II – CAVALEIRO DA ARTE
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Júlio Dantas. E vou citando ao acaso os portugueses ilustres do culto de Martins Fontes. Júlio Dantas, poeta e escritor, historiador e
dramaturgo, era sempre lembrado por Martins Fontes no dia dezesseis de maio em que se festeja o aniversário do nascimento em 1876.
Júlio Dantas foi o maior e mais carinhoso crítico de quase toda a obra de Martins Fontes. Este, em tempo algum se esquecia dele quando publicava qualquer livro de versos ou de prosa, remetendo-lho. Nisso era pontualíssimo, de cujo mister me
encarregou várias vezes.
Martins Fontes se tornou conhecido em Portugal através das dezenas de crônicas notáveis de Júlio Dantas, algumas estampadas nos números domingueiros do Correio da Manhã, do Rio. E melhor conhecido em Portugal que no Brasil.
Foi ainda por intermédio de Júlio Dantas que Martins Fontes ingressou, como sócio correspondente, na Academia de Ciências de Lisboa, à qual se orgulhava de pertencer, conquanto somente aos íntimos se referisse a esta honraria justa e única em toda
a sua vida de intelectual. Era, pois, com gratidão que os admiradores de Júlio Dantas, em Santos, recordavam o natalício dum dos maiores expoentes da literatura portuguesa contemporânea.
Júlio Dantas se formou em Medicina, mas, ao defender tese de formatura, demonstrou qualidades extraordinárias de artista. O assunto da tese – Poetas e pintores de Rilhafoles (hospício de Lisboa) – foi brilhantemente desenvolvido, fazendo
sobressair o homem de letras em prejuízo da carreira de médico.
As primeiras manifestações literárias surgiram com o livro de versos, Nada, alvorada sonora, composições da mocidade, cheias de entusiasmo lírico, inspiradas sob a influência dos clássicos portugueses, com laivos de romantismo. Os Sonetos
são poemas emocionantes e verdadeiras obras primas da literatura. E como diria Carlos Maúl, sonetos faianças, mimos de fragilidade, aéreos como espuma, transparentes como a talagarça.
Medeiros e Albuquerque, certa vez em conversa na Academia, quando alguém comentava a obra de Júlio Dantas, afirmou que ele criou o bonito na literatura portuguesa. Quem, proclamou Martins Fontes, para glória da literatura da nossa língua,
cantou e pintou a galanteza e a fineza do minuete com mais brilho e refinamento, foi o poeta adorabilíssimo, o mais requintado dos aristocratas, na sua estirpe espiritual, o Cavaleiro da Graça, o troveiro enamorado, o escritor vitorioso e
formoso, o Príncipe dos Artistas na terra ilustre de Portugal: Júlio Dantas, cuja obra literária é vastíssima.
Notabilizou-se, entretanto, no gênero histórico, dedicando-se às investigações, nos arquivos e nas bibliotecas, dos documentos inéditos sobre a história de Portugal. Em crônicas que reuniu em muitos volumes diferentes, elucidou fatos,
acontecimentos, e recordou páginas gloriosas do Portugal de antanho.
Destaca-se, dentre as obras históricas, Pátria Portuguesa, onde fulgem episódios da nobreza, da lealdade, da valentia e da inteligência do povo lusitano, Ilíada lusitana. Colaborou na História da Colonização Portuguesa no Brasil,
que se publicou sob a direção do notável escritor Carlos Malheiro Dias, cuja obra considero um monumento dos mais honrosos para o Brasil.
No teatro, Júlio Dantas nos deu outras tantas maravilhas, das quais distinguimos a célebre peça "Ceia dos Cardeais", cujas representações foram incalculáveis e que hoje se encontra traduzida em várias línguas.
Numa festa, organizada em Santos, em homenagem a Júlio Dantas, no Teatro Coliseu Santista, a "Ceia dos Cardeais" foi levada à cena, com toda a pompa e todo o rigor, nela tomando parte, no papel de cardeal espanhol, Martins Fontes. Ele demonstrou
que seria ator perfeito se quisesse também seguir esta carreira. Vi-o desempenhar o papel com tanto primor que o imaginei, em contraste com o seu ateísmo, um gênio transviado do caminho do sacerdócio. Com tipo de abade, seria um cardeal elegante e
peralta. O poeta Ciro Cota tomou a si o papel de cardeal francês e Alexandre Cardoso o de cardeal português.
