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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - GREVE! - LIVROS
Uma saga em um porto do Atlântico (3)

Em 1994, durante a gestão do prefeito David Capistrano, do Partido dosClique nesta imagem para ir ao índice da obra Trabalhadores, diversas publicações foram produzidas pela Prefeitura Municipal, resgatando a história de Santos e especialmente a sua atividade sindical. Uma dessas obras é o livro Caixeiro, Conferente, Tally Clerk - Uma saga em um porto do Atlântico, dos jornalistas Paulo Matos e Carlos Mauri Alexandrino, aqui reproduzido integralmente a partir de sua edição única, de março de 1996.

Com 144 páginas e ilustrações (registros CDD - 331.879816 - M433c), o livro inclui ainda textos de Marcos Augusto Ferreira e fotos de Carlos Nogueira, dos arquivos do Sindicato dos Conferentes de Santos e do Departamento de Comunicação da Prefeitura. Esta primeira edição digital, por Novo Milênio, foi autorizada em 19/2/2010 por Paulo Matos. Veja:

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Caixeiro - Conferente - Tally Clerk

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 Uma saga em um porto do Atlântico

A vida na Cidade naqueles tempos é um combate corajoso aos desastres iminentes

A luta contra a peste, a chegada do trem de ferro e das estradas trazendo o café. O porto se organiza e cresce, voraz por suor de gente

Em 1927 foi entregue o Canal 5, praticamente concluindo o projeto de saneamento de Santos iniciado em 1905 por Saturnino de Brito. O objetivo era criar condições para ocupação das grandes áreas de brejos e mangues, corrigindo a sinuosidade de riachos e limitando a ação das marés. O maior dos canais, o 1, foi entregue em 1907. Vinte anos depois a Cidade comemorou uma vitória, que muitos achavam impossível, contra os terríveis surtos de doenças epidêmicas que quase a inviabilizaram, e, com ela, o porto.

Palavras do poeta Vicente de Carvalho, em abril de 1892, então secretário do interior do estado de São Paulo, falando de Santos, sua terra natal: "Com relação a essa cidade, a situação é extrema e só de dois alvitres extremos se nos oferece a escolha: ou o Estado cria outro porto que lhe permita dispensar para as suas relações comerciais com o exterior o de Santos e abandona, no interesse de sua própria segurança, aquele foco de infecção, ou enfrenta energicamente com o saneamento definitivo da nossa principal cidade marítima. Entre as duas soluções não parece susceptível de dúvida a preferência. O abandono do Porto de Santos seria um desastre sob todos os pontos de vista".

Naquele ano de 1892 foi encampada a rede de esgotos, até então em mãos de particulares, funcionando de forma precária, e criada a poderosa Comissão Sanitária, onipresente e capaz de tudo, inclusive arbitrariedades, em sua cruzada contra a peste. Santos então era conhecida como "porto da morte". Seu objetivo mais evidente era ordenar o adensamento urbano, a raiz primeira dos contágios num lugar sem saneamento, no qual as casas de cômodos abrigavam centenas de pessoas recém-chegadas de outras cidades e continentes para trabalhar no porto.

Esses cortiços eram demolidos à força, sem qualquer preocupação com os desalojados que, sem ter para onde ir, limitavam-se a mudar para outro lugar qualquer, também provisório e, em geral, pior que o anterior.

As inaugurações dos canais da Cidade eram verdadeiras festas populares e mais um passo na luta contra as epidemias fatais

Foto: reprodução, publicada com o texto

"Lenta e silenciosamente, mas não sem violência, os espaços foram reivindicados ao arbítrio dos dominantes. Cada pedaço de solo em Santos teve redefinida sua função: o lazer nas praias, o comércio no centro, o transporte de café ao longo do estuário, as fábricas na direção da serra etc. Fora do arruamento ficaram os indesejáveis hospitais de doenças contagiosas, o cemitério, o matadouro, a hospedaria dos imigrantes, o mercado, o depósito de lixo, as cocheiras e os barracos de amadeira". Assim descreveu Wilson Gambeta, em seu livro Santos, limiar do século.

