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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - GREVE! - LIVROS
Uma saga em um porto do Atlântico (4)

Em 1994, durante a gestão do prefeito David Capistrano, do Partido dosClique nesta imagem para ir ao índice da obra Trabalhadores, diversas publicações foram produzidas pela Prefeitura Municipal, resgatando a história de Santos e especialmente a sua atividade sindical. Uma dessas obras é o livro Caixeiro, Conferente, Tally Clerk - Uma saga em um porto do Atlântico, dos jornalistas Paulo Matos e Carlos Mauri Alexandrino, aqui reproduzido integralmente a partir de sua edição única, de março de 1996.

Com 144 páginas e ilustrações (registros CDD - 331.879816 - M433c), o livro inclui ainda textos de Marcos Augusto Ferreira e fotos de Carlos Nogueira, dos arquivos do Sindicato dos Conferentes de Santos e do Departamento de Comunicação da Prefeitura. Esta primeira edição digital, por Novo Milênio, foi autorizada em 19/2/2010 por Paulo Matos. Veja:

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Caixeiro - Conferente - Tally Clerk

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 Uma saga em um porto do Atlântico


Recriação em line-art digital de detalhe do monumento aos revolucionários constitucionalistas de 1932, da Praça José Bonifácio. Soldados voluntários de Santos em combate

Foto: reprodução parcial da página 23

 

Capítulo II - Os tempos de chumbo

A criação do Sindicato, a longa travessia do Estado Novo e as primeiras conquistas da luta

"Eram caminhões bonde autobondes anúncios luminosos relógios faróis motocicletas telefones gorjetas postes chaminés... Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina"

A vertiginosa linguagem do escritor e poeta Mário de Andrade, dispensando vírgulas no início dos anos 30, era um flagrante de um país que mudava e das novas exigências de uma vida que se chamava de "moderna". A década começava com a Revolução de Vargas, e bem pouco ainda se sabia sobre o que esperar daquela reviravolta política.

Dois anos depois, em 1932, rebenta a Revolução Constitucionalista, que opõe os paulistas ao governo central, primeiro sinal de um período turbulento que se estenderia até o final da 2ª Guerra Mundial.

Naquela época de chumbo, o que começou com um golpe de estado terminaria com a volta para casa dos soldados dos campos da Itália. "O espião janta conosco", resumiria o poeta Carlos Drummond de Andrade, sobre o que se passou entre um fato e outro.

Foi neste tempo complexo que surgiu, de fato, nosso Sindicato. "Arrepiado", sabe-se lá por que motivo, era o apelido do dono do bar que havia na esquina das ruas João Guerra e João Alfredo, bem perto de uma das entradas para o cais. Era ali que se reuniam os interessados em retomar as tentativas de juntar a classe que, por caminhos diversos, haviam fracassado no passado. Muita conversa e reclamação, idéias de união abrindo caminho no emaranhado.

Recessão brava decorrente da mudança do poder em 30, vale dizer, pouco dinheiro no bolso de quem trabalhava, somada aos novos ares de um certo incentivo à organização - evidentemente controlada - das classes assalariadas, foi o tiro de partida. Nada ficou mais fácil nos anos seguintes, com a guerra civil. A defesa do mercado de trabalho era vital, mais que nunca.

No final de 32, aquele ano marcado por tantos dissabores paulistas, sentidos mesmo pelos que nada compreendiam da natureza dúbia da luta fratricida, que foi feita a primeira reunião, fundando o Syndicato dos Conferentes e Consertadores de Carga e Descarga do Porto de Santos. Dia 18 de dezembro.

Antonio Carneiro e Manoel Gomes Duque eram dois portugueses, veteranos do Arrepiado, caixeiros profundamente irritados com a exploração a que eram submetidos e - especialmente - com a escolha para os serviços de gente desconhecida na profissão. Eram os amigos dos encarregados, os recomendados  por guardas aduaneiros, os que levavam pedidos "muito especiais" de altos empregados da Cia. Docas - era uma verdadeira invasão em prejuízo dos que corriam cais atrás de serviço havia tantos anos.

Carneiro, por esses tempos, andava desgostoso com os rumos da categoria. Fora-lhe especialmente dolorosa a extinção da Sociedade dos Caixeiros, pela qual dera boa parte de seus anos de vida e que lhe custara tantos boicotes e dificuldades. Sua liderança era reconhecida, mas os golpes lhe pesavam demais.

Mas foi fortuito, antes de mais nada, o que passou no dia 14 de novembro daquele ano, véspera do 43º aniversário da República. Estavam os dois no escritório da Docas no Paquetá, por volta das 16 horas, quando seriam engajados caixeiros para o serviço de conferência em cinco vapores da Theodor Wille, uma das maiores agências da época. Trabalhariam vinte e dois no total.

