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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS
Uma anarquista em Santos (graças a Deus)

A escritora Zélia Gattai, muito antes de pensar em ser esposa de Jorge Amado e abraçar as atividades literárias, esteve em Santos, num tempo em que nem existia a Via Anchieta e viajar pelo Caminho do Mar era uma aventura. Tanta que seu pai, pouco antes, se consagrara como intrépido aventureiro ao conseguir viajar de São Paulo a Santos e voltar, de carro (mas com um facão de cortar mato para abrir caminho): foi a primeira viagem do gênero (ida e volta) nessa estrada. Essas histórias são contadas por Zélia no livro Anarquistas Graças a Deus, páginas 17/18 e 134 a 137 da 11ª edição (1986, Editora Record/Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S.A., Rio de Janeiro/RJ):


A velha serra da Estrada do Mar, em 1910. Note-se o volante à direita no carro, seguindo o padrão inglês de direção do trânsito
Foto: História de Santos/Poliantéia Santista, de Francisco Martins dos Santos
e Fernando Martins Lichti, Editora Caudex Ltda., São Vicente/SP, 1996

[...]

São Paulo-Santos, ida e volta - A oficina de papai ia de bem a melhor. A clientela crescia, o nome e a reputação do competente especialista em motores de automóveis se espalhava.

Ficou ele ainda mais conhecido quando, em 1910, pilotando o seu Motobloc, realizou um reide sensacional, de ida e volta a Santos.

Não foi difícil conseguir companheiros para a viagem. Com ele seguiram Amadeu Strambi, Miguel Losito e Antônio dos Santos.

Papai teve que ir à polícia obter autorização para a projetada aventura. Ao assinar o termo de compromisso assumindo a responsabilidade por tudo o que pudesse suceder durante a viagem, soube que não seria o primeiro a realizar tal proeza, como imaginara. Havia algum tempo, outro ousado já a fizera. Surpreso e decepcionado, procurou saber detalhes sobre o feito anterior. Uma informação mais precisa restituiu-lhe o entusiasmo: o outro realizara apenas a viagem de ida a Santos, não se animara a subir a serra no retorno ainda mais difícil. Pois bem: ele e seus companheiros fariam o reide completo. São Paulo-Santos, ida e volta. Seriam os primeiros a fazê-lo.

Partiram de casa ao alvorecer, pela Estrada do Vergueiro. Até o Alto da Serra, não encontraram dificuldades, o piloto conhecia bem o caminho, lá estivera antes em piqueniques. Do Alto da Serra em diante começaria a grande incógnita, o desconhecido. Pelo caminho aberto no século passado (N.E.: século XIX), transitavam burros de carga e pequenos veículos a tração animal, não existindo condições para a passagem de automóveis.

Com os instrumentos que levavam, facões, machados, pá e picareta, abriram caminhos cortando árvores, removendo pedras, arrancando raízes, e por mais de uma vez tiveram de suspender o automóvel e carregá-lo a fim de transpor barreiras: pedras, grossos troncos caídos, lama formada pelas nascentes e uma infinidade de outros atravancos.

Enfrentaram animais, foram picados por mosquitos venenosos.

Varando a noite, seguiram em frente, pela escuridão da mata densa, iluminados apenas pela precária luz dos faróis a carbureto.

Atingiram seu destino na noite seguinte, exaustos, arranhados, sujos, inchados pelas picadas dos insetos, porém felizes.

A descida fora tão penosa que um dos companheiros chegou a sugerir a interrupção do plano. Já haviam feito muito, voltariam os quatro de trem e embarcariam o carro na gôndola da São Paulo Railway. Mas o chefe da expedição era obstinado (atrevido, diria sua mulher): se haviam descido, poderiam subir. Pioneiros, seriam os primeiros a realizar essa façanha. Quem quisesse desistir, que desistisse. Ele, Ernesto Gattai, voltaria dirigindo seu carro, máquina valente, capaz de escalar qualquer serra, de agüentar qualquer tranco.

Os intrépidos companheiros animaram-se novamente, cumpriram a parte mais difícil da empreitada: a subida da Serra de Santos, que exigiu deles mais tempo e maior esforço.

