Memória de Pagu é resgatada do lixo
A catadora de rua Selma Morgana Sarti encontrou um
pedaço de Santos no lixo: há quatro meses achou publicações antigas, fotos e documentos originais da escritora Patrícia Galvão, a Pagu, e do
jornalista e crítico Geraldo Ferraz, seu último companheiro. No acervo encontrado na rua estava a foto de Pagu, com dedicatória para Geraldo.
Foto: Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, publicada com a matéria
ACHADO
No lixo estava um pedaço de Santos
Jornais, documentos e fotos de Pagu foram resgatados de uma calçada
Elcira Nuñnes y Nuñez
Da Reportagem
Toda madrugada, quando o relógio marca 2 horas, Selma
Morgana Sarti, de 42 anos, sai de casa em busca de material reciclável pelas ruas da Zona Oeste, no Butantã, na Capital. Jogado nas calçadas,
encontra de tudo: quadros, móveis, tapetes, talões de cheque em branco e até dinheiro.
Mas o seu grande achado aconteceu há cerca de quatro meses, quando em meio a jornais
recentes, descobriu publicações antigas, fotos e documentos originais da escritora, jornalista e militante política Patrícia Galvão, a Pagu,
e do jornalista e crítico Geraldo Ferraz, seu último companheiro. Doado por Selma, o material atualmente faz parte do acervo do Arquivo Edgard
Leuenroth, da Unicamp.
"Não sei dizer onde encontrei o material. Porque vou juntando nos sacos plásticos e só
separo no final do dia para reciclar. Mas o que me chamou a atenção foram os jornais antigos anexados a fotos da mesma pessoa que estava estampada
nas páginas. Junto tinha também placa de metal em homenagem a Pagu", conta a catadora de papel, que nunca tinha ouvido falar na jornalista.
"Eu fiquei sabendo que passou um pouco de sua vida na minissérie Um Só Coração,
mas, na hora que dava, eu estava dormindo. Mas, mesmo que tivesse assistido, eu acho que não ligaria as coisas, porque ela não era o centro da
história".
Mesmo sem saber da importância do que havia encontrado jogado no lixo, Selma levou o
material para mostrar à sua ex-vizinha Cristina Dunaiva, estudante de Filosofia. "Quando ela viu, ficou admirada. Falou 'é a Pagu', o que pra
mim era um monte. Na minha mão, aquilo não tinha interesse, por isso resolvi doar".
No lixo foram encontrados dois retratos de Pagu, assinados por fotógrafos
expressivos da época, e duas fotos - uma ao lado de Geraldo e outra saindo do presídio, sua carteira profissional original, expedida em 30 de abril
de 1946, uma medalha recebida no Festival de Teatro Amador de Santos em 1959 e uma placa de homenagem póstuma a Pagu, feita pela Câmara de
Santos em outubro de 1998.
E mais quatro carteiras de identificação de Geraldo Ferraz, uma delas de A Tribuna,
datada de 1 de janeiro de 64, quando exercia o cargo de secretário do jornal, quatro fotos do jornalista e ainda uma prova do jornal Diário da
Noite de 22 de abril de 1938, com matéria relatando uma das prisões de Pagu, e um caderno de recortes de jornais com anotações de Ferraz,
incluindo uma matéria feita por ele após a morte da esposa, em 1962.
O acervo encontrado por Selma pertenceu ao filho de Pagu, Geraldo Galvão
Ferraz, que vive atualmente nos Estados Unidos. Em litígio com a ex-mulher, ele diz que os documentos e fotos de seus pais foram atirados ao lixo à
sua revelia, mas que felizmente estão em boas mãos, na Unicamp.
Entre o material encontrado pela catadora de rua
Selma Sarti está...
Foto: Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, publicada com a matéria
Pedacinho
da história - "Ajudei a resgatar um pedacinho da história de vocês. Sei que o Geraldo trabalhou em A Tribuna, em Santos", diz feliz a
catadora.
Para ela, que abandonou os estudos no 1º Colegial, encontrar os documentos e fotos de
Pagu aguçou seu interesse por saber coisas sobre a musa do modernismo brasileiro, que foi companheira de Oswald de Andrade. "Li muita coisa
sobre ela, sei que foi muito importante para a história de São Paulo, que lutou muito".