O encarregado Porfírio de Oliveira, "parado lá feito um cacique", escalou quatorze homens da categoria e os oito restantes foram apadrinhados da alfândega e do escritório da Docas. Carneiro e Duque ficaram de fora, espumando de uma raiva sem tamanho, que foram tentar aplacar no Café Ferro, na Rua João Otávio. Foi lá que compraram duas folhas de papel almaço para montar um abaixo-assinado para a fundação de um sindicato de conferentes e consertadores, formando uma espécie de comissão organizadora. "O nosso 15 de novembro, meu amigo, começa é agora".

Três dias depois reuniam 49 assinaturas, número exato de participantes da primeira reunião, no domingo seguinte, nos altos do prédio de nº 7 da Rua João Guerra, onde ficava o Esporte Club Guarany e também - é claro - um café, que tinha o nome de Rodney, no térreo.

Foi ali mesmo, no dia 18 de dezembro, que fizeram a assembléia de fundação e elegeram a primeira diretoria da nova entidade. Também ali, no dia 4 de janeiro de 1933, se faz a posse solene.


Depois de calados os canhões na Europa, o mundo está cansado de horrores. A destruição é uma herança pesada (bico-de-pena de Pagé)

Imagem publicada com o texto

A primeira reivindicação tirada no dia 16 de março de 1933 foi de um aumento de 15 para 20$000 e 25% nos extraordinários. Para tratar do assunto, lá se foram Carneiro e Duque, de agência em agência, até animados com a possibilidade do sucesso da empreitada. Tudo apenas boa conversa e promessas vãs. A 11 de maio, o presidente do Centro de Navegação Transatlântica, mister Mannigton, representando o patronato, deu um redondo não às pretensões do nascente sindicato.

Que fazer então? A proposta de greve na assembléia foi decidida em votação secreta. Aprovada por 30 votos contra 24. Estava ali, de novo e inapelável, a velha divisão entre gangs e lixas grossas, cada qual com seus interesses. Um mensalista de agência, neste tempo, tirava seus 400$000, o dobro de um lixa grossa que conseguisse - o que era raro, muito raro - trabalhar 15 dias no mês.

Um ponto chave da greve era o Avelona Star, o maior navio frigorífico do mundo em sua época. Para lá foi o piquete dos inevitáveis Carneiro e Duque, mais Hercilio Mello e José Cordeiro Macedo. Notificado o encarregado Antonio Silvério sobre as pretensões dos conferentes, levaram pela cara que não se precisava deles: já estavam no local os empregados dos escritórios da Blue Star Lines e a Cia. Frigorífica de Santos, "mais que suficientes". A frase foi dita de boca cheia, defronte de mister Mannigton, que aprovou cada letra.

Foi por volta de 1h30 que Duque encontrou Manoel Novita, o Novita, e Antonio André Carrijó, o Navalhada, estivadores sobre os quais não se precisa dizer mais nada. Foi através deles que se conseguiu a adesão fundamental para o movimento. Agora, com o apoio da estiva, não tinha mais jeito.

Ênio Sarmenha Lapage era o representante em Santos do Ministério do Trabalho, que se dirigiu ao local da parede, com a seguinte orientação do capitão dos Portos, comandante Esculápio César de Paiva: "Resolva tudo com os rapazes; o pedido deles é justo e humano; proponho uma reunião com os empregadores e, se falhar, farei uma mesa-redonda na Capitania".

Foi na sede do Centro de Navegação Transatlântica, na Praça Mauá, que os representantes dos patrões, Froelich, McCardel e Simões, depois de três horas de bate-boca com Carneiro, Duque, Mello e Macedo, acabaram cedendo. Mannigton quase comeu seu cachimbo e o pessoal pôde comemorar a primeira vitória da organização sindical.

Mas nem tudo são flores, naturalmente. Muito longe ainda se estava de superar o antigo conflito interno, gangs versus lixas, e o sindicato sequer tinha ainda seu reconhecimento oficial. Naquele primeiro embate, várias coisas ficaram claras, talvez excessivamente claras para uma entidade que estava apenas começando.

Na assembléia de 11 de maio, por exemplo, surgem propostas de que mensalistas "não deveriam se manifestar" sobre o assunto, no caso o cumprimento da tabela do sindicato ou do Centro de Navegação, "já que não estão sujeitos a este tipo de pagamento". São rebatidas pelo presidente Agostinho Souza Castro, que invoca a igualdade entre mensalistas e diaristas prevista nos estatutos. Mas a assembléia nega validade em seguida a um estranho voto "por procuração" de treze associados, apresentado por David Raphael Augusto Correia, um dos fundadores, a favor da tabela do Centro de Navegação. Trocas de acusações, burburinho, confusão. Exemplo da situação: o Centro de Navegação pagaria o conferente, nas continuações, 7$500, enquanto os estivadores, na mesma situação, ganhavam 9$400.

