Cassiano Nunes: professor, poeta, escritor e ensaísta
Foto: Víctor Soares, especial para A Tribuna -
publicada com a matéria
Cassiano Nunes, compromisso com a Literatura
Radicado em Brasília, o professor deixou por aqui as lembranças de longas conversas sobre
livros, versos e viagens
Narciso de Andrade (*)
Colaborador
A Felicidade pela Literatura
é o título expressivo de um dos livros de Cassiano Nunes. E foi por aí que ele seguiu na vida, por esse caminho do qual jamais se desviou, o
compromisso absoluto com a literatura. esta é, exatamente, uma de suas principais qualidades a fidelidade.
Menino da Rua Paraná, ali na Vila Mathias, onde nasceu a 27
de abril de 1921, cedo partiu para a aventura das viagens e dos encontros, na ânsia de ampliar a sua experiência do mundo sob o ângulo da visão
literária. De regresso de sua primeira viagem aos Estados Unidos, nos contava, naquele seu modo
característico, gesto e voz peculiares de conferencista e professor, ter estado muito próximo da cataratas do Niágara, mas não chegou a vê-las. "Fui
aos Estados Unidos, com bolsa de estudos para estudar a sua literatura e ensinar a nossa. Não me sobrou tempo para turismo".
Das viagens sempre retornou enriquecido de novos conhecimentos, prontamente transmitidos aos
amigos e às platéias atentas às suas palavras marcadas pelo timbre da sinceridade, da coragem, do desapego e pelo amor inarredável à verdade.
Esta postura gerou por vezes desentendimentos e confrontações, como por ocasião da palestra
intitulada A Verdade sobre Martins Fontes, calcada na análise de certos aspectos da vida e da obra do poeta santista.
Era um trabalho de crítica revestida de audácia para a época e as circunstâncias, mas honesta e pertinente, apontando certos excessos e incidências
menores na poesia de Martins Fontes. O conferencista recebeu até ameaças de agressão física na ocasião; não fora entendido. Tempos difíceis.
São dessa época os estudos e análises críticas que o autor publicava neste jornal, com
assiduidade, assumindo com audácia na terra e na época, a bandeira do modernismo. Era um tempo em que esta e a palavra futurismo assustavam e
afastavam as pessoas. Me lembro como era criticada a casa do dr. Castro Simões, em estilo moderno, construída na
Avenida Ana Costa, próxima à Rua Espírito Santo - a orla da praia ainda não oferecia o insólito espetáculo dos
prédios inclinados, era um espaço livre, instante de repouso e beleza no fluxo constante de trabalho da cidade portuária.
|
"A importância de Cassiano na difusão das novas
idéias
ainda não foi destacada" |
|
O posicionamento assumido por Cassiano na difusão das novas idéias no mundo cultural ainda não foi
suficientemente destacado. Embora Santos cultive exemplar e autêntica tradição de caráter nobre e libertário, generosa e terna nas relações humanas,
durante longo tempo se manteve refratária às conquistas contemporâneas nas artes e na cultura. Não era uma simples atitude nem havia ressentimentos
pessoais, mas algo orgânico, visceral, não sendo admitida a presença do elemento perturbador da ordem representado pela expressão artista moderno.
Contra isso foi a grande luta de Cassiano Nunes, armado apenas de seus conhecimentos, embasando a
veracidade de sua argumentação e na companhia de alguns amigos igualmente audaciosos, é a palavra exata.
Sem querer, e como é do meu feitio, acabei por retroceder no tempo e me vejo em discussão
acalorada em locais pouco edificantes, como o inesquecível Cabaré Imperial, uma típica executa tangos, neste momento a loira cantora traz
Malena para o ambiente, mas a voz característica de Cassiano sobreleva o som em tons: "Nossas vitórias são as nossas derrotas". Levei tempo para
entender: se estávamos do lado certo ser derrotado pelo outro lado era uma vitória. Elimino pontuação na frase para torná-la mais límpida pois sobre
ela e o instante os anos se acumularam. Hoje, tudo isso foi superado. Não há marcas doloridas, apenas muita ternura e a presença irremovível da
saudade.