Em 1904, a febre amarela fora definitivamente extinta, a campanha sanitária dera os resultados esperados, pelo menos o suficiente para apagar a imagem antiga do "porto da morte".

As condições de vida dos que trabalhavam no porto, porém, haviam mudado pouco, muito pouco. Submetiam-se a elas, resignados, os trabalhadores, como se Santos fosse apenas um lugar provisório, um acampamento a ser abandonado na primeira oportunidade, onde o mínimo espaço tinha de ser aproveitado.

A moradia típica do operário santista era, ainda, o cortiço de madeira, com telhado de zinco, chão de terra, sem água corrente e com uma única latrina, quando havia, para várias famílias. Vivia-se até mesmo nas inúmeras cocheiras, espalhadas pelas áreas periféricas, construídas para os cavalos e mulas que transportavam o café da ferrovia até os armazéns e o cais.

A população ainda se adensava, portanto, na área urbana, agora na proporção de 14 habitantes por habitação, na média calculada pela onipresente Comissão Sanitária.

Construir casas populares, com infra-estrutura básica e planejamento prévio, não era considerado um negócio compensador. Um exemplo foi a ação de Roberto Simonsen, que por proposta de Belmiro Ribeiro obteve favores especiais da Câmara Municipal para edificar "habitações econômicas" e, em 1914, iniciou a construção da Vila Belmiro.

O projeto previa um bairro-modelo para operários, mas anos depois Simonsen relatou, pessimista: "A experiência que colhemos das construções já feitas nos levou à convicção de ser impossível, à vista das exigências, a edificação de vilas operárias econômicas por particulares, comportando uma justa remuneração do capital empregado. Apesar de existirem no bairro habitações com cinco peças por preços a partir de 60$000 mensais, nunca foram elas habitadas por operários propriamente, mas sim por elementos da classe média, os operários de casaca, empregados de carteira, que constituem realmente uma classe que entre nós muito sofre e que merece esse auxílio. A classe obreira prefere habitar nas casinholas de madeira, em pleno campo, livre da ação disciplinadora da higiene e do fisco".

A rudeza da linguagem, denunciadora do preconceito, não fugia, porém, à realidade daqueles tempos de barro, de um heroísmo quase infinito na tarefa, aparentemente simples de nos legar um futuro.

As epidemias, ceifando vidas e sonhos vindos do mar

Apenas na última década do século passado (N.E.: século XIX), as doenças epidêmicas causaram a morte de 22.588 pessoas na Cidade, o que representava metade da população santista da época. Para os viajantes em escala, o melhor era "passar sem se deter", como orientavam as companhias de navegação estrangeiras, muitas das quais chegavam a mandar toda a tripulação ao planalto, até que se completassem as operações portuárias.

Em 1894, cem anos atrás, morreram em Santos 2.574 pessoas e nasceram apenas 810. Morria-se de febre amarela, varíola, tuberculose, tifo, malária, impaludismo, peste, a lista mortal parecia não ter fim.

Quem podia, mudava-se para São Paulo, fugindo das doenças. Muitos abandonaram casas, ainda que precárias, que acabavam sendo ocupadas, em condições ainda mais difíceis, pelos imigrantes, que chegavam em quantidades tão grandes que superavam a absurda taxa de mortalidade.

A eles somavam-se milhares de trabalhadores, de todos os cantos do País, contratados para as obras do cais e para embarcar café. A Cia. Docas mandou buscar trabalhadores, à força, e muitos fugiam do "porto da morte".

Em 1913, o censo municipal apontou uma população de 88.967 pessoas. Santos já podia pensar em um futuro, afinal.