No dia 18, nova assembléia, com a questão já resolvida pela greve. A troca de acusações continua. E, mais uma vez, é exposta nossa fragilidade: Mister Graant, da Dickinson, jogara pesado ameaçando de demissão o próprio presidente Agostinho, que era seu empregado, se este continuasse no Sindicato.

Ênio Lapage, que além de representante do Ministério do Trabalho era presidente da Liga dos Empregados do Comércio, fora muito ovacionado por seu apoio aos conferentes na primeira luta da categoria - ao ter seu nome citado em um voto de louvor, declin-o, coerente, aos estivadores, "estes sim que fizeram a maior pressão". Pois é este mesmo Lapage que se dispõe a questionar judicialmente a demissão do presidente, caso concretizada.

Mas a necessidade objetiva fala mais alto e, menos de seis meses depois de eleito, lá se vai o presidente: pede demissão. É substituído, por aclamação, por Alberto Alves dos Santos, mensalista da Blue Star Line, membro do Conselho Fiscal. Curioso que a elevação do vice-presidente, Ribeiro Xisto, como seria de se esperar, pelo menos no que se tem em atas, sequer foi cogitada.

A categoria, como se vê, continuava dividida e fraca.

Poucos dos conferentes mais conscientes, fossem gangs ou lixas grossas, tinham dúvidas de que estava na distribuição do trabalho a razão da divisão e dos atritos permanentes. E desde o princípio do século se levantava a questão do rodízio, que democratizaria a relação interna da categoria e dela com o empresariado.

Não é de estranhar, portanto, que no dia 12 de outubro daquele ano de 33, menos de um ano depois da fundação do sindicato, o assunto fosse motivo de uma assembléia específica. Cinqüenta e sete pessoas estão presentes e mais uma vez fica demonstrado quem é quem naqueles primeiros dias do sindicato: a proposta do rodízio na distribuição do trabalho é estrepitosamente derrotada, uma surra de 54 a 3. Entre os três solitários, curiosamente, está o próprio presidente, Alberto Alves dos Santos.

No final do ano é empossado Faustino Blanco, que havia derrotado José Antonio Fernandes. Mas em março de 34, três meses depois, a situação se inverte rigorosamente. Blanco se demite, com boa parte da diretoria, e o sindicato fica nas mãos de uma Junta Diretora, presidida por Fernandes, por dez dias, até nova eleição. Naquela assembléia do dia 2, de tão momentosos eventos, o tema seguinte da pauta não poderia ser outro: a questão do rodízio, de novo, causa tal confusão que a assembléia é suspensa.

Retomada no dia 4, João Bento de Souza prossegue na leitura de seu projeto, o mesmo que no ano anterior fora rigorosamente surrado. Apanha de novo, mas desta vez de 38 a 24. As gangs estão assustadas pelo aperto súbito e um dos inimigos mais aguerridos do rodízio, Aguinaldo Serrão, faz uma proposta radical: quer que a mesa da assembléia não mais possa receber pedidos para implantação do rodízio. Claro que não foi aceita. Era ilegal. Mas os sinais estavam claros, bem acima do horizonte.

A chapa eleita em dezembro de 34, liderada por Ítalo Humberto Trucci, não enfrentou menos problemas. Já de longe vinha uma questão aparentemente menor, a do pagamento da mensalidade. Aparentemente apenas. Havia recomendações para que só trabalhasse no cais quem fosse associado e para ter essa condição, ficava claro, só quitando a mensalidade. Em tempos de vacas magras, pouco trabalho, poucos navios, muitos atrasavam. Nas assembléias era uma guerra.

Pois bem, no dia da posse daquela nova diretoria, estava lá Nestor Bittencourt, pedindo a impugnação de tudo, posse, eleição, o diabo. Havia pilhado membros da diretoria eleita em atraso com o sindicato. O alvoroço foi grande e a solução encontrada foi a de anular a eleição, nomeando-se uma Junta Administrativa, até que fosse aprovada a reforma dos estatutos, que estavam no Ministério do Trabalho. A Junta foi firmada, com algumas exceções, pelos próprios membros da diretoria cassada. Uma bela pizza, aquela confusão de dezembro de 34.