Júlio Dantas escreveu romances, um dos quais, A Severa, motivou uma campanha pela imprensa porque descrevia a vida amorosa de um destacado fidalgo português. Esta narração, segundo Martins Fontes, cujo enredo eletriza, espanta pelo
contraste, cuja riqueza vocabular ofusca a vista, cheia de risos e soluços, de agonia e requinte, de miséria e fulgência, é obra-prima de um criador constante de obras-primas. Recentemente, A Severa foi filmado, conquanto o entrecho do
romance fosse em parte desvirtuado, por imposição da técnica cinematográfica.
Há muitos anos, Júlio Dantas sustenta, ininterruptamente, uma seção no jornal portuense O Primeiro de Janeiro, às quintas-feiras, pela qual passaram quase todas as crônicas de que se compõem alguns dos seus muitos livros. Todos os assuntos
se baseiam na psicologia feminina. Estudou a alma da mulher, interpretou-lhe todos os sentimentos, desde os mais simples, ingênuos, líricos, até os estranhos, complexos e patológicos.
Ninguém, como Júlio Dantas, sutil doutor em amor, conhece tão profundamente esta difícil psicologia, em que se tornou mestre singular. E, como dizia Martins Fontes, ele é o noivo inspirado de todas
as mulheres que sonham e sofrem, porque, romanesco, hierático, flor suprema da nossa raça, só ele encarna a beleza, resume a perfeição, no gênio e no físico, no lavor do dizer, na dulcês da voz, nas primorosidades de todas as elegâncias.
O escritor e jornalista Albertino Moreira escreveu que Júlio Dantas, grande amoroso, realizou toda a sua obra à sua imagem e semelhança, ou melhor, numa palavra: realizou-se, num milagre de revelação, através de trinta e tantos volumes duma obra
perfeita; o amor é a substância, invariável na sua obra.
Na história, o século XVIII deslumbrou a Júlio Dantas, porque nele apareceram os maiores talentos da humanidade. Um só encheu o século XVIII, de fulgores incomparáveis, revolucionou os costumes, atassalhou as religiões, combateu os reis e os
ministros prepotentes – Voltaire. O gosto literário e artístico atingiu requintada perfeição para degenerar, pelo excesso de culto, no preciosismo, no culteranismo. No século de Voltaire pôde a humanidade conhecer as primeiras manifestações da
liberdade de pensamento, a mais preciosa dádiva dum povo civilizado e o elemento propulsor de todos os progressos culturais e materiais.
Em Portugal, onde um pouco desta civilização se refletiu, a sociedade, sob a mais rigorosa censura policial, imitava o preciosismo da época, ao mesmo tempo que reaparecia o fanatismo religioso, em contraste com o espírito avançado e descrente dos
filósofos daquele século.
Júlio Dantas, em miniaturas literárias, surpreendeu em documentos guardados nos arquivos, a vida amorosa das mulheres do século XVIII. E vemo-lo a esmiuçar intrigas da sociedade, os costumes, os gostos, as leituras, as doenças misteriosas, as taras
das fidalguinhas, num esforço surpreendente de pesquisador dos arquivos.
Graças ao seu método admirável de trabalho por meio de verbetes catalogados, acumulou imensas notas de erudição que se tornaram a fonte cristalina, abundante, de todo e qualquer assunto. É ainda Júlio Dantas, sobretudo, mágico estilista. É um
mestre completo da prosa, esteta perfeito, do qual poderíamos obter uma estética da língua portuguesa.
A prosa de Júlio Dantas é simples e harmoniosa. Não alonga a frase, nem exagera a aplicação dos adjetivos. Tem descrições de paisagens que são modelos na literatura portuguesa. Os seus futuros biógrafos encontrarão, em toda a obra literária e
histórica, assunto complexo e heterogêneo para demonstrar que ele possuía vastíssima organização de intelectual, rara em nossos tempos.
Júlio Dantas tem exercido os mais altos cargos na vida pública de Portugal. A sua infatigável ação se desenvolveu como acadêmico, ministro, deputado, senador. Presidiu, durante vários anos, a Academia das Ciências de Lisboa, à qual emprestou o
maior relevo. Durante a sua gestão de presidente da Academia, ele próprio e os seus ilustres companheiros apresentaram notabilíssimas comunicações, elogios históricos, relatórios e pareceres, pronunciaram discursos de alta erudição e sublime valor
literário.