O desafio de vencer a íngreme barreira da serra, para construir um futuro dependente de planalto e mar

O grande salto foi dado em 1859. A palavra salto não é exatamente uma força de expressão para a tarefa de despencar trilhos, desde o alto da serra, até o porto. Naquele ano foi iniciada a construção da São Paulo Railway, a Inglesa, o caminho de ferro entre o planalto e Santos.

Um complicado sistema de cabos, o sistema funicular, garantia a transposição da íngreme encosta, que Frei Gaspar havia considerado um dia, um século antes, "o pior caminho que tem no mundo".

Inaugurada oito anos depois, a Railway iniciou uma nova era para o porto de Santos e para a lavoura cafeeira paulista, um outro tipo de salto, este em direção ao futuro. O café, que antes ia para o Rio de Janeiro em sua maior parte, o que entravava, pela distância, o crescimento de sua produção e comércio em São Paulo, passou a chegar a Santos.

A cidade era, desde 1789, por decreto do governador Bernardo José de Lorena, o principal porto da, então, capitania paulista. Foi ele que mandou construir a chamada "Calçada de Lorena", precário caminho para o escoamento do açúcar, repleto de trechos íngremes, mas ainda assim um avanço considerável sobre as condições anteriores, ainda mais precárias.

A "Calçada" foi abandonada no início da segunda metade do século passado [XIX], com a abertura da "Estrada da Maioridade". Em 1852, uma proeza, essa estrada tão diferente do que conhecemos hoje com esse nome, conseguia permitir o tráfego de carroças carregadas em boa parte de seu percurso. Essencial ainda, entretanto, a velha tropa de mulas, o lombo dos burros, agora já não mais arfando sob sacos de açúcar, mas de café. Uma gritante diferença dos métodos dos países compradores.

Só em 1917, com a inauguração do "Caminho do Mar", praticamente a velha "Maioridade" reconstruída em vários trechos, traçado refeito em outros, é que os veículos passaram a chegar ao porto sem grandes tantos problemas.

Desde 1867, entretanto, a Inglesa monopolizava, naturalmente, o transporte das cargas até o porto e, dele, até São Paulo.


Foto: reprodução, publicada com o texto

O reide fantástico dos intrépidos automobilistas

A oficina de papai ia de bem a melhor. A clientela crescia, o nome e a reputação do competente especialista em motores de automóveis se espalhava.

Ficou ele ainda mais conhecido quando, em 1910, pilotando o seu Motobloc, realizou um reide sensacional, de ida e volta a Santos.

Não foi difícil conseguir companheiros para a viagem. Com ele seguiram Amadeu Strambi, Miguel Losito e Antônio dos Santos.[...]

Partiram de casa ao alvorecer, pela Estrada do Vergueiro. Até o Alto da Serra, não encontraram dificuldades, o piloto conhecia bem o caminho, lá estivera antes em piqueniques. Do Alto da Serra em diante começaria a grande incógnita, o desconhecido. Pelo caminho aberto no século passado (N.E.: século XIX), transitavam burros de carga e pequenos veículos a tração animal, não existindo condições para a passagem de automóveis.

Com os instrumentos que levavam, facões, machados, pá e picareta, abriram caminhos cortando árvores, removendo pedras, arrancando raízes, e por mais de uma vez tiveram de suspender o automóvel e carregá-lo a fim de transpor barreiras: pedras, grossos troncos caídos, lama formada pelas nascentes e uma infinidade de outros atravancos. [...]

Varando a noite, seguiram em frente, pela escuridão da mata densa, iluminados apenas pela precária luz dos faróis a carbureto.

Atingiram seu destino na noite seguinte, exaustos, arranhados, sujos, inchados pelas picadas dos insetos, porém felizes.

A descida fora tão penosa que um dos companheiros chegou a sugerir a interrupção do plano. Já haviam feito muito, voltariam os quatro de trem e embarcariam o carro na gôndola da São Paulo Railway. Mas o chefe da expedição era obstinado (atrevido, diria sua mulher): se haviam descido, poderiam subir. Pioneiros, seriam os primeiros a realizar essa façanha. Quem quisesse desistir, que desistisse. Ele, Ernesto Gattai, voltaria dirigindo seu carro, máquina valente, capaz de escalar qualquer serra, de agüentar qualquer tranco.