Espírita, Selma acredita que tudo tem um significado na vida. "Talvez, se não fosse eu
que tivesse achado, o material estivesse perdido, não seria entregue. Acho que isso tinha que parar nas minhas mãos. A Pagu deu uma mão e
pensou 'essa é doidinha mesmo, é essa mesmo que vai catar'. Se tivesse sido outro, o material estaria destruído, teria ido para o depósito".
Tudo isso levou Selma a pensar nas milhares de coisas que podem ter passado pelas suas
mãos sem que ela se desse conta da importância. "Há tanta coisa que a gente não sabe. Tantas coisas devem ter passado pelas minhas mãos e nas de
outros catadores sem darmos valor. Se não tivesse achado e entregue jamais saberia o que é um acervo. Não queria aparecer, queria ficar no
anonimato, mas meu nome está lá e o que encontrei ficará para o futuro, meu filho vai poder usufruir disso".
...um retrato de Pagu assinado por fotógrafo expressivo da época
Foto: Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, publicada com a matéria
Agora ela presta mais atenção às coisas que recolhe
O dia-a-dia de Selma começa de madrugada, quando sai com sacolas de plástico em busca
de material para reciclar. Quando cheios, volta para o galpão de lixo e repete a tarefa até às 6, hora de pegar um carrinho. "De madrugada não se
pode fazer barulho, por isso só posso sair com os sacos grandes de plástico pelas ruas. Quando amanhece pego o carrinho e vou até as 11 horas, hora
do lixeiro passar e de levar meu filho pra escola".
Para Selma, o luxo nasce do lixo
Foto: Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, publicada com a matéria
Sua
maneira de trabalhar mudou após encontrar os documentos de Pagu e Geraldo. "Minha vidinha vai continuar a mesma, mas presto mais atenção no
que faço. Não conheço nomes, mas tenho percepção, vou pelas datas".
Para ela, o luxo nasce do lixo. "Encontro objetos, quadros, móveis que nunca jogaria
fora, tapetes que levei para decorar minha casa. Muita coisa dôo. Encontrei até brincos de ouro, talão de cheques em branco e dólar, embora pouco. O
consumismo é muito grande. Tem coisa lacrada, muita comida jogada fora, muito desperdício com tanta gente com fome. Isso em uma amostra de São
Paulo, imagine em todo o Brasil, daria para sustentar o Nordeste. O povo não tem a sensibilidade de doar, prefere jogar. Muita coisa poderia ser
reaproveitada. Aí se vê que não é só o catador que é desprovido de informação", desabafa.
Apesar dos mais de oito quilômetros percorridos diariamente e da baixa renda para sustentar a
família - não passa de R$ 500,00 - Selma nem pensa em mudar de atividade. "É sacrificado, mas prazeroso, a gente conversa com pessoas diferentes, de
nível diferente. É um prazer enorme".
De Geraldo Ferraz foram recuperadas as carteiras funcional e do Grêmio A Tribuna
Fotos: Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, publicadas com a matéria
Família pode pedir o material se desejar
O material encontrado no lixo e que está em poder do Arquivo Edgard Leuenroth, da
Unicamp, de acordo com a supervisora de pesquisas, Elaine Zanatta, pode ser resgatado pela família, desde que seja manifestado o interesse.
"Nós nunca tivemos esse tipo de situação, de alguém querer algo de volta. Mas
entendemos, até porque [se] trata de uma questão afetiva. No entanto, recebemos uma
ligação do Geraldo Ferraz (filho de Pagu), mas ele só manifestou o desejo de saber detalhes, não de resgatar o material", disse.
|
Tudo o que foi achado está em um local adequado
|
|
De acordo com Elaine Zanatta, a função do laboratório é a de preservar (e divulgar) os
vários documentos antigos. "E eles estão em local próprio, com temperatura de 16 graus, e envoltos em papel especial. Aqui eles estão resguardados".
Para o caso de os familiares tomarem a iniciativa de requisitar os documentos de
Pagu, ela diz que não haverá nenhum problema. Para que o laboratório continue com eles no acervo, basta fazer a reprodução.
A imagem de Pagu deixando o presídio é valiosa historicamente
Foto: Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, publicada com a matéria
|