Este é um Cassiano, o desbravador, o combatente do bom combate, como dizia seu amigo Oswald de
Andrade. Mas há vários ouros, o dramaturgo de Nada Mudou, Sempre Haverá Anjos, As Luvas de Ema. Reli com olhos de hoje a
segunda peça citada e nela descobri o encanto discreto da mensagem limpa acionando a trama doméstica de uma família da Rua Paraná, Vila Mathias, não
muito diferente do Morro do Lima, de onde a molecada assistia os jogos da
Portuguesa e delirava com os duelos entre Araken, do Santos, e Rato, o goleiro da Portuguesa, ambos muito
elegantes na postura e atrevidos nos desafios em campo. Tempos românticos do futebol...
A presença do ensaísta, por outro lado, foi sempre marcante em Cassiano. Neste setor, sua obra se
abre em amplo espectro, indo da análise do fato literário em prosa e verso, da investigação biográfica interpretativa de autores como
Monteiro Lobato aos estudos contidos em A Experiência Literária e tantos outros trabalhos que o autor
distribui aos leitores e amigos na forma de bem cuidadas e sucintas publicações.
Dedicou-se também ao magistério superior, tendo participado da equipe fundadora da Faculdade de
Assis, na companhia entre outros do sábio mestre Antonio Candido. De 62 a 65 lecionou na York University, em Nova Iorque, e ao regressar dos Estados
Unidos ingressou no corpo docente da Universidade de Brasília, onde foi titular da cadeira de Literatura e Teoria Literária até se aposentar. Por
outro lado, poucos realizaram tantas palestras e conferências como ele.
Agora, o poeta Cassiano Nunes que se revelou com Prisioneiro do Arco-Íris e não mais se
afastou do exigente exercício da poesia. Ei-lo:
Ensinando um Pássaro a Cantar:
O que tu cantas, pássaro,
é prática e cristal.
Sonora matemática
retinindo em metal
Os êxtases gratuitos
Num vértice se somem...
Só é nobre o papel
alvo que se sujou
com as digitais do homem.
E no poema dedicado ao jornalista exemplar aqui mesmo da
Tribuna, Francisco Azevedo, Contemplando o Porto de Nova Iorque:
Amo o que há de ambíguo
num porto de mar,
que convida a partir
e ensina a ficar
Talvez por ter sido
um prisioneiro,
cristalizei em mitos:
navio e marinheiro!
Agora, corro mundo
Não importa onde vá!
Levo comigo a música
do cais do Paquetá!
Segundo Domingos Carvalho da Silva, um dos autores celebrados da geração de 45, a poesia de
Cassiano Nunes "revela um caso em que a experiência intelectual foi posta a serviço da experiência humana. Com isto se acomoda o fato de o autor de
Jornada, contrariando a regra habitual, ter surgido nas letras como jornalista, crítico literário e ensaísta: somente 25 anos depois de
começar a assinar em A Tribuna de Santos, sua cidade natal, artigos sobre literatura, é que mostrou a face do poeta de Prisioneiro do
Arco-Íris.
Há um tom de velada melancolia e comovida tristeza no itinerário lírico de Cassiano. Que
reencontro na sala ampla da casa de seus pais em São Vicente nas tardes de domingo em companhia de outros combatentes do
ideal, Miroel, Roldão, De Marchi, Azevedo, Nei Guimarães, a conversar altas filosofias entre os deliciosos salgadinhos de
d. Capitulina. Tínhamos certeza que isso nunca acabaria, não é verdade, amigo e mestre Cassiano Nunes? Diga-me aí, de sua criativa solidão de
Brasília, não é verdade?
(*) Narciso de Andrade é poeta e escritor.
O escritor e ensaísta tem vários projetos, entre eles mais um livro sobre Monteiro Lobato
Foto: Víctor Soares, especial para A
Tribuna - publicada com a matéria
O velho professor conta histórias de Santos
José Augusto Gayoso
da ARN em Brasília
Cercado por mais de 10 mil livros em uma pequena casa na ponta da Asa Sul, Cassiano Nunes, aos 75
anos, não para de produzir. Na velha Olivetti que tem em cima de uma mesa onde estão empilhadas revistas cubanas (Cassiano resiste o quanto pode ao
computador), o professor, ensaísta e poeta bate as últimas palavras de um artigo encomendado para uma coletânea do Senado sobre Perspectivas das
letras no Brasil do terceiro milênio.
Ao mesmo tempo, está juntando material já escrito para enviar à editora Galo Branco, no Rio de
Janeiro, que prepara o lançamento de uma antologia só com poemas seus. E ainda aguarda resposta da Editora Brasiliense sobre a proposta de editar
mais um livro sobre Monteiro Lobato. Desta vez, Cassiano, que já tem 15 livros só sobre a obra de Lobato, quer abordar a troca de correspondências
entre o escritor paulista e o baiano Artur Neiva.