Finalmente chegaram de volta ao ponto de partida, sãos e salvos, o carro enfeitado de ramos de árvores, únicos louros a que tiveram direito. Alguns jornais ocuparam-se do feito, o retrato dos "intrépidos" foi estampado ao lado da notícia do reide. Pela primeira vez o nome e o retrato do automobilista Ernesto Gattai aparecera na imprensa.


Membros da Comissão Geográfica de São Paulo que em 1910 estudaram a transformação da Estrada do Vergueiro no Caminho do Mar. Alguns livros erroneamente informam que esta foto seria da primeira descida de automóvel pela Serra do Mar, entre São Paulo e Santos. O local é um restaurante no trecho do Planalto do Caminho do Mar
Foto: Alfredo Gastoni Tisi Neto (reprodução), in Presença da Engenharia e Arquitetura - Baixada Santista, de Wilma Therezinha Fernandes de Andrade, Livraria Nobel/Empresa das Artes, São Paulo/SP, 2001, também em História de Santos/Poliantéia Santista, de Francisco Martins dos Santos e Fernando Martins Lichti, Ed. Caudex. Ltda., São Vicente/SP, vol. II, 1986

[...]

Guilherme Giorgi - Guilherme Giorgi, abastado dono de cotonifícios, apareceu pela primeira vez na oficina de seu Ernesto logo que ela começou a funcionar, quando o telhado que cobria o barracão era ainda de zinco e onde apenas ele labutava, sem bigorna nem malho, tendo apenas como material de trabalho uma pequena caixa de ferramentas, muita saúde, braços fortes e enorme vontade de vencer na vida.

No início, Guilherme Giorgi apareceu como simples cliente, depois tornou-se amigo. Temperamental, estourado - não dizia duas palavras sem encaixar uma blasfêmia pelo meio - mas com rasgos de generosidade, um homem bom. Encontrou no mecânico o companheiro ideal para acompanhá-lo em suas viagens: equilibrado, calmo, agradável e eficiente. Com o Gattai ao lado não havia perigo de pernoitar na estrada com o carro enguiçado.

Primeiro contato com o mar - Quando Guilherme Giorgi chegou naquele começo de manhã, o carro repleto, a família toda participaria do passeio, nós já estávamos instalados no nosso automóvel. A excitação entre a criançada era enorme. Aquela seria nossa primeira viagem a Santos. Nunca tínhamos visto o mar.

O automóvel de papai era grande e bonito, capota de arriar, e, além dos bancos normais, tinha dois banquinhos - ai, os banquinhos! duros e desconfortáveis, destinados aos menores. Havia lugar para todo mundo e ainda sobrava espaço para a quantidade enorme de cobertores e travesseiros que dona Angelina levava nos passeios domingueiros. Sempre esfriava na volta e, com a mania de velocidade de papai, o vento enregelava a gente. Mamãe era precavida.

Ao chegarmos ao Alto da Serra, paramos no "Restaurante Quáglia" - demora obrigatória para os preparativos -, e enquanto os adultos lá dentro se regalavam com os petiscos preparados na hora, acompanhados de vinho, corri em companhia de Adelina e Alfredo, os filhos mais novos dos Giorgi, para os balanços. Adelina, pouco mais nova que eu, era menina bonita, sempre bem vestida - usava luvas e isso me encantava -, a caçula da casa, mimada pelas irmãs mais velhas, Amélia e Brasilina, e pelos pais. Brincamos muito nas gangorras e nos balanços, corremos atrás de uns patos brancos. Tito ficou de camaradagem com Alfredo e César; Júlio, Rogério e as moças preferiram a companhia dos mais velhos.

Antes de continuarmos a viagem foi encomendado o jantar para a volta. Almoçaríamos na casa de sobrinhos dos Giorgi, em Santos.

Logo depois do "Restaurante Quáglia", começava a descida da serra. A mata densa, de um misterioso verde-escuro, chegava às vezes ao preto. De vez em quando uma cachoeira iluminava a paisagem, alegrando a vista. Tudo era novo para mim. Na tabuleta à beira da estrada, uma caveira pintada e a indicação que meus irmãos leram animados: "Curva da Morte a 500 metros." Passamos por muitas outras curvas perigosas antes de chegar à raiz da serra.