Os conflitos se sucedem, trocando-se a direção da Junta por duas vezes, uma para Alberto Alves dos Santos, em agosto de 35, outra para José Antonio Fernandes, em dezembro do mesmo ano. Na eleição de 1936, com a vitória de Alberto Alves dos Santos, esperava-se novos tempos, menos atribulados. Mas qual! Cinco meses depois, a 2 de maio de 37, é deposto o presidente e assume seu vice, o mesmo Nestor Bittencourt, o polêmico de tantas encrencas e lutas, desde antes da fundação.

Mais importante que tudo, naquele momento confuso, é o fato de que, pela primeira vez, um lixa grossa chegara à presidência.

Aquele ano, como se sabe, é de uma virada. O País está conturbado, fala-se de golpe de estado pelos cantos, pelas ruas, nos bares. O rádio é o veículo dos discursos de Getúlio, ouvidos tão atentamente quanto as canções do astro Chico Alves; o samba Camisa Listrada, Araci de Almeida ao microfone, é o sucesso do momento, que não deixa esquecer uma morte que abalou o país: Noel Rosa embarcou naquele ano para a dimensão da história e da lenda.

Fala-se de guerra na Europa, pelo que se vê no "jornal da tela" dos cinemas que se afirmam, trazendo modismos e maquiagens. Lá está Gardel, que ainda hoje "canta cada vez mejor", apresentando-se no Miramar, casa de diversões da Conselheiro Nébias que justificava o slogan "ainda que chova". A 10 de novembro, num golpe de braço, Getúlio instala o Estado Novo.

Pois foi naquele ano de tanta ação, os conferentes dirigidos pelos lixas grossas, que sai a malfadada Carta Sindical. Estava, por fim, consolidada a entidade, mesmo que não resolvidos seus problemas internos.

Bittencourt, como de se esperar, é inimigo mortal dos privilégios das agências a uns poucos, mas é atabalhoado para lidar com a situação. Ao mesmo tempo que prospera na categoria a idéia de uma distribuição mais eqüitativa do trabalho, Nestor, o polêmico, consegue brigar com boa parte do movimento sindical e arranja contra si um grande front interno. Isso não impede que seja reconduzido à presidência, agora eleito, no extemporâneo pleito de 16 de agosto de 37.

Como prossegue o combate de gangs e lixas grossas (ou seriam agora lixas e gangs, pela ordem?), Bittencourt acaba sendo substituído por uma Junta Governativa - mais uma - em 8 de julho de 38, comandada por Manoel Bento de Souza. Em dezembro daquele ano, dia 15, nova eleição, e - surpresa -, elege-se Agostinho Souza Castro, o primeiro presidente, aquele que se mandou frente à pressão da agência.

Nestor Bittencourt não era de desistir facilmente. Lá vem ele de volta, em 1940, dia 6 de abril, como presidente de uma Junta Governativa. Ele é a própria expressão dos conflitos internos neste período e é deles que resulta, pela primeira vez, uma intervenção no sindicato, a única ocupada por pessoa estranha à categoria.

No dia 16 de abril, por ordem do governo federal, assume Bento Pontes, agente e Santos do Instituto dos Comerciários e sabe-se lá do que mais. São os tempos mais duros do onipresente Departamento de Ordem Política e Social e do poderoso Departamento de Imprensa e Propaganda.

Para ajudá-lo, Bento traz um membro do Partido Comunista Brasileiro, Vitório Martorelli - naqueles tempos confusos do início da guerra, mais que trocados, os sinais chegavam a estar invertidos.

A intervenção fora articulada, entre outros, pelo então deputado federal Antonio Feliciano, que chega a solicitar ao Ministério do Trabalho, oficialmente, a continuidade da intervenção.

Em 1941, dia 2 de dezembro, renuncia o secretário-geral, Adalberto Rodrigues Teixeira, e Bento Pontes convida para o cargo o conferente Remo Petrarchi, que será um nome fundamental no período que se seguirá. É o início de sua ascensão.

Dias depois, com uma viagem de Pontes ao Rio de Janeiro, Petrarchi, no exercício da presidência, protesta contra a nomeação de dez conferentes, pela Delegacia do Trabalho Marítimo, "contrárias aos estatutos", o que era outra questão pendente já de bom tempo. Acabaram sendo aceitos. Era preciso juntar mais forças para enfrentar o problema de forma decidida.

Continuam sendo discutidas, sempre de forma mais e mais acaloradas, as questões do rodízio e do pagamento, "que deveria ser feito pelo sindicato".

Quando João Bento de Souza é eleito em junho de 1943, com o fim da intervenção, a situação do cais é extremamente grave. Pior ainda que durante a revolução de 32, a guerra que já envolve toda a Europa deixa portos vazios, aqui e em toda parte.

Bento de Souza, eterno defensor do sistema de rodízio desde os primeiros tempos da categoria, verga-se às dificuldades do momento. Embora ainda defendendo um novo sistema, a diretoria tem preocupações mais prementes.

