Recriação em line-art digital de detalhe do monumento aos
fundadores do Porto de Santos, na Praça Barão do Rio Branco. Carregador de café da virada do século XIX/XX - os
primeiros trabalhadores avulsos
Imagem: reprodução parcial da página 11
Capítulo I - Os tempos de barro
A origem do trabalho avulso, o dia-a-dia dos caixeiros, a luta pela organização,a s disputas
entre as gangs e lixas grossas, a vida por um fio, nos tempos heróicos da cidade empestada
"Santos! É no Brasil, e já faz quatro vezes dez anos. Alguém ao meu lado
conversa 'Pelé é um super-homem'. Antes era selvático este porto e cheirava como uma axila
do Brasil calorento. Cabo Santa Marta. É um navio, e é outro, mil navios!"
O poeta chileno Pablo Neruda escreveu essas palavras, trecho de Santos Revisitada, em 1967,
quando chegou à Cidade pela segunda vez, vindo do mar. Havia um ano, então, que os Conferentes haviam recuperado seu sindicato, após mais uma
intervenção - desta vez patrocinada pela ditadura que três anos antes, em 64, ancorara o navio-prisão Raul Soares no
estuário e levara sonhos acorrentados para porões infectos.
A primeira viagem do poeta se deu em 1927, quando mais ainda que o porto, que observou da amurada do
Cabo Santa Marta, selvagem era a vida que se levava. Santos se dobrava, naquela década e antes, sobre canos de velhos revólveres,
trabalhadores avulsos defendendo a bala, não raras vezes, o direito de trabalhar a bordo.
"Da companhia é o cais, não os navios", era o argumento definitivo, atrás
das armas, em defesa da implantação do trabalho livre, sob controle dos próprios trabalhadores.
Eram então os caixeiros, que ao lado de estivadores, consertadores,
descartadores de frutas, formavam um verdadeiro exército fora da lei, sem garantias nem direitos, perambulando pelo
porto em busca de trabalho. Só cinco anos mais tarde, em 1932, fundariam o Sindicato, e teriam de esperar outros cinco, até 37, pela sua
legalização através da Carta Sindical do governo Vargas, no Estado Novo. São por vezes paradoxais e
longos os caminhos percorridos. Principalmente longos.
É difícil precisar quando foi que o trabalho do conferente surgiu, mas o mais provável é que seja um
gêmeo rejeitado da navegação comercial. A partir do momento em que foi necessário embarcar e desembarcar cargas, foi igualmente necessário controlar
essa tarefa, registrar os volumes, contabilizar o incontável vai-e-vem da riqueza mundial pelos caminhos do mar.
Um inescapável movimento, tocado a vento, a vapor, a óleo, a energia atômica ou luz solar. Não importa
o meio. Foram os caixeiros, são os conferentes, e vem aí a designação internacional: serão transformados no tally clerk, em bom inglês, como
convém a esses tempos desse esperanto que deu certo.
São, a rigor, filhos dos navios, como todos os trabalhadores avulsos dos portos. Um dia já foram
embarcados. No tempo dos navios fretados por tarefa, sem periodicidade nem linhas, de portos desorganizados, todos os trabalhadores necessários às
tarefas de carga e descarga vinham - e iam - com os barcos.
No início do século, a economia de Santos dá sinais de força, com intenso movimento nos mercados
anunciando novos tempos
Foto: reprodução, publicada com o texto
Em meados do século passado (N.E.: século XIX) é que começou a prosperar,
ao Sul do Equador, o que antes já se estabelecera ao Norte. Como convinha à lógica do capital controlador da navegação, começou o enxugamento, para
usar um termo correspondente de hoje, das tripulações vastas - prioritárias eram as cargas e, claro, os lucros de quem podia, agora, pagar pelo
trabalho nos portos apenas pelo período em que necessitasse dele. Não seriam mais embarcados.
Foi esse desembarque maciço que gerou, nos portos, aquele exército de mão-de-obra fora da lei,
trabalhadores que só sabiam mover cargas, que viviam para isso, agora sujeitos ao engajamento esporádico, incerto como as marés. Sem segurança nem
salários.
Com o passar do tempo e a ampliação do cais, esse exército só fez aumentar em Santos, um porto
insalubre, repleto de doenças tropicais, que apenas havia começado a vencer o lamaçal dos mangues e alagadiços, com seus audaciosos canais.