Os intrépidos companheiros animaram-se novamente, cumpriram a parte mais difícil da empreitada: a subida da Serra de Santos, que exigiu deles mais tempo e maior esforço.

Finalmente chegaram de volta ao ponto de partida, sãos e salvos, o carro enfeitado de ramos de árvores, únicos louros a que tiveram direito. Alguns jornais ocuparam-se do feito, o retrato dos "intrépidos" foi estampado ao lado da notícia do reide. Pela primeira vez o nome e o retrato do automobilista Ernesto Gattai aparecera na imprensa.


Trecho do livro Anarquistas, Graças a Deus, de Zélia Gattai.


Os pontões do velho cais do porto de Santos, na arte do pintor Benedicto Calixto

Imagem: reprodução, publicada com o texto

O porto muda rapidamente, embalado pelo ouro negro, o café

O porto de Santos era, na verdade, algumas dezenas de pontes de atracação, pelas quais corriam as filas intermináveis de homens carregados de sacas de café rumo ao embarque. Ligavam os navios atracados ao chão firme, num lance de 30 metros sobre o lodaçal mau-cheiroso do mangue, depósito de dejetos e resíduos podres de cargas.

Em julho de 1888, o Governo Imperial abre licitação para a construção e exploração do porto como o conhecemos hoje. Era resultado da necessidade de escoamento do café, da pressão dos exportadores quatrocentões de São Paulo e também, é claro, da Casa Rotschild, os banqueiros ingleses que controlavam a Railway, interessados em aumentar seus negócios.

Dos três grupos que se inscreveram para a concorrência, dois desistiram, ficando apenas a Gaffrée, Guinle e Companhia, cujos principais sócios eram Cândido Gaffrée e Eduardo Palassim Guinle. O contrato, com concessão por 90 anos, é assinado já pelo governo republicano, representado por Francisco Glycério, em 1890.

Em fevereiro de 1892, no dia 2, foram inaugurados os primeiros 260 metros de cais, no Valongo, com a atracação do navio Nasmith, um inglês, naturalmente. Naquele mesmo ano, em novembro, seria constituída a Companhia Docas de Santos.

Entre uma coisa e outra transcorreram anos difíceis, um período crítico para a movimentação do porto santista, de total congestionamento, em que as pontes e vias públicas ficaram atulhadas de mercadorias, os navios esperavam até dez meses para atracarem e os produtos apodreciam ou eram roubados em quantidades assustadoras.

Os pontões, transformados quase em armazéns a céu aberto, tinham aluguéis diários que variavam de 150$000 a 300$000; as estadias dos navios, inflacionadas pelo congestionamento, custavam 400$000 a cada 24 horas. A diária dos carregadores, nestes tempos de vacas gordas, iam de 6$000 a 8$000 - dez anos depois, no início do século, mal chegariam à metade desses valores.

Em 1897 o governo determina o fim dos pontões privados. Irregularidades na arrecadação de impostos alfandegários foram o motivo alegado para isso. Só seriam utilizados quando não houvesse outro lugar para atracação. Os dois últimos pontões, de Ferreira Goulart e Xavier Pinheiro, foram demolidos no final daquele ano.

O movimento cresceu rapidamente e, em 1909, o cais já tinha 4.720 metros acostáveis. Mas quase nada mais foi feito, por muito tempo. E apesar de, em 1926, ser aprovado o chamado "Plano Geral de Desenvolvimento do Porto", que previa sua ampliação e a necessidade de construção de um terminal de inflamáveis na Ilha Barnabé, a grande crise mundial de 29 e os fatos que se seguiram a ela, atrasaram por mais um longo período o crescimento.