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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - GREVE! - LIVROS
Uma saga em um porto do Atlântico (2)

Em 1994, durante a gestão do prefeito David Capistrano, do Partido dosClique nesta imagem para ir ao índice da obra Trabalhadores, diversas publicações foram produzidas pela Prefeitura Municipal, resgatando a história de Santos e especialmente a sua atividade sindical. Uma dessas obras é o livro Caixeiro, Conferente, Tally Clerk - Uma saga em um porto do Atlântico, dos jornalistas Paulo Matos e Carlos Mauri Alexandrino, aqui reproduzido integralmente a partir de sua edição única, de março de 1996.

Com 144 páginas e ilustrações (registros CDD - 331.879816 - M433c), o livro inclui ainda textos de Marcos Augusto Ferreira e fotos de Carlos Nogueira, dos arquivos do Sindicato dos Conferentes de Santos e do Departamento de Comunicação da Prefeitura. Esta primeira edição digital, por Novo Milênio, foi autorizada em 19/2/2010 por Paulo Matos. Veja:

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Caixeiro - Conferente - Tally Clerk

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 Uma saga em um porto do Atlântico


Recriação em line-art digital de detalhe do monumento aos fundadores do Porto de Santos, na Praça Barão do Rio Branco. Carregador de café da virada do século XIX/XX - os primeiros trabalhadores avulsos

Imagem: reprodução parcial da página 11

 

Capítulo I - Os tempos de barro

A origem do trabalho avulso, o dia-a-dia dos caixeiros, a luta pela organização,a s disputas entre as gangs e lixas grossas, a vida por um fio, nos tempos heróicos da cidade empestada

"Santos! É no Brasil, e já faz quatro vezes dez anos. Alguém ao meu lado conversa 'Pelé é um super-homem'. Antes era selvático este porto e cheirava como uma axila do Brasil calorento. Cabo Santa Marta. É um navio, e é outro, mil navios!"

O poeta chileno Pablo Neruda escreveu essas palavras, trecho de Santos Revisitada, em 1967, quando chegou à Cidade pela segunda vez, vindo do mar. Havia um ano, então, que os Conferentes haviam recuperado seu sindicato, após mais uma intervenção - desta vez patrocinada pela ditadura que três anos antes, em 64, ancorara o navio-prisão Raul Soares no estuário e levara sonhos acorrentados para porões infectos.

A primeira viagem do poeta se deu em 1927, quando mais ainda que o porto, que observou da amurada do Cabo Santa Marta, selvagem era a vida que se levava. Santos se dobrava, naquela década e antes, sobre canos de velhos revólveres, trabalhadores avulsos defendendo a bala, não raras vezes, o direito de trabalhar a bordo.

"Da companhia é o cais, não os navios", era o argumento definitivo, atrás das armas, em defesa da implantação do trabalho livre, sob controle dos próprios trabalhadores.

Eram então os caixeiros, que ao lado de estivadores, consertadores, descartadores de frutas, formavam um verdadeiro exército fora da lei, sem garantias nem direitos, perambulando pelo porto em busca de trabalho. Só cinco anos mais tarde, em 1932, fundariam o Sindicato, e teriam de esperar outros cinco, até 37, pela sua legalização através da Carta Sindical do governo Vargas, no Estado Novo. São por vezes paradoxais e longos os caminhos percorridos. Principalmente longos.

É difícil precisar quando foi que o trabalho do conferente surgiu, mas o mais provável é que seja um gêmeo rejeitado da navegação comercial. A partir do momento em que foi necessário embarcar e desembarcar cargas, foi igualmente necessário controlar essa tarefa, registrar os volumes, contabilizar o incontável vai-e-vem da riqueza mundial pelos caminhos do mar.

Um inescapável movimento, tocado a vento, a vapor, a óleo, a energia atômica ou luz solar. Não importa o meio. Foram os caixeiros, são os conferentes, e vem aí a designação internacional: serão transformados no tally clerk, em bom inglês, como convém a esses tempos desse esperanto que deu certo.

São, a rigor, filhos dos navios, como todos os trabalhadores avulsos dos portos. Um dia já foram embarcados. No tempo dos navios fretados por tarefa, sem periodicidade nem linhas, de portos desorganizados, todos os trabalhadores necessários às tarefas de carga e descarga vinham - e iam - com os barcos.