Uma delas refere-se, de novo, à mensalidade. Os atrasos somam-se às centenas em tempos de tão pouco trabalho. A direção decide "reabilitar" os devedores mediante pagamento de 50% do débito. Mas a época é cruel como a própria guerra e acaba sendo aprovada, também, a norma de que só associados quites poderão trabalhar no cais. Quem, por um motivo ou outro, não tinha sequer a quantia para pagar metade da dívida, perdeu até mesmo o direito de trabalhar.

No dia 17 de março de 45, nove dias depois da rendição da Alemanha - e o anúncio de um novo tempo, mesmo com a guerra prosseguindo no Pacífico -, a eleição para o sindicato parecia indicar que se poderia respirar outros ares também por aqui.

Já se falava em redemocratização do País, que vivia em situação incompatível com o momento histórico: como poderiam tropas da ditadura brasileira terem ajudado a restabelecer a democracia na Europa e retornarem vitoriosas à pátria sob o Estado Novo?

Mas nem tudo era tão simples. A eleição leva à presidência, mais uma vez, o polêmico Nestor lixa grossa Bittencourt. Tumulto completo. Sua escolha não é sequer acatada. Há denúncias de manipulações, de fraudes, de parte a parte. Complicações que se tornam insustentáveis, mantendo-se no cargo, por vias transversas, o ex-presidente João Bento de Souza.

Mas, mesmo João Bento, de tanto tempo de lutas, acaba renunciando, entregando o cargo em agosto, em meio ao enorme burburinho político nacional, ao secretário-geral Joaquim Augusto de Oliveira, que assume no dia 23.

Joaquim é ligado ao Partido Comunista e, se até a poucos meses, em plena luta anti-nazista, eram todos aliados, com a paz que se fizera fora dado o pontapé inicial do que se convencionou chamar guerra fria.

Desconfianças crescentes, em meio à implementação de uma política francamente ligada às organizações comunistas, anunciavam que, se os tempos de chumbo ficavam definitivamente para trás, o período que se avizinhava não seria, ainda, de muita paz.


Ata de posse solene da primeira diretoria do Sindicato, um documento histórico

Imagens: reproduções, publicadas com o texto

O panfletário que se tornou nosso patrono

Antonio Gonçalves Carneiro era português de nascimento e, muito antes da existência do sindicato, era nele que se enfeixava a possibilidade de união da categoria dos caixeiros, lá no início dos anos vinte. Crítico incansável da submissão, dos privilégios de poucos contra as dificuldades de tantos, foi o formulador das bases do que seria a Sociedade dos Caixeiros.

Panfletário incansável, percorria o cais distribuindo idéias do que poderia ser uma categoria unida, enfrentando discriminações e exigindo justiça. Sofreu a dura privação do corte de trabalho, pena sem julgamento para o "crime" da militância. E, pouco tempo depois de organizada a "Sociedade", lá estava Carneiro, criticando seus rumos, sua docilidade frente ao patronato.

Em 1932, quando iniciou a formação do Sindicato, era um homem maduro, de seus 45 anos de idade, cerca de um metro e sessenta de altura. E logo em 133, já estava ele sendo acusado, em assembléia do próprio Sindicato, de "estar fazendo campanha difamatória contra a sociedade e sua diretoria". Carneiro não sae conformava de ver, depois de posta a pique a primeira entidade pelo envolvimento notório com as agências, que no Sindicato repetiam-se os mesmos vícios e que pouco se fazia contra o sistema injusto de distribuição do trabalho.

Arrebatado como era, naqueles dias enviara um ofício, depositando nas mãos da assembléia geral sua demanda, já que não reconhecia "autoridade na diretoria para julgar os seus atos". Era um inconformista de princípio, que nutriu divergências mesmo com seus mais próximos camaradas. Mas, em nenhum momento, recusou-se a trabalhar pelos interesses da categoria.

No fim da greve pelo aumento de salário, logo nos primeiros dias do sindicato, conseguiu a proeza de, numa mesma assembléia, ser censurado publicamente, por seus métodos pouco ortodoxos, e receber uma menção honrosa, pelo desempenho da missão de líder das comissões que dirigiram o movimento. Falando num aparte, não se fez de rogado: ao mesmo tempo em que entregou o cargo, sustentando que a missão estava terminada, chamou boa parte da diretoria de "incompetente". Morreu em princípios de 1934, em situação de grande penúria.


Retrato a óleo feito pelo conferente Milton Salles, o Furacão

Imagem: reprodução, publicada com o texto

O incansável Duque dos conferentes

O português Manoel Gomes Duque chegou a Santos em 1919, aos 14 anos. Vinha em busca do pai que emigrara antes. História comum a tantos naqueles tempos difíceis porém esperançosos, empregou-se em um bar, como copa, e em outro, e carregou carvão, e fez uma série de coisas tentando driblar a falta de dinheiro.

