Inauguração do canal na então Rua Rangel Pestana, em 1907
Foto: Jornal da Orla, Santos, 22/23 de fevereiro de 1997
Cobrindo de aço a alma da cidade
Carlos Mauri Alexandrino (*)
Paris sem a Torre Eiffel, Nova Iorque sem Empire State,
São Paulo sem Ibirapuera, Santos sem canais. Fogem ao meu espírito, entre outras, essas possibilidades. O prefeito Beto Mansur diz que quer ouvir os
munícipes sobre sua idéia de cobrir os canais da cidade, transformando-os em vias expressas. Minha opinião, pois, está dada.
Pelo que deduzo do que a imprensa publicou, certamente ele me enquadraria entre os
habitantes românticos. Embora não possa negar o rótulo, nem tanto ao mar, por favor. Tenho cansado de bater no velho "não pode" dessa nossa
ilhazinha atlântica. Acho que devem haver mudanças, sim. Sempre. Mas também acho que tudo tem limite. Principalmente quando se mexe com causas
primeiras, com raízes e fundamentos, com referências, aquilo que a sabedoria africana chamou de "axé".
Os canais de Santos vieram de um poeta, sabia? De Vicente de Carvalho, que foi
secretário de Vias Públicas da Província de São Paulo no início de nossa história republicana - logo, "os poéticos canais de Santos" não são apenas
uma força de expressão, se assim quisermos entender. Mas Vicente de Carvalho era um romântico irrecuperável, que havia feito barricadas republicanas
nas ruas de Santos e dirigido a rebelião que acabou por apear do poder o então presidente da Província.
"Ou se saneia a cidade de Santos e seu porto ou se fecha aquele foco de infecção em
nome da saúde pública", disse o poeta-secretário há cem anos contados. Metade da população de Santos morrera nos quinze anos morrera nos quinze anos
anteriores, assolada por doenças tropicais. Na primeira fase, a mais grave, sem qualquer apoio do agonizante governo monárquico que pretendeu, com a
omissão, dar uma lição "àqueles rebeldes republicanos paulistas". Nossos canais, repare, estão enfiados em nossa história, mesmo na política, como
pulgas num cachorro. O poeta, com seu romantismo, ganhou a parada.
Saturnino de Brito era um engenheiro sem meios-termos. Briguento como o diabo. Foi
escalado como presidente da Comissão Sanitária, quase com poderes de vida e morte num tempo de muitas delas - "é uma cidade terrível, que arfa de
calor como uma caldeira, pestilenta e doentia", escreveu naquela época, em seu diário, o cônsul inglês, Richard Burroughs, que depois seria um dos
responsáveis pela construção do Canal do Panamá. Canais, sempre canais!
Planejamento - Saturnino planejou uma cidade nova, diferente das demais, de
linhas retas, sem os desvios costumeiros que preservaram, por toda parte, os terrenos dos abastados e poderosos. Ele, não. Não faria concessões
naquele início de século. Seus canais riscados sobre o mapa teriam de ser construídos à risca e remodelariam Santos inteira - uma epopéia que se
iniciou em 1905, movendo gentes e casas, revolvendo terra em quantidades nunca vistas, usando equipamentos fabulosos para a época. Uma tarefa épica,
um filme de Cecil B. de Mille ao vivo.
Foram mais de vinte anos de um trabalho daqueles que não se vê mais - principalmente
considerando que, ao final, Saturnino devolveu sobra de dinheiro, com o argumento que nunca mais se ouviu: "A construção custou menos que o
previsto". Até nisso os canais têm história única.
De chapéu panamá, elegantemente trajado com o melhor corte de linho 120, em pé sobre a
proa de um pequeno barco bem no meio do Canal 1, ereto como um obelisco, o homem recebeu as homenagens dos santistas como quem recebe uma comenda,
em 1907.
Dez anos depois, metade da obra pronta, já vencera as epidemias, as disputas
políticas, as pressões, e criara, finalmente, sua cidade reta, de rigoroso quadriculado que hoje se vê desde a órbita, nas fotos dos satélites.
Muitos anos ainda seriam gastos na tarefa de dar aos nossos canais a fisionomia que
têm hoje - lamentável que tenham perdido os corrimãos originais, de ferro fundido, que lhes conferiam uma agradável dignidade européia. Claro que
polir tais peças hoje em dia seria um desperdício de esforço e dinheiro, sem falar da vigilância sobre elas para que não - digamos - se escafedessem
nas madrugadas.
Árvores, pilares, pontes foram lançados sobre eles, construindo mais que uma obra, um
marco, uma identidade única e irreproduzível. Uma impressão digital. Um mapa genético.
Beleza - Pare em uma das pontes dos canais mais arborizados e olhe para o quase
túnel que se abre adiante. Mas olhe com olhos de ver: são de uma beleza simples e gloriosa, radiante. Foi sobre uma delas que Josephine Backer
escolheu posar para os fotógrafos. Eram a parada preferida das caminhadas vespertinas de Carlos Gardel, preparando-se para o show noturno do
Miramar, na boca da Conselheiro Nébias, a avenida que Saturnino esqueceu.
Impossível imaginar os canais tapados, com carros percorrendo o caminho que é das
águas - seu objetivo fundamental sempre foi o de ligar o oceano ao outro lado da ilha, de modo a secar a terra. Devemos boa parte de nosso
território à existência dessas velhas vendas cortadas sobre a carne da cidade. Veias abertas de Santos, uma literalidade da idéia de Cortazar.
O que diríamos à estátua de Saturnino ali perto do 1, no jardim da praia? Está lá, de
bronze, ainda altivo e vigilante, segurando nas mãos a planta de sua cidade reta cortada de canais, que serviu de base para os estudos do que viria
a ser Washington, ela mesma, a capital dos States. O que diríamos, então, à de Vicente de Carvalho ali perto do 4, recostado, de olho na cidade?
Canais!
Outro poeta, o chileno Pablo Neruda, chegou a Santos pela primeira vez em 1927, ano em
que Saturnino concluiu sua obra. Em 1967, quando veio pela segunda vez, chegou a bordo de um navio chamado Cabo Santa Marta, e escreveu:
"Santos. É no Brasil. E já faz quatro vezes dez anos. Antes esse porto era selvático e cheirava como a axila do Brasil calorento". Trata-se de um
pequeno texto, chamado "Santos Revisitada". Encantou-se com os canais enquanto ficou aqui. Mas Neruda era um romântico, como todos sabemos.
Os canais estão entranhados em nossas almas tanto como na alma da cidade. Não devem
ser subtraídas, as nossas nem a dela. Ser moderno é outra coisa.
(*) Carlos Mauri Alexandrino é jornalista |