A velha serra da Estrada do Mar, em 1910. Note-se o volante à direita no carro, seguindo o
padrão inglês de direção do trânsito
Foto: História de Santos/Poliantéia Santista, de Francisco Martins dos Santos
e Fernando Martins Lichti, Editora Caudex Ltda., São Vicente/SP, 1996
[...]
São Paulo-Santos, ida e volta - A oficina de papai ia de bem a melhor. A
clientela crescia, o nome e a reputação do competente especialista em motores de automóveis se espalhava.
Ficou ele ainda mais conhecido quando, em 1910, pilotando o seu Motobloc,
realizou um reide sensacional, de ida e volta a Santos.
Não foi difícil conseguir companheiros para a viagem. Com ele seguiram Amadeu Strambi,
Miguel Losito e Antônio dos Santos.
Papai teve que ir à polícia obter autorização para a projetada aventura. Ao assinar o
termo de compromisso assumindo a responsabilidade por tudo o que pudesse suceder durante a viagem, soube que não seria o primeiro a realizar tal
proeza, como imaginara. Havia algum tempo, outro ousado já a fizera. Surpreso e decepcionado, procurou saber detalhes sobre
o feito anterior. Uma informação mais precisa restituiu-lhe o entusiasmo: o outro realizara apenas a viagem de ida a Santos, não se animara a subir
a serra no retorno ainda mais difícil. Pois bem: ele e seus companheiros fariam o reide completo. São Paulo-Santos, ida e volta. Seriam os primeiros
a fazê-lo.
Partiram de casa ao alvorecer, pela Estrada do Vergueiro. Até
o Alto da Serra, não encontraram dificuldades, o piloto conhecia bem o caminho, lá estivera antes em piqueniques. Do Alto da Serra em diante
começaria a grande incógnita, o desconhecido. Pelo caminho aberto no século passado (N.E.: século XIX),
transitavam burros de carga e pequenos veículos a tração animal, não existindo condições para a passagem de automóveis.
Com os instrumentos que levavam, facões, machados, pá e picareta, abriram caminhos
cortando árvores, removendo pedras, arrancando raízes, e por mais de uma vez tiveram de suspender o automóvel e carregá-lo a fim de transpor
barreiras: pedras, grossos troncos caídos, lama formada pelas nascentes e uma infinidade de outros atravancos.
Enfrentaram animais, foram picados por mosquitos venenosos.
Varando a noite, seguiram em frente, pela escuridão da mata densa, iluminados apenas
pela precária luz dos faróis a carbureto.
Atingiram seu destino na noite seguinte, exaustos, arranhados, sujos, inchados pelas
picadas dos insetos, porém felizes.
A descida fora tão penosa que um dos companheiros chegou a sugerir a interrupção do
plano. Já haviam feito muito, voltariam os quatro de trem e embarcariam o carro na gôndola da São Paulo Railway. Mas o chefe da expedição era
obstinado (atrevido, diria sua mulher): se haviam descido, poderiam subir. Pioneiros, seriam os primeiros a realizar essa façanha. Quem quisesse
desistir, que desistisse. Ele, Ernesto Gattai, voltaria dirigindo seu carro, máquina valente, capaz de escalar qualquer serra, de agüentar qualquer
tranco.
Os intrépidos companheiros animaram-se novamente, cumpriram a parte mais difícil da
empreitada: a subida da Serra de Santos, que exigiu deles mais tempo e maior esforço.
Finalmente chegaram de volta ao ponto de partida, sãos e salvos, o carro enfeitado de
ramos de árvores, únicos louros a que tiveram direito. Alguns jornais ocuparam-se do feito, o retrato dos "intrépidos" foi estampado ao lado da
notícia do reide. Pela primeira vez o nome e o retrato do automobilista Ernesto Gattai aparecera na imprensa.