Descobriu um dia, conversando com portuários lá para os lados do Mercado, que engajado na estiva conseguiria ganhar em um dia os 100$000 que conseguia por mês num armazém de secos e molhados. Pediu uma licença no serviço e foi para a parede. Escalado para carregar bananas para bordo, dois cachos de cada vez, ao final do dia havia ganho 47$000. Não era o que haviam dito, mas o suficiente para demitir-se do bar e assumir uma nova vida. Foi assim que Duque chegou ao cais.

Em 1925 foi eleito primeiro-secretário da Sociedade dos Estivadores de Santos, mas no ano seguinte uma enfermidade pulmonar o afastou do cais. Foram quatro meses de grandes privações. Na volta tornou-se tanoeiro, consertador como se diz hoje, primeiro serviço arrumado por um amigo, Alexandre Santi, de consertar 49 vagões desmontados, no vapor Mendonza. Ali mesmo, depois de uma noite inteira de trabalho, foi convidado a contar uma carga. Eis Manoel em mais um ofício, o definitivo: tornara-se um caixeiro.

Fundador do Sindicato, foi seu primeiro diretor beneficente. Duque faleceu durante a execução deste livro, para o qual tanto contribuiu com seus depoimentos lúcidos e fundamentais, em agosto de 1994.


Foto: publicada com o texto

Sem medo de cometer o crime e de organizar a luta pelo futuro

Alberto Pires de Barros, português de nascimento, chegou ao Rio de Janeiro, em 1929, a bordo do navio espanhol Isabel de Bourbon. Veio cortando cabelos e fazendo barbas durante a viagem, ofício que aprendeu com o pai, de modo que chegou com algum dinheiro, ao contrário da maioria dos imigrantes daquele tempo.

Foi por intermédio de seu cunhado, o feitor geral das Docas, Alfredo Barbosa, que se tornou caixeiro, mensalista da Martinelli. Integrou os grupos das primeiras reuniões para fundação do sindicato, num tempo em que reunir trabalhadores era "crime" configurado. Rasgavam-se as listas de presença ao final de cada uma delas, por medida de segurança. Lembra bem dos sustos, borrachadas, fugas por grades de janelas, corridas desabaladas até o ponto de táxi, fugindo da polícia.

Lembra igualmente de vários companheiros desses tempos: Saturnino Rodrigues, Armindo Augusto, João de Freitas, Lázaro de Lima, Roque Natal Cataldo, Otávio Pereira de Azevedo, Esteban Vega, Olivério Pillar e José Simões de Abreu.

Daquele início difícil, recorda episódios emblemáticos do que era o trabalho no cais. Por exemplo, quando viu um estivador ter dois dedos decepados por um guindaste, "e o marinheiro gringo, que comia ao lado, não fez nada, riu apenas". Ou sobre um navio desorientado, com um piloto cheio de uísque, que foi parar nas pedras perto da Ilha das Palmas: "Fomos todos par lá, conferentes, estivadores... Mas avisaram, antes de mais nada, que não davam comida, que era preciso levar".

Barros, aos 87 anos, ainda toma um bom vinho, costume que traz de criança.


Foto: publicada com o texto

Nossos constituintes de 1934

A Constituinte convocada por Getúlio Vargas, resultado da Revolução de 32, se instalara em 10 de novembro de 33, com a presença de deputados classistas, eleitos por sindicatos de patrões e empregados, à semelhança do Parlamento Corporativo da Itália de Mussolini.

Fizemos nossa assembléia em 27 de maio de 1933, indicando João Bento de Souza como nosso candidato-eleitor à Assembléia Constituinte.

Na Constituição aprovada em 16 de julho de 1934, a 3ª do Brasil, a 2ª da República, essa representação classista fica mantida, inclusive para as Assembléias Legislativas. Em 13 de agosto de 35 a assembléia do sindicato escolheu como "delegado-eleitor" do sindicato à Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo, Otávio Pereira de Azevedo, então vice-presidente.

Uma lei para controlar os sindicatos e torná-los o mais burocráticos possível

A Lei de Sindicalização, o decreto 19.770, foi assinado em março de 1931, com o objetivo básico de transformar o sindicato, de arma autônoma dos trabalhadores, em agências colaboradoras do Estado; disciplinar a produção e criar uma espécie de pára-choque entre o capital e o trabalho.

Para um sindicato ser reconhecido como tal, necessitava da Carta Sindical, autorização formal do MInistério do Trabalho. Para atuar, deveria sujeitar-se a uma infinidade de normas e estava, permanentemente, sujeito à intervenção.