Júlio Dantas, em funções públicas, é vogal do Conselho Superior de Instrução, pertence à Comissão Nacional de Cooperação Intelectual, junto à Sociedade das Nações. Coparticipou da comissão que foi a Londres para consolidar a dívida de guerra à
Grã-Bretanha, em 1927, e escreveu as suas famosas cartas daquela capital inglesa. É membro correspondente da Academia Brasileira de Letras e de outros institutos literários e científicos. Possui as grã-cruzes de São Tiago e Espada e de Cristo e é
oficial da Legião de Honra.
Em 1923, Júlio Dantas veio ao Brasil, como delegado do governo de Portugal para tratar do intercâmbio cultural luso-brasileiro. Ele teve uma recepção apoteótica em todas as cidades que visitou, pronunciando uma série de conferências sobre o
heroísmo, a elegância e o amor.
Na visita a Santos, a quinze de julho de 1923, os amigos receberam-no com festas brilhantes, magnificentes, inauditas. A cidade de Santos nunca recebeu um intelectual estrangeiro com tanto entusiasmo coletivo. O povo se aglomerou no
Largo do Marquês de Monte Alegre, em frente da estação ferroviária da São Paulo Railway. Estava um domingo radioso de céu azul, limpo de
nuvens, deliciado pela aragem leve que vinha da verde Serra do Mar. Contribuiu o tempo para a estrondosa recepção a Júlio Dantas pelo hospitaleiro povo da terra dos Andradas.
O comboio da carreira ordinária em que viajava, em carruagem especial de luxo colocada à disposição de Júlio Dantas pelo governo do Estado, entrou na plataforma nº 1, às doze horas e quarenta e seis minutos. Confundindo-se com os últimos resfôlegos
da locomotiva, soaram palmas estrepitosas de centenas de pessoas que se moviam com dificuldade. Um lenço branco que o poeta Mariano Gomes acenava da janela do trem, como previamente se combinara, indicava onde se
encontrava Júlio Dantas.
Três bandas de música, Corpo de Bombeiros, Colonial e União Portuguesa, tocaram os hinos de Portugal e do Brasil, sob patriótico silêncio. A comissão de recepção se encaminhou,
a passo grave, entre alas dos alunos da Escola Portuguesa, ao vagão onde surgiu a figura esbelta de Júlio Dantas.
Martins Fontes correu a apresentá-lo às autoridades e à comissão. Todo o mundo queria apertar-lhe as mãos. O poeta Bruno Barbosa, de pé em cima dum banco, muito a custo, saudou Júlio Dantas, fazendo-lhe a entrega simbólica da chave do município, e
manifestou-lhe com eloquência quanta alegria dava a todos a presença do poeta insigne na terra de Braz Cubas.
Dando o braço à senhorinha Maia Filho, Júlio Dantas atravessou, transbordante de sorrisos, a penumbra alegre da estação, e o povo em alas, apinhado nas imediações, até alcançar, fora, sob sol esplêndido e claro, o
Paço Municipal, onde os vereadores, no gabinete da presidência da Câmara, ofereceram, por intermédio do dr. Moura Ribeiro, uma taça de vinho de champagne e palavras de boas vindas, enquanto o povo, em
baixo, gritava por Júlio Dantas, que apareceu na comprida varanda de gradil de ferro, do primeiro pavimento, levando as mãos ao céu para agradecer o estridor da manifestação popular, em comovente apoteose ao seu nome. Sempre entre o povo que o
ovacionava, Júlio Dantas, no automóvel, foi conduzido ao Consulado de Portugal, no Largo do Rosário.
Na sala nobre do Consulado de Portugal, a poetisa Clotilde de Matos descerrou o retrato de Júlio Dantas, velado pela bandeira portuguesa, e que Valdemar Belisário pintou. Em baixo do retrato, em gravação num cartão de ouro, liam-se as palavras –
"Júlio Dantas – Cavaleiro da Graça – Embaixador do gênio português no Brasil – Martins Fontes".