No início do século, a economia de Santos dá sinais de força, com intenso movimento nos mercados anunciando novos tempos

Foto: reprodução, publicada com o texto

Em meados do século passado (N.E.: século XIX) é que começou a prosperar, ao Sul do Equador, o que antes já se estabelecera ao Norte. Como convinha à lógica do capital controlador da navegação, começou o enxugamento, para usar um termo correspondente de hoje, das tripulações vastas - prioritárias eram as cargas e, claro, os lucros de quem podia, agora, pagar pelo trabalho nos portos apenas pelo período em que necessitasse dele. Não seriam mais embarcados.

Foi esse desembarque maciço que gerou, nos portos, aquele exército de mão-de-obra fora da lei, trabalhadores que só sabiam mover cargas, que viviam para isso, agora sujeitos ao engajamento esporádico, incerto como as marés. Sem segurança nem salários.

Com o passar do tempo e a ampliação do cais, esse exército só fez aumentar em Santos, um porto insalubre, repleto de doenças tropicais, que apenas havia começado a vencer o lamaçal dos mangues e alagadiços, com seus audaciosos canais.

Caixeiros controlavam o trabalho, verificavam, anotavam, conferiam cargas. Como então podiam ser eventuais, se deles dependia o que, para os pagadores, significava o bom andamento dos negócios?

Em primeiro lugar, era preciso ser da confiança da empresa de navegação ou dos atravessadores de cargas. Fora isso, a boa letra caprichada e o conhecimento razoável de Matemática. E, claro, era importante na busca de bem impressionar quem podia garantir trabalho, estar "bem apessoado", pôr-se o mais elegante possível, dentro das precárias possibilidades. Daí a sina desses homens na cidade, que salvo as exceções que confirmavam a regra, eram tratados como "pedintes engravatados".

Não serem empregados desses negociantes não era opção de quem trabalhava. Era esperteza capitalista, modelo século dezenove. Julgavam-se pequenos deuses encarregados dos negócios humanos sobre a terra, aqueles "movedores de cargas". Acabaram, por ironia do destino, escrevendo certo por linhas tortas. Foi dessa situação que nasceram os princípios de organização desses trabalhadores, a busca da ajuda mútua por quem não tinha garantias.

Inevitável que desse processo de - digamos - escolha de quem trabalhava ou não, surgisse a divisão entre aqueles preferidos dos agenciadores e aqueles preteridos pela desconfiança ou descaso. Isso atrapalhou, de fato, mas não impediu, por necessidade do ofício, que a luta fosse se tornando cada vez mais aguerrida na busca de tornar permanente o trabalho ocasional. Eis aí a base, o alicerce da organização dos avulsos.

Mais um navio, mil navios, o porto crescendo embalado pelo café, o ouro negro capaz de forjar fortunas e misérias, para gerar, muito mais tarde, famas de super-homens.

Na Santos Revisitada, o poeta registra mais: "O café e o suor cresceram até criar as proas, o pavimento, as habitações retilíneas: quantos grãos de café, quantas gotas salobres de suor?"

Já havia ares mais civilizados por aqui quando o poeta Neruda chegou pela primeira vez. Santos cheirava como uma axila calorenta, é verdade, e o trabalho era mais que desumano, no mais das vezes era negado. Um porto. Atrás do porto, uma cidade. Nela estavam os caixeiros, agora mais organizados.

Naquele ano do poeta de 1927, naquela época de barro, nossa saga havia apenas começado.


O Valongo é um dos centros de desenvolvimento da Cidade. É onde cresceu o porto, onde terminam os trilhos da estrada de ferro, onde se concentram os negócios. Em 1901 inaugura-se ali o novo prédio da administração municipal. O edifício imponente para a época é um dos marcos urbanos da economia do café

Foto: reprodução, publicada com o texto

Os imigrantes criam a Barcelona Brasileira

Datam de 1877, antes da abolição portanto, os registros da primeira greve ocorrida em Santos. Foi dos carregadores de café, em busca de melhor pagamento. Obviamente já não eram escravos e, presume-se, também já havia caixeiros no trabalho.

A República foi saudada nos bares das classes emergentes da Cidade pelos coros que entoavam a marselhesa e por mais uma greve de carregadores naquele novembro de 1889. O início de um período turbulento.

Em 1891, acontece em Santos a primeira greve geral do País, que busca superar o código escravagista que ainda perdurava nas relações de trabalho.

Os mediadores foram os cônsules da Espanha e de Portugal, tal o número de imigrantes no trabalho - chegavam a 80%.

Tudo isso é resultado direto da presença dos imigrantes, que trouxeram com eles a organização anarco-sindicalista e a experiência das lutas operárias na Europa. Santos era a Barcelona Brasileira.