Um pequeno exemplo do controle pode ser verificado na circular do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, recebida pelo Sindicato no dia 17 de dezembro de 1933.

Ali se exigia o envio das informações previstas em lei: um resumo dos principais acontecimentos do exercício; a relação dos sócios, com especificações de idade, estado civil, naturalidade, residência, profissão e "logar" de trabalho; balancete de receitas e despesas, com todas as discriminações.

A vida dos sindicatos está sob controle absoluto. São formadas no Ministério as comissões mistas de conciliação, para dirimir questões, na prática quase substituindo o próprio sindicato que, seguindo a lei, indica naquele mesmo dia da circular, Hercílio de Oliveira Mello e Alberto Alves dos Santos, como seus dois representantes na tal comissão mista.

A situação assemelhava-se, em tudo, àquela produzida por Mussolini na Itália fascista, com sua Carta Del Lavoro.

No princípio, a instabilidade

Alberto Alves dos Santos, Faustino Blanco e José Antonio Fernandes, pela ordem das fotos, são personagens importantes do início da história de nosso sindicato.

São presidentes eleitos num período turbulento, de sucessões pouco ortodoxas, substituições súbitas em meio a crises de toda espécie.

Entre 1933 e 1936 lutam pelo controle do Sindicato com empenho e sucedem um ao outro com uma freqüência impressionante.

Neste curto período, Alberto, que foi o segundo presidente da entidade, dirige-a por três vezes; Fernandes consegue o controle por outras três vezes. Faustino é uma espécie de vítima do período e fica na presidência apenas por pouco mais de dois meses.

Ítalo Humberto Trucci também atravessa o caminho dos dois contendores, numa Junta Provisória que dura oito meses.

Mesmo o primeiro presidente, Agostinho Souza Castro, permanece no cargo por apenas quatro meses.

Esses dados bastam para mostrar como foi difícil o começo de nosso Sindicato, sempre às voltas com uma divisão inconciliável, e o que ainda estava por vir.

Fotos publicadas com o texto

Mudando de lugar, fugindo da polícia, destruindo listas

Belisário Blanco chegou da Espanha com a família em 1904. Tinha apenas dois anos. Assim, quando começou a trabalhar no cais, em 24, já estava totalmente integrado à vida de seu novo país, sua nova cidade.

Aos 22 anos, observador de uma intensa fermentação sindical, não demorou a integrar o grupo de caixeiros que se reunia nos fundos da "Alfaiataria do Castilho", esquina de General Câmara com Braz Cubas.

Esses encontros eram convocados por um caixeiro conhecido por Manolo, um comunista da época filho do dono da alfaiataria, e por outro, de nome Amadeu, espécie de cabeça daquele grupo de ativistas.

A efervescência de unir a categoria, de romper com os velhos métodos, tinha muitos nomes e muitos lugares. O traço comum era o sigilo, a quase clandestinidade de um tempo em que reunir trabalhadores era um crime danado. Era preciso mudar de lugar sempre, fugir da polícia, destruir listas.

O polêmico lixa grossa

Nestor Bittencourt foi antes de tudo um polêmico. Caixeiro desde 1922, um dos fundadores do Sindicato, parece ter incorporado em sua ação sindical os ventos daqueles anos conturbados.

Primeiro lixa grossa a presidir o Sindicato, dizia-se anti-comunista para buscar a ajuda que precisava junto a deputados militares, quem quer que fosse. Para os adversários, era um agitador, subversivo e terrorista. Os termos fazem parte de um dossiê que existe no Sindicato, do qual muita gente lançou mão sempre que preciso para responder a seus ataques virulentos, escritos em tal linguagem que conseguiu a proeza de ver recusados seus artigos, mesmo sendo pagos, no jornal A Tribuna. Havia publicado mais de cem.

Foi ele que conseguiu trazer do Rio a Carta Sindical que oficializou a entidade, em 37. Nestor, ao longo de 26 anos, conseguiu estar por 18 vezes em cargos sindicais, entre as quais, cinco como presidente, e ser destituído em três delas. Respondeu a 11 processos pelos mais diversos motivos, venceu oito, perdeu três; foi suspenso do trabalho; de terceiro suplente do PTB na Câmara Municipal, conseguiu o quase milagre de articular para ser o titular da cadeira, pelo período de um mês, para melhor poder atacar seus desafetos sindicais. Suas trocas de farpas e acusações encheriam um arquivo dos grandes.

Foi sempre um opositor cáustico aos privilégios das agências, mas sua articulação sindical era a pior possível: não raro conseguia ficar sozinho nos momentos cruciais. Viveu para a polêmica, cumpriu um papel importante. Morreu em 1969, em maio a mais uma briga, pelos jornais, contra o então presidente do Sindicato.