As cópias das cartas, rubricadas por Lobato, estão em prateleiras das paredes do sótão da casa de
Cassiano Nunes, disputando espaço com revistas cubanas, artigos já publicados ou inéditos, fotos de palestras por todo o mundo e obras de artes de
amigos que tem espalhados pelo Brasil.
Há 35 anos em Brasília, Cassiano Nunes se sente tão integrado à vida na Capital Federal que
garante não ter nem tempo para pensar em trocar o clima seco da cidade pela beira do mar, de onde veio. Mas basta ser provocado a contar algumas
histórias de seus tempos de Baixada Santista que os olhos de Cassiano brilham e ele acaba confessando: sente uma imensa saudade das braçadas que
dava no Clube de Regatas Saldanha da Gama, no mar de São Vicente, e das festas que freqüentava com o grande amigo
Miroel Silveira, que depois da juventude em Santos se dedicou ao teatro em São Paulo.
Aliás, Cassiano garante que, depois que se aposentou como professor da Universidade de Brasília em
1991, já pensou várias vezes em voltar para Santos, pois ficaria mais próximo dos grandes editores, que estão no Rio de Janeiro e São Paulo. Mas
acha que a mudança dos livros não vai dar certo.
"Tenho muito medo de bagunçar tudo e depois não conseguir tempo ou gente para me ajudar a colocar
as coisas em ordem novamente", comenta Cassiano, que aproveitou a aposentadoria de sua empregada para transformar o quarto onde ela dormia em mais
uma sala de sua casa-biblioteca. Organizar bibliotecas, aliás, é outra das múltiplas especialidades de Cassiano.
Foi ele quem fundou, por exemplo, a primeira biblioteca pública de São Vicente, que funcionava no
prédio do São Vicente Esporte Clube. Também foi Cassiano Nunes quem organizou e pesquisou o setor de correspondências do Palácio do Planalto,
durante os governos Collor e Sarney. A missão, inclusive, o levou a
escrever um livro sobre o tema, chamado Cartas do povo brasileiro ao presidente.
|
"Alguns jornais voltam a dar espaço para as várias formas de literatura" |
|
Cassiano também não esquece de seus tempos de A Tribuna. Ele começou no jornal como
auxiliar de revisão. Mas antes disso, o jornal já marcava sua vida. Apesar de ter apenas nove anos, ele garante que se lembra muito bem do primeiro
grande incêndio que viu. Foi na revolução de 30, quando a sede de A Tribuna foi incendiada por um dos
grupos que estava em luta.
Inesquecíveis também, para o então menino Cassiano, eram as noites em que ficava no jornal até
mais tarde, aguardando o cunhado Cristiano Teixeira fechar os classificados de A Tribuna. "A gente saída por volta das 22 horas e meu cunhado
me levava direto para o Marreiro, um excelente restaurante que ficava na beira do cais. Comíamos aqueles grandes bifes acebolados com muita
vontade", recorda.
As lembranças do escritor também alcançam os antigos companheiros de redação. Entre os grandes
jornalistas da Tribuna dos anos 40 e 50, Cassiano cita Geraldo Ferraz, marido de Patrícia
Galvão, a Pagu, mulher considerada uma rompedora de tabus e preconceitos, na época. Ele não esquece tão pouco do colunista social da
Tribuna daqueles tempos, o hoje famoso advogado Saulo Ramos.
Depois de 50 anos como repórter, redator e articulista da Tribuna e de outros jornais
brasileiros e estrangeiros, Cassiano lamenta que o espaço dos jornais tenha diminuído, pelo menos para os que usavam o veículo para divulgar
ensaios, poesias, contos e outras formas de literatura. Mas ele acredita que isso é uma fase, e mantém as esperanças: "Tenho notado que nos grandes
jornais do mundo e em alguns do Rio e São Paulo esse espaço está sendo retomado. Por isso tenho escrito bastante, para poder publicar, quando for
chamado novamente".
Cassiano Nunes em sua casa-biblioteca, em
Brasília...
Foto: Víctor Soares, especial para A
Tribuna - publicada com a matéria
... e com Miroel Silveira e Narciso de
Andrade, em Santos (1988)
Foto: Víctor Soares, especial para A
Tribuna - publicada com a matéria |