Caixeiros controlavam o trabalho, verificavam, anotavam, conferiam cargas. Como então podiam ser
eventuais, se deles dependia o que, para os pagadores, significava o bom andamento dos negócios?
Em primeiro lugar, era preciso ser da confiança da empresa de navegação ou dos atravessadores de
cargas. Fora isso, a boa letra caprichada e o conhecimento razoável de Matemática. E, claro, era importante na busca de bem impressionar quem podia
garantir trabalho, estar "bem apessoado", pôr-se o mais elegante possível, dentro das precárias possibilidades. Daí a sina desses homens na cidade,
que salvo as exceções que confirmavam a regra, eram tratados como "pedintes engravatados".
Não serem empregados desses negociantes não era opção de quem trabalhava. Era esperteza capitalista,
modelo século dezenove. Julgavam-se pequenos deuses encarregados dos negócios humanos sobre a terra, aqueles "movedores de cargas". Acabaram, por
ironia do destino, escrevendo certo por linhas tortas. Foi dessa situação que nasceram os princípios de organização desses trabalhadores, a busca da
ajuda mútua por quem não tinha garantias.
Inevitável que desse processo de - digamos - escolha de quem trabalhava ou não, surgisse a divisão
entre aqueles preferidos dos agenciadores e aqueles preteridos pela desconfiança ou descaso. Isso atrapalhou, de fato, mas não impediu, por
necessidade do ofício, que a luta fosse se tornando cada vez mais aguerrida na busca de tornar permanente o trabalho ocasional. Eis aí a base, o
alicerce da organização dos avulsos.
Mais um navio, mil navios, o porto crescendo embalado pelo café, o ouro negro capaz de forjar
fortunas e misérias, para gerar, muito mais tarde, famas de super-homens.
Na Santos Revisitada, o poeta registra mais: "O café e o suor cresceram
até criar as proas, o pavimento, as habitações retilíneas: quantos grãos de café, quantas gotas salobres de suor?"
Já havia ares mais civilizados por aqui quando o poeta Neruda chegou pela primeira vez. Santos
cheirava como uma axila calorenta, é verdade, e o trabalho era mais que desumano, no mais das vezes era negado. Um porto. Atrás do porto, uma
cidade. Nela estavam os caixeiros, agora mais organizados.
Naquele ano do poeta de 1927, naquela época de barro, nossa saga havia apenas começado.
O Valongo é um dos centros de desenvolvimento da Cidade. É onde cresceu o porto, onde terminam os
trilhos da estrada de ferro, onde se concentram os negócios. Em 1901 inaugura-se ali o novo prédio da administração municipal. O edifício imponente
para a época é um dos marcos urbanos da economia do café
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O mercado de trabalho, defendido a bala no cais
"Peixinho", "Novita" e "Navalhada" são alguns dos líderes da estiva de Santos no início do século
[XX]. Os estivadores reúnem-se às escondidas num porão da Rua General Câmara e ali organizam a resistência ao "polvo",
como era chamada a Companhia Docas, que lançava seus tentáculos sobre inúmeras atividades. Foi a partir de 1908 que a Companhia encampa com força
policial diversas atividades antes desempenhadas pelos avulsos, como o serviço de carroças e a estiva - passam a ser exercidas por seus empregados e
os avulsos somente são chamados em situações de extrema necessidade de mão-de-obra extra.
Aí os conflitos, muitos resolvidos a bala, prosseguem por mais de uma década. Os avulsos, especialmente os
estivadores, defendem a qualquer preço seu mercado de trabalho. Muitas são as histórias de sangue e dor neste período.
A Sociedade dos Estivadores de Santos, fundada em 1918, é fechada pela polícia em 1926 e entre seus dirigentes está
Manoel Gomes Duque, que mais tarde seria um dos fundadores de nosso Sindicato.
Só em 1930 a situação seria resolvida, quando o general Miguel Costa, secretário de Segurança Pública do Estado, é
incumbido pelo interventor de São Paulo, João Alberto, para reprimir as agitações em Santos. O tenentista Miguel Costa, ao contrário, dá
apoio aos trabalhadores, garante seu ingresso nos navios, e acaba decidindo a questão polêmica. Em dezembro de 1930 é fundado o Centro dos
Estivadores de Santos, do qual surgiria o Sindicato em 1942.
O império Gaffrée-Guinle ergue-se sobre a Cidade como sinônimo de progresso e exploração
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