Em 1904, uma embarcação a vapor cruzava várias vezes por dia o canal, levando e trazendo
carros e pedestres de Santos para Guarujá
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TRANSPORTE
Cem anos de travessia
Há mais de um século, atravessa-se o estuário rumo a Guarujá por meio de balsas a
vapor ou a diesel, um sistema que já está saturado
Da Reportagem
São 22 mil carros, cerca de 10 mil bicicletas e três mil
motos. O movimento diário de ida e volta na travessia entre Santos e Guarujá é intenso, mas poucos usuários
sabem que usam um transporte centenário, que começou a operar com embarcações a vapor e de madeira. O sistema sofreu mudanças para acompanhar o
desenvolvimento das duas cidades, mas agora está à beira da saturação e registra momentaneamente o aumento do número de motos e bicicletas.
No final do século 19, os passageiros de trem vindos de São Paulo,
com destino à Estância Balneária do Guarujá, embarcavam em lanchas a vapor, no Valongo,
onde funcionava a antiga estação ferroviária.
"Só que a viagem era cansativa. O passageiro andava de barca por todo o canal do estuário,
chegando ao Guarujá para pegar um outro trem em direção à praia. Foi então que decidiram encurtar o caminho",
recorda o assistente da gerência da Dersa, Vitorino Genaro dos Santos, 62 anos, 44 deles dedicados ao trabalho na travessia.
A mudança acabou dando certo e aliviou o tempo de viagem. Por volta de 1910, as barcas a
vapor construídas na Holanda começaram a partir da Praça da República, no Centro da Cidade, em direção a
Vicente de Carvalho, de onde as pessoas seguiam para Guarujá.
Foi assim que surgiu o embarque na Praça da República que existe
até hoje. Com pouquíssimos carros em circulação, as barcas viajavam repletas de passageiros num sistema operado pela
iniciativa privada.
SUCATA |
"As embarcações 5, 6, 7 e 8 foram feitas de aço de sucatas de guerra, cada
uma para 20 carros"
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Vitorino Genaro dos Santos
Assistente de Gerência da Dersa
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Ferry-boat - Por volta de 1930, surgiu o ferry-boat, na
Ponta da Praia. A FB-1 foi a primeira embarcação a atravessar os 400 metros do estuário que separam a Ponta da
Praia da Vila Lígia. Feita de madeira, com espaço para seis a oito carros, transportava a grande massa de pessoas que ainda utilizava
predominantemente o trem.
O desenvolvimento de Santos e da Estância do Guarujá acontecia rapidamente. Pouco tempo
depois surgiram mais três embarcações, as FBs 2, 3 e 4, sendo as duas primeiras para sete carros e a terceira para 16.
Em seguida vieram as embarcações 5, 6, 7 e 8, cada uma para 20 veículos.
Em 1946, o Estado assumiu o comando da travessia. Um ano depois, a construção da Pista Norte
da Via Anchieta chegava ao fim e a estância era elevada à condição de Município.
A estrada diminuiu a distância entre Santos e Guarujá, e o desenvolvimento da indústria
automobilística provocou um boom de carros na Cidade. Guarujá projetou-se para o Estado e começou a atrair um público cada vez maior. "As
novas embarcações, 5, 6, 7 e 8, foram feitas de aço, com sucatas de guerra", lembrou o funcionário.
Chega 1958 e Vitorino dos Santos começa a trabalhar na Dersa, como encarregado de usinagem,
aos 18 anos. Bastante jovem, acabou participando da reforma da primeira embarcação da travessia, a FB-1, que hoje já não opera mais.
Por volta de 1962, surgiram as FBs 9, 10 e 11, maiores e com
novos sistemas de propulsão. Na mesma época, os bairros do Guarujá expandiam-se rapidamente e a travessia de passageiros tornou-se intensa. Os
conflitos entre carros e pedestres começaram a surgir. "As pessoas atrapalhavam e já não havia mais espaço para veículos e passageiros".
Em 1971, a Capitania dos Portos proibiu o transporte de pedestres nas balsas, mas a
utilização das embarcações continuou, de forma indevida, até 1973, quando uma lancha exclusiva para passageiros, a Itapema, passou a operar
gratuitamente o percurso entre a Ponta da Praia e Guarujá.
Rotina - Em 1979 surgiu mais uma embarcação para a travessia, que até hoje está em
operação. É a mais nova balsa em funcionamento, sendo que as FBs 10 e 11, de 40 anos, também continuam a realizar o trajeto.