Membros da Comissão Geográfica de São Paulo que em 1910 estudaram a transformação da Estrada do
Vergueiro no Caminho do Mar. Alguns livros erroneamente informam que esta foto seria da primeira descida de automóvel pela Serra do Mar, entre São
Paulo e Santos. O local é um restaurante no trecho do Planalto do Caminho do Mar
Foto: Alfredo Gastoni Tisi Neto (reprodução), in Presença da Engenharia e Arquitetura
- Baixada Santista, de Wilma Therezinha Fernandes de Andrade, Livraria Nobel/Empresa das Artes, São Paulo/SP, 2001, também em História de
Santos/Poliantéia Santista, de Francisco Martins dos Santos e Fernando Martins Lichti, Ed. Caudex. Ltda., São Vicente/SP, vol. II, 1986
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Guilherme Giorgi - Guilherme Giorgi, abastado dono de cotonifícios, apareceu
pela primeira vez na oficina de seu Ernesto logo que ela começou a funcionar, quando o telhado que cobria o barracão era ainda de zinco e onde
apenas ele labutava, sem bigorna nem malho, tendo apenas como material de trabalho uma pequena caixa de ferramentas, muita saúde, braços fortes e
enorme vontade de vencer na vida.
No início, Guilherme Giorgi apareceu como simples cliente, depois tornou-se amigo.
Temperamental, estourado - não dizia duas palavras sem encaixar uma blasfêmia pelo meio - mas com rasgos de generosidade, um homem bom. Encontrou no
mecânico o companheiro ideal para acompanhá-lo em suas viagens: equilibrado, calmo, agradável e eficiente. Com o Gattai ao lado não havia perigo de
pernoitar na estrada com o carro enguiçado.
Primeiro contato com o mar - Quando Guilherme Giorgi chegou naquele começo de
manhã, o carro repleto, a família toda participaria do passeio, nós já estávamos instalados no nosso automóvel. A excitação entre a criançada era
enorme. Aquela seria nossa primeira viagem a Santos. Nunca tínhamos visto o mar.
O automóvel de papai era grande e bonito, capota de arriar, e, além dos bancos
normais, tinha dois banquinhos - ai, os banquinhos! duros e desconfortáveis, destinados aos menores. Havia lugar para todo mundo e ainda sobrava
espaço para a quantidade enorme de cobertores e travesseiros que dona Angelina levava nos passeios domingueiros. Sempre esfriava na volta e, com a
mania de velocidade de papai, o vento enregelava a gente. Mamãe era precavida.
Ao chegarmos ao Alto da Serra, paramos no "Restaurante Quáglia" - demora obrigatória
para os preparativos -, e enquanto os adultos lá dentro se regalavam com os petiscos preparados na hora, acompanhados de vinho, corri em companhia
de Adelina e Alfredo, os filhos mais novos dos Giorgi, para os balanços. Adelina, pouco mais nova que eu, era menina bonita, sempre bem vestida -
usava luvas e isso me encantava -, a caçula da casa, mimada pelas irmãs mais velhas, Amélia e Brasilina, e pelos pais. Brincamos muito nas gangorras
e nos balanços, corremos atrás de uns patos brancos. Tito ficou de camaradagem com Alfredo e César; Júlio, Rogério e as moças preferiram a companhia
dos mais velhos.
Antes de continuarmos a viagem foi encomendado o jantar para a volta. Almoçaríamos na
casa de sobrinhos dos Giorgi, em Santos.
Logo depois do "Restaurante Quáglia", começava a descida da serra. A mata densa, de um
misterioso verde-escuro, chegava às vezes ao preto. De vez em quando uma cachoeira iluminava a paisagem, alegrando a vista. Tudo era novo para mim.
Na tabuleta à beira da estrada, uma caveira pintada e a indicação que meus irmãos leram animados: "Curva da Morte a 500 metros." Passamos por muitas
outras curvas perigosas antes de chegar à raiz da serra.
Placas como essa eram vistas no Caminho do Mar
ainda em 1920
Foto do livro Cem Anos de Colonização Italiana no ABC, de Roberto Botacini e
Maria Silene, publicado pela editora Combrig, de Ribeirão Pires/SP, em 1976
Começava agora o Cubatão, outra paisagem inédita para mim: quilômetros e quilômetros
de bananeiras plantadas em terreno úmido acompanhavam a estrada até chegar a Santos. Admirou-me o tamanho dos cachos de bananas, imensos, quase
encostando no chão, sustentados por minúsculas bananeiras nanicas...