Foto: publicada com o texto

As direções efêmeras em meio à luta

Manoel Bento de Souza é um dos inúmeros personagens de nossa história que chegam à direção do Sindicato em meio à luta aberta entre gangs e lixas, no caso, como presidente de uma das muitas Juntas Governativas que têm efêmeras passagens por um período atribulado, em que o trabalho no cais é escasso.

Duas revoluções, um golpe de estado, uma ditadura dissimulada que tem também sua face de crueldade como todas as ditaduras e, por fim, uma guerra mundial. A instabilidade do país reflete-se na vida sindical e nos embates internos cada vez mais acirrados.


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O revolucionário que salvou a filha do governador

Manoel Rodrigues da Silva já era caixeiro em 1928, aos 17 anos, mas não chegou a figurar entre os fundadores do Sindicato, pelas razões objetivas daqueles tempos difíceis: foi lutar na revolução de 1932, a Constitucionalista, na qual foi ferido. Só voltaria à categoria em 1939, quando nossa entidade já estava reconhecida e razoavelmente estruturada.

Conhecido como Bofe, no cais e na categoria, esse ex-soldado foi bafejado pela sorte no meio tempo. Forte e hábil nadador, acabou salvando do afogamento certo, em 36, a filha do governador Armando Salles de Oliveira, numa praia do Guarujá. Isso lhe valeu escolher o emprego que quisesse no governo estadual. Acabou na Polícia Especial do Estado. Viu muitos acidentes graves, num tempo de trabalho desorganizado, de muita falsidade e puxa-saquismo na busca de serviço, de um tempo em que os conferentes, ganhando salário mensal, perdiam feio para os estivadores, já remunerados por produção.

Regular normas e comportamentos, a complicação

Datam deste primeiro período do Sindicato os regulamentos de comportamento e normas para o trabalho no porto e nas atividades sindicais.

Denúncias, análises de casos, aplicação de punições e censuras, réplicas, tréplicas, consomem boa parte das assembléias deste período, em geral envolvidas em enxurradas de reclamações das mais diversas.

Para os trabalhos no Sindicato, são "prohibidas" a propaganda de "quaisquer credos" alheios aos fins da entidade, assim como "qualquer altercação entre os sócios".

Apesar disso, que parece significar, antes de tudo, uma limitação para qualquer tipo de atuação político-ideológica, o Sindicato mantinha relações com entidades classistas de caráter independente, como a Coligação Proletária de Santos, da qual fizemos parte, inclusive indicando representantes oficiais para tomar parte nas reuniões e encontros destinados a organizar aquele embrião de intersindical local.

Os estivadores conseguem a produção

Em 1939, no dia 23 de junho, através de um decreto-lei, os estivadores tornam-se os primeiros avulsos a terem atendida a antiga reivindicação do pagamento por produção. Mas isso vinha junto com a limitação do trabalho dos estrangeiros.

Ele só se concretizaria, entretanto, em 1946, com a regulamentação da profissão. Ainda assim, sob protesto, porque remunerava apenas a tonelagem, deixando de lado a cubagem. A reivindicação era feita desde a década de trinta, e era comum aos avulsos.

Mas é parte das espertezas de Vargas: no mesmo decreto estabelece tais dificuldades para os estrangeiros que, na prática, expulsa-os da categoria.

As greves contra os navios franquistas, em 37 e 46, e os movimentos constantes no porto, é que alertaram o "Estado Novo" sobre o "risco" que representava a presença de tantos estrangeiros politizados trabalhando nos portos, os "pulmões nacionais", como dizia o jargão.

Uma vida entre as guerras mundiais

Paulo Friedrich Breithaupt nasceu em 1902, neto de imigrantes alemães que vieram na primeira leva, teve sua vida marcada entre duas guerras.

Na primeira, de 1914-18, não conseguiu continuar a estudar em Blumenau, na sua "deutsch schulle": as escolas alemãs foram fechadas. Na segunda, de 1939-45, teve de agüentar obtusos agentes secretos em seu casamento com Irma, uma alemã nascida na Rússia por um desses acidentes da vida. Não se podia falar alemão durante aquele período e mesmo Paulo ficou longe do cais enquanto durou o conflito. Duros tempos.

Mas foi justamente sua língua de família, da nobiliárquica Casa de Breithaupt, datada de 1446, que o levou ao cais. Foi um dos fundadores do Sindicato, por acreditar nele como um passo a mais para organizar melhor o trabalho, uma vantagem para o conferente e para a própria agência, igualando mercados de trabalho, como a cabotagem, que pagava muito pouco, "quase nada", pelo duro trabalho do cais.


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