"Mas todas passam por uma rotina rigorosa de manutenção anual". A cada cinco anos, cada uma
recebe uma reforma de grande porte, na qual 50% da estrutura são substituídos.
Atualmente, mais de 35 mil veículos usam diariamente o transporte,
entre carros, bicicletas e motos
Foto: Carlos Nogueira, publicada com a matéria
Sistema hoje é terceirizado e mais seguro
A década de 80 marcou de vez o sistema de operação das balsas. As
embarcações amarradas por cordas para a atracação ganharam sistemas de atracadouros frontais, dando mais segurança às travessias. A ampliação do
estaleiro e a construção da carreira de docagem também representaram avanços significativos para o transporte.
Naquela época, a travessia ainda era operada pelo Departamento Hidroviário (DH), ligado à
Secretaria de Estado dos Transportes. No início da década de 90, entra no comando a Dersa, pertencente ao mesmo órgão. Em 1996, a estatal
terceirizou as operações.
Estava consolidado o êxito da travessia centenária, que hoje conta com oito embarcações para
veículos, com quantidade média de 45 vagas, três mistas (para carros, passageiros e bicicletas) e outras três embarcações para passageiros e
ciclistas na travessia entre Santos e Vicente de Carvalho.
45 VAGAS |
estão ao dispor dos usuários nas embarcações que a Dersa possui para veículos
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Em 2000, a Capitania dos Portos, em função das deficiências das
travessias nas regiões Norte e Nordeste do País, criou normas para o transporte que tiveram que ser adotadas em todo o Brasil.
As cinco faixas que dividiam as embarcações foram reduzidas para quatro e a distância entre
os carros passou a ser de, no mínimo, um metro. As medidas diminuíram de 54 para 45 o número médio de vagas de cada balsa.
Vitorino Genaro dos Santos acompanhou boa parte das mudanças
Foto: Carlos Nogueira, publicada com a matéria
Crise que afeta o País diminui quantidade de usuários
Um dos mais tradicionais sistemas de transporte não escapou da crise econômica. A travessia
das balsas entre Santos e Guarujá registra redução de carros desde janeiro deste ano e, em junho, a queda foi de 6,68% no movimento de ida e volta
em comparação a junho de 2001. Em compensação, a opção pela bicicleta por quem quer economizar fez subir em 8,78% o número de ciclistas no mesmo
mês. Em maio, a elevação chegou a 28,37%.
O primeiro mês do ano apresentou queda de 7,59% no número de carros, em relação a janeiro de
2001. Fevereiro teve redução de 5,57% e março, 3,16%. Em abril, a diminuição voltou a se acentuar, 7,54%, caindo para 0,48% em maio, em relação a
maio de 2001.
Já o número de bicicletas subiu 16,61% em janeiro deste ano, em comparação ao mesmo mês de
2001, e 16,96% em fevereiro. Em abril, a elevação chegou a 22,99%, mas em maio subiu mais ainda, para 28,37%. O movimento de motos também vem
crescendo mês a mês. O maior índice foi verificado em maio, quando subiu 22,36% em comparação a maio de 2001.
O jornalista e arquivista da Prefeitura de Guarujá, Marcílio de Araújo, de 48 anos, é um dos
usuários que contribuíram para a redução do número de veículos. Morador da Aparecida, ele desistiu de ir trabalhar de carro. "O pedágio, o
combustível e o tempo que eu perco me fizeram mudar os hábitos. A travessia é imprevisível e, às vezes, demora mais do que ir de ônibus".
Já a empresária Márcia Campos, que mora em Guarujá, disse que precisa fazer a travessia de
carro, diariamente, e que ainda não se arriscou a colocar as despesas na ponta do lápis. "Mas a travessia é maravilhosa e não sabia que é
centenária".
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Cresceu o número de bicicletas e motos carregadas
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Reflexo - O diretor de Travessias da Dersa, Ricardo Goulart, explicou que a queda do
número de carros é momentânea e que tem sido verificada também nos feriados, como reflexo da crise.
Entretanto, disse que a duplicação da Imigrantes, em dezembro,
aumentará em 10% a procura pela travessia, a médio prazo. "Pontes e túneis são as opções mais modernas para ferry-boat. Enquanto isso não
acontece aqui, ampliar as balsas para Vicente de Carvalho é a melhor saída". |