Placas como essa eram vistas no Caminho do Mar ainda em 1920
Foto do livro Cem Anos de Colonização Italiana no ABC, de Roberto Botacini e
   Maria Silene, publicado pela editora Combrig, de Ribeirão Pires/SP, em 1976

Começava agora o Cubatão, outra paisagem inédita para mim: quilômetros e quilômetros de bananeiras plantadas em terreno úmido acompanhavam a estrada até chegar a Santos. Admirou-me o tamanho dos cachos de bananas, imensos, quase encostando no chão, sustentados por minúsculas bananeiras nanicas...

Entramos em Santos pela praia do Gonzaga, cheia de hotéis. Depois vieram as de José Menino, Ilha Porchat, São Vicente, papai apresentando-as aos filhos, contente com as reações de admiração das crianças. Na praia do Gonzaga mudamos a roupa num hotel e, enquanto os pais ficaram bebericando no bar do terraço, na calçada, corremos para as ondas. Estranho ouvir o marulhar das águas! Em casa havia um caramujo enfeitando a cômoda do quarto de mamãe; encostando-o ao ouvido escutava-se uma espécie de eco que diziam ser o barulho do mar.

Atordoada com o vaivém das ondas quebrando na areia, a água a correr rápida, tive de sentar-me para não cair, a cabeça girando... girando...

Sol ainda alto, papai aconselhou que regressássemos. Traiçoeira, a neblina na serra não tinha hora para baixar, e no escuro, à noite, as coisas se complicavam, a falta de visibilidade não era brincadeira. Com muita pena, iniciamos a volta.

Hotel Parque Balneário, na primitiva construção da primeira década do século XX, no Gonzaga
Foto: São Paulo e Outras Cidades - Produção Social e Degradação dos Espaços Urbanos, de 
Nestor Goulart Reis Filho (professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo 
da Universidade de São Paulo), São Paulo/SP, 1995.

Chegamos com dia claro ao "Restaurante Qúaglia". Prossegui nos folguedos da manhã, brinquei até o escurecer.

Enquanto esperávamos que o jantar fosse servido, pediram que eu recitasse. Meu repertório era grande. Wanda ensinava-me poesias, em português e em italiano, preparando-me para qualquer emergência.

Conhecida e famosa entre os amigos de papai, pelas minhas qualidades declamatórias e pela boa memória que possuía, freqüentemente ganhava umas moedas, como recompensa, após os recitativos. Dividia os lucros com Wanda, minha sócia, mas às vezes ela me embrulhava, ficando com o dinheiro todo.

Naquele dia eu estava de repertório novo. Minha irmã me fizera decorar na véspera, a toque de caixa, ao saber de nossa viagem e de um possível "recital", uma poesia italiana, muito triste. Era a história de uma menina cuja mãe morrera mas ela continuava a esperá-la todos os dias, sentadinha na soleira da porta de sua casa. A poesia começava assim: "Fanciúlla, cósa fai su in quella pórta/ chi guardi cosi lontáno per quêlla via?"

Colocaram-me de pé sobre uma cadeira, chamaram a senhora Quáglia, que largou seus afazeres para assistir à menina recitar a poesia italiana; mamãe, ao meu lado, serviria de "ponto" caso eu engasgasse; apreensiva, nervosa ela explicava - quase pedindo desculpas aos presentes - que a menina aprendera a poesia na véspera...

Ao terminar meu recitativo, colocando o pranto na voz: "Tornam êi fiorellini ai vasi miéi/ tornam le stelle/ e tornerá anche léi...", reparei que mamãe se emocionara, esforçava-se por não chorar. A Sra. Quáglia devia ser também muito emotiva, pois seus olhos marejavam lágrimas. Beijou-me e, antes de partirmos, deu-me chocolates e uma linda maçã perfumada. Seu Giorgi meteu a mão na algibeira, puxou uma libra esterlina e me ofereceu. Desta vez Wanda não tirou seu quinhão. A moeda de ouro foi trocada num Banco por vinte mil-réis, o bastante para comprar uma boneca "Lenci", ruiva, lindíssima, que recebeu o nome de Carlota. A boneca de minha infância. [...]


Dona Angelina, mãe de Zélia e uma das personagens das histórias de Anarquistas...
Foto: reprodução da contracapa do livro, na 11ª edição, 1986

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