Os muitos imigrantes engajados na obra do porto e na operação das cargas, no início do século XX, foram os precursores na tarefa de organizar o mundo do trabalho em Santos

Foto: reprodução, publicada com o texto

Aquele antro de anarquistas organiza a luta

A primeira raiz de nossa organização própria surge na segunda década do século [XX], com o caráter mutualista e o nome de Sociedade dos Caixeiros. É através dela que surgem as primeiras articulações reivindicatórias. Proibida de reunir-se, considerada um "antro de anarquistas", marca a primeira tentativa de fortalecimento conjunto da categoria. Uma ação que exigiu sacrifícios pessoais de vários de seus membros.

Um dos casos conhecidos e ainda lembrados, é o do português Antonio Gonçalves Carneiro, condenado pelos patrões, devido à sua militância, a não mais trabalhar. Os caixeiros reuniam recursos para auxiliá-lo a manter-se.

A Sociedade fecha suas portas em 1928, quando os patrões do trabalho no porto decidem "amoldá-la" a padrões menos "agressivos" de atuação. O ingresso de associados, por exemplo, torna-se "automático" aos que ingressam nos quadros de "preferência" de uma agência. para uma entidade que, pouco antes, era clandestina, muito havia mudado.


Na pequena Santos da virada do século XIX/XX, explodem os conflitos sociais resultantes da contradição entre o crescimento econômico e o velho modelo escravagista que persistia nas relações de trabalho. A organização dos trabalhadores é rápida

Foto: reprodução, publicada com o texto

As gangs contra os lixas grossas

"Gangs" era o nome dado aos grupos de caixeiros privilegiados, que mantinham vínculos com as agências e eram representantes dos interesses diretos de seus patrões no porto, por delegação e confiança.

"Lixas grossas" eram os demais, submetidos ao trabalho totalmente esporádico, resultado de eventuais excessos de trabalho no cais. Os integrantes das "gangs" acabavam reproduzindo, em sua relação com os "lixas grossas", as mesmas condições às quais, afinal, estavam submetidos pelos empregadores, os movimentadores de cargas e companhias de navegação.

Esse conflito dentro da categoria demorou mais de trinta anos para ser superado e atrasou nossa organização por muito tempo.

Os trabalhadores se organizam

Santos é berço de organizações de trabalhadores. Têm um caráter de humanização do trabalho e, no início, são mutualistas. A Sociedade Humanitária dos Empregados do Comércio, por exemplo, data de 1879 (uma das primeiras do País). Servem, entretanto, com embriões da articulação de lutas reivindicatórias.

No período posterior, de resistência, as entidades são clandestinas, perseguidas, sujeitas a constante repressão policial. Em 1904 a Cidade já tinha organizações de luta como a Sociedade 1º de Maio e a Sociedade Internacional União dos Operários, que reuniam diversas categorias e sindicatos, entre as quais a dos caixeiros, segundo as indicações históricas. Os caixeiros estariam também entre os que fundaram a Federação Operária Local de Santos (anarco-sindicalista), em 1907.

O mercado de trabalho, defendido a bala no cais

"Peixinho", "Novita" e "Navalhada" são alguns dos líderes da estiva de Santos no início do século [XX]. Os estivadores reúnem-se às escondidas num porão da Rua General Câmara e ali organizam a resistência ao "polvo", como era chamada a Companhia Docas, que lançava seus tentáculos sobre inúmeras atividades. Foi a partir de 1908 que a Companhia encampa com força policial diversas atividades antes desempenhadas pelos avulsos, como o serviço de carroças e a estiva - passam a ser exercidas por seus empregados e os avulsos somente são chamados em situações de extrema necessidade de mão-de-obra extra.

Aí os conflitos, muitos resolvidos a bala, prosseguem por mais de uma década. Os avulsos, especialmente os estivadores, defendem a qualquer preço seu mercado de trabalho. Muitas são as histórias de sangue e dor neste período.

A Sociedade dos Estivadores de Santos, fundada em 1918, é fechada pela polícia em 1926 e entre seus dirigentes está Manoel Gomes Duque, que mais tarde seria um dos fundadores de nosso Sindicato.

Só em 1930 a situação seria resolvida, quando o general Miguel Costa, secretário de Segurança Pública do Estado, é incumbido pelo interventor de São Paulo, João Alberto, para reprimir as agitações em Santos. O tenentista Miguel Costa, ao contrário, dá apoio aos trabalhadores, garante seu ingresso nos navios, e acaba decidindo a questão polêmica. Em dezembro de 1930 é fundado o Centro dos Estivadores de Santos, do qual surgiria o Sindicato em 1942.


O império Gaffrée-Guinle ergue-se sobre a Cidade como sinônimo de progresso e exploração

Foto: reprodução, publicada com o texto