Entramos em Santos pela praia do Gonzaga, cheia de hotéis.
Depois vieram as de José Menino, Ilha Porchat, São Vicente,
papai apresentando-as aos filhos, contente com as reações de admiração das crianças. Na praia do Gonzaga mudamos a roupa
num hotel e, enquanto os pais ficaram bebericando no bar do terraço, na calçada, corremos para as ondas. Estranho ouvir o marulhar das águas! Em
casa havia um caramujo enfeitando a cômoda do quarto de mamãe; encostando-o ao ouvido escutava-se uma espécie de eco que diziam ser o barulho do
mar.
Atordoada com o vaivém das ondas quebrando na areia, a água a correr rápida, tive de
sentar-me para não cair, a cabeça girando... girando...
Sol ainda alto, papai aconselhou que regressássemos. Traiçoeira, a neblina na serra
não tinha hora para baixar, e no escuro, à noite, as coisas se complicavam, a falta de visibilidade não era brincadeira. Com muita pena, iniciamos a
volta.
Hotel Parque Balneário, na primitiva construção
da primeira década do século XX, no Gonzaga
Foto: São Paulo e Outras Cidades - Produção Social e Degradação dos Espaços Urbanos, de
Nestor Goulart Reis Filho (professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de São Paulo), São Paulo/SP, 1995.
Chegamos com dia claro ao "Restaurante Qúaglia". Prossegui nos folguedos da manhã,
brinquei até o escurecer.
Enquanto esperávamos que o jantar fosse servido, pediram que eu recitasse. Meu
repertório era grande. Wanda ensinava-me poesias, em português e em italiano, preparando-me para qualquer emergência.
Conhecida e famosa entre os amigos de papai, pelas minhas qualidades declamatórias e
pela boa memória que possuía, freqüentemente ganhava umas moedas, como recompensa, após os recitativos. Dividia os lucros com Wanda, minha sócia,
mas às vezes ela me embrulhava, ficando com o dinheiro todo.
Naquele dia eu estava de repertório novo. Minha irmã me fizera decorar na véspera, a
toque de caixa, ao saber de nossa viagem e de um possível "recital", uma poesia italiana, muito triste. Era a história de uma menina cuja mãe
morrera mas ela continuava a esperá-la todos os dias, sentadinha na soleira da porta de sua casa. A poesia começava assim: "Fanciúlla, cósa fai
su in quella pórta/ chi guardi cosi lontáno per quêlla via?"
Colocaram-me de pé sobre uma cadeira, chamaram a senhora Quáglia, que largou seus
afazeres para assistir à menina recitar a poesia italiana; mamãe, ao meu lado, serviria de "ponto" caso eu engasgasse; apreensiva, nervosa ela
explicava - quase pedindo desculpas aos presentes - que a menina aprendera a poesia na véspera...
Ao terminar meu recitativo, colocando o pranto na voz: "Tornam êi fiorellini ai
vasi miéi/ tornam le stelle/ e tornerá anche léi...", reparei que mamãe se emocionara, esforçava-se por não chorar. A Sra. Quáglia devia ser
também muito emotiva, pois seus olhos marejavam lágrimas. Beijou-me e, antes de partirmos, deu-me chocolates e uma linda maçã perfumada. Seu Giorgi
meteu a mão na algibeira, puxou uma libra esterlina e me ofereceu. Desta vez Wanda não tirou seu quinhão. A moeda de ouro foi trocada num Banco por
vinte mil-réis, o bastante para comprar uma boneca "Lenci", ruiva, lindíssima, que recebeu o nome de Carlota. A boneca de minha infância.
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Dona Angelina, mãe de Zélia e uma das personagens das histórias de Anarquistas...
Foto: reprodução da contracapa do livro, na 11ª edição, 1986
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