente - Como fecho da entrevista, solicitamos ao sr. Gouveia que tecesse uma comparação entre o presente e o passado,
demonstrando as vantagens de uma época sobre a outra:
"Com franqueza - respondeu nosso entrevistado - se outrora a vida era duríssima, hoje não é
nenhum mar de rosas. Outrora, eram escassas as corridas, e baratas, e havia pouco serviço tratado por hora. Ganhava-se pouco mas as
despesas não eram como agora, incontroláveis. O esmerilhamento de válvulas ficava em 15$000, quando hoje nos custa 450$000 ou 500$000. A abertura,
revisão e ajuste de motores podia ficar em 120$000; hoje, o serviço nos custa Cr$ 2.000,00 ou Cr$ 3.000,00, conforme a cara do freguês e a
disposição do mecânico.
"Em 1911, certos serviços como a mudança de pinos, a colocação de braçadeiras, um
apertozinho de parafusos ou troca de mangueiras, nem sequer eram cobrados. Se pedíamos um orçamento, era minucioso e fatal: nada nos seria cobrado
além do previsto. Hoje, não adianta pedir orçamentos; nunca sabemos o que vai ser feito e temos apenas a certeza de que a conta que nos será
apresentada será muito pior do que imaginávamos. Atualmente, não temos mãos a medir; rodamos bastante, trabalhando às vezes dia e noite, e parece
que ganhamos um dinheirão. Mas, feitas as contas, raramente sobeja alguma coisa. O custo das utilidades, dos consertos, leva-nos o resultado do
trabalho.
"Posso afirmar que a vida do motorista oferece, agora, aspectos desconhecidos em 1911;
somos, nos dias presentes, vítimas de roubos condenáveis - de natureza comercial - mesmo às barbas da polícia, com a imposição, por parte de
vendedores sem escrúpulos, de preços absurdos por peças que somente aparecem no câmbio negro... E se as peças alcançam preços absurdos, o da
mão-de-obra, então, nem tem qualificativo", concluiu o sr. Manoel Lourenço Gouveia. |