... puderam beber até fartar-se do melhor e mais puro vinho...
Ilustração de José Wasth Rodrigues, publicada com a matéria
Quando se inaugurou o Chafariz da Coroação
Visitando Santos, em 1846, o imperador Pedro II presidiu à cerimônia, bebendo do
vinho que correu do chafariz, no dia - original lembrança de um cidadão português
Nada mais resta hoje do velho chafariz do Largo da
Coroação. Da Santos dos chafarizes, só resta, mesmo, aquele velho bebedouro de animais fronteiro à
estação da Inglesa, memória degradada do último dos bebedouros públicos da cidade pitoresca da Independência.
Bons tempos aqueles, em que um chafariz podia jorrar vinho!
E sabe-se que o da Coroação, inaugurado no antigo Campo da Misericórdia, precisamente
no encontro atual das ruas D. Pedro II e General Câmara, jorrou o precioso néctar das uvas portuguesas, ante o sorriso bom do segundo Imperador e a
alegria tumultuosa do povo.
Governava a Província o marechal Manoel da Fonseca Lima e Silva, depois barão de
Suruhy. D. Pedro II e a imperatriz Theresa Christina andavam em visita a várias províncias, e a sua chegada a Santos era anunciada para os últimos
dias de fevereiro daquele ano de 1846.
O capitão Antonio Martins dos Santos, Cavaleiro da Ordem de Cristo, então presidente
da Câmara, recebera ordens do governador para providenciar sobre os festejos locais com que deveriam ser recebidos os augustos senhores, em sua
chegada à Província.
Viu-se, depois, que o ponto principal dos festejos populares, em honra dos imperantes,
iria ser a inauguração do grande e majestoso chafariz do Campo da Misericórdia, que passara a chamar-se Largo da Coroação em 1840. Era o maior da
cidade, montado, em rochedos, com uma fonte em baixo, à guisa de aquário, construído vagarosamente, durante 3 anos, ideado que fora em 1841.
Uma carta da marquesa de Santos, datada de 21 de julho daquele
ano, mostra que o primeiro dinheiro recolhido pela Câmara, para tal fim, foi o donativo de 400$000, enviado pela famosa cortesã do primeiro império.
Dizia ela, então:
"É-me demais muito agradável subscrever para uma obra pela qual se deve prestar um
benefício ao povo, e ao mesmo tempo perpetuar um dia que será sempre o penhor da paz e união dos brasileiros, e ainda mais numa cidade da qual me
ufano de ter o título, e assim mando entregar por mão do sr. capitão António Martins dos Santos a quantia de quatrocentos mil réis, sentindo que as
circunstâncias não me permitam que dê uma prova mais importante dos meus bons desejos."
Quatrocentos mil réis, naquela altura, era uma coisa assim como dez contos de réis
nestes dias que correm, e por aí se avalia a montagem que iria ter o famoso chafariz santista.
Afinal, de surpresa para Santos, surgiu o imperador no porto, às 5 horas da tarde do
dia 18 de fevereiro, com a imperatriz e toda uma luzida companhia. Os preparativos dos festejos não estavam todos tomados, com é fácil de supor, e
as principais autoridades provinciais estavam calmamente em S. Paulo. Foi uma correria. Presidente da Câmara, vereadores, delegado de polícia,
comandante da praça, juiz municipal, todos reunidos à pressa, ao troar das salvas dos dois únicos fortes que haviam tido tempo para prepará-las, o
de Itapema e o da Praça, enquanto as principais famílias se ajustavam nas peças de
moda e adereços comprados recentemente para aquele fim.
A Guarda Nacional, reunida em momentos, veio toda à ponte de desembarque, prestar as
continências de estilo, desfilando em alas, do pequeno cais da Alfândega até a porta da Matriz.
Das meninas que deviam representar todas as cidades e vilas da província, somente
trinta e duas já se achavam em Santos, e apresentaram-se, então, com as respectivas faixas distintivas.
Só no dia seguinte, ao meio dia, chegou a Santos o presidente da província,
apressando-se a apresentar seus respeitos aos soberanos.
Sucederam-se as recepções no solar do capitão Martins dos Santos, à
Rua de Santo António, no solar do comendador Ferreira da Silva, à Rua Direita, na
casa colonial do comendador Ferreira Netto, à Rua de Santo António, no Paço Velho, que ainda
continuava na Praça da Matriz, enquanto se fazia o novo no Campo da Chácara, e, finalmente, na
chácara da Barra, do comendador Ferreira da Silva, na praia do Embaré.
Chegava, afinal, o grande dia 23 de agosto, aniversário do príncipe imperial! Festa
grande! E o povo se aprestava para os festejos, em presença do imperador. Parada, Te Deum, sermão na Matriz!
Os imperadores, às 7 e meia da noite, estavam na tribuna armada na janela do solar do
comendador Ferreira da Silva, onde hoje está o escritório da Ford. Queimaram-se os primeiros fogos de vista, girândolas de foguetes e alegorias
pirotécnicas. O Forte da Praça, nos fundos da Alfândega, salvou novamente, em homenagem aos augustos visitantes. Acabada a primeira queima, desceu
d. Pedro ao largo para inaugurar o chafariz, acabado de benzer pelo vigário.
Aproximou-se o presidente da Câmara do imperador, entregando-lhe uma caneca de ouro
maciço para que nela bebesse a primeira água do chafariz santista. Subiu d. Pedro os pequenos degraus armados até a torneira e, ao abri-la, viu que
dela jorrava o mais puro e precioso vinho português.
O imperador demonstrou sua surpresa e sorriu para os circunstantes. Apresentaram-lhe
então o autor da delicada lembrança, o cidadão José Ferreira da Silva Braga, português dos principais da cidade, que, comovido, apenas pôde
balbuciar estas palavras:
- Eu quis mostrar ao povo que vossa majestade é capaz de um milagre, como Cristo, no
governo desta santa terra que é o Brasil!
D. Pedro sorriu e deu-lhe a mão a beijar. O povo gritava vivas ao imperador e ao
Brasil, como aos principais personagens dos governos municipal, provincial e geral. Espoucaram novos rojões e novos fogos de artifício queimaram no
ar, rompendo a música militar vinda de S. Paulo. Um moleque veio até próximo do imperador e recitou em voz alta a quadrinha célebre e popular:
- Atirei um limão n'água
De maduro foi ao fundo
Todos os peixes gritaram:
Viva D. Pedro Segundo!...
O imperador sorriu e deu-lhe uma cédula.
Franquearam o chafariz ao povo, num instante surgiram dezenas de pequenas canecas, e
houve o avança.
- É vinho! É vinho! É do bom mesmo!
O entusiasmo da multidão foi indescritível, e só assim, pobres diabos que nem água
tinham em casa para beber, e precisavam ir buscá-la às fontes e chafarizes, puderam beber, até fartar-se, do melhor e mais puro vinho, continuando o
avança pela noite a dentro, enquanto grande parte do povo entretinha-se com as danças ao ar livre, no cercado de chão batido e preparado no
centro do largo, e bandos de negros escravos, em folga, formavam batuques, sambando, tocando marimbas, crotálios, cuícas, tambaques e agogôs.
Foi até tarde da noite a festa pública. Precedente único na história noturna de Santos
até o 13 de maio de quarenta e dois anos depois. No dia 25, partia o imperador de Santos, satisfeito com o seu povo, e deixando ao presidente da
Câmara, em prova disso, sua preciosa arma de caça, chapeada a ouro e cravejada de diamantes, como recordação. |