O poeta Heitor de Morais, por incumbência de Martins Fontes, saudou Júlio Dantas, enaltecendo-lhe a obra poética. A seguir, falou-lhe de Martins Fontes que todos amavam, "na carinhosa intimidade da sua família ilustre, ou na das nossas casas, ou
nos raros e rápidos minutos de descanso do seu consultório clínico; do Martins Fontes faiscador dos tesouros da nossa língua, que ele descobre, conquista, acumula, e dissipa, reparte, distribui às mancheias, fraternalmente, generosamente,
liberalissimamente, com a pobreza de nós outros, seus irmãos e seus discípulos; do Martins Fontes, criador dos entusiasmos da nossa gente que ele instrui, educa e inicia nos sagrados mistérios das artes; do Martins Fontes, renovador do ambiente
intelectual da nossa antiga cidade, outrora tão refratária a todas as manifestações da beleza", e agora transformada em um ninho de poetas e artistas…
Então, o poeta Heitor de Morais teve o feliz ensejo de recordar o perfil que Oscar Lopes, com assombrosa previsão, escreveu de Martins Fontes, há trinta e cinco anos: "Esta criatura é ainda talvez um mistério para quem só conhece e vê a espuma
branca do mar… Passou pela Terra sem que se percebesse quando surgiu e quando desapareceu, tal o deslumbramento em que nos encontramos com a passagem meteórica daquele gênio. Não era uma ruidosa esperança, era uma realidade; tinha todas as
qualidades do super-homem, as boas e as más; todas as crenças tinham nele a feição da certeza fatal; ninguém possuiu convicções mais fortes; estão no mesmo grau as suas prostrações, os seus abatimentos; ele era por si só – o resumo de uma raça
inteira…
Martins Fontes estava encalistrado e Júlio Dantas sorria jubiloso com a surpresa do brinde do poeta Heitor de Morais. O próprio Júlio Dantas sentia-se confuso com a inexplicável manifestação do povo de Santos. Compreendê-la-ia se partisse dos
poetas, dos escritores, dos políticos. Atribuiu, pois, o fogo do entusiasmo popular a Martins Fontes, ao carinho fraternal do fulgurante poeta santista.
Num gesto de galanteria e de gratidão, Júlio Dantas beijou a mão da poetisa Clotilde de Matos. O dr. Ribeiro de Melo, cônsul de Portugal, agradeceu a homenagem que se prestava ao eminente poeta luso. Júlio Dantas, em companhia dos intelectuais
santistas, almoçou no Parque Balneário Hotel, presenciou as corridas no hipódromo do Jockey Club e visitou a sua sede. Percorreu as praias santistas que proporcionavam, aos
olhos estupefatos dos que as contemplavam, a linda paisagem marinha ao sol de glorioso dia de inverno, com todas as nuanças de verde e azul entre cintilações de ouro, a Ponta da Praia, Boqueirão e Gonzaga ao José Menino e São Vicente.
À noite, grandioso cortejo acompanhou, desde a Praça José Bonifácio de Andrada, o automóvel que conduzia Júlio Dantas ao Teatro Guarani. Da sacada deste teatro, na
Praça dos Andradas, o poeta Mariano Gomes, após os acordes dos hinos das duas pátrias amigas pela banda da União Portuguesa, saudou Júlio Dantas em nome do povo de Santos, para demonstrar com eloquência em que alto
grau de admiração e simpatia tinha a obra admirável do artista e do patriota, e o mais legítimo embaixador do gênio de Portugal, a quem oferecia a rosa rubra, centifólia e sempre viva do afeto dos filhos da terra de Martins Fontes.
O Teatro Guarani ofegava ansioso, repleto de imensa multidão que ocupou todos os lugares na plateia, nos camarotes, nas galerias, nos cantos e nos corredores. O gracioso teatrinho de Artur Azevedo, em cujo palco pisaram, em momentos gloriosos de
outrora, artistas famosos, onde o saudoso pintor Benedito Calixto revelou o seu gênio de artista – parecia se alegrar com tamanha assistência. Via-se no varandim de cada camarote um escudo com o nome de cada obra de
Júlio Dantas, ligados entre si por festões floridos. A iluminação elétrica em abundância deslumbrava como obra de feitiçaria em palácio encantado.
No palco, em cena aberta, surgiu o glorioso poeta Júlio Dantas, ao lado dos poetas Martins Fontes, Galeão Coutinho e Alberto Sousa, à frente do séquito de autoridades municipais e de jornalistas,
sob longa e estridente reboada de palmas.
Martins Fontes se abeirou do proscênio e, à luz da ribalta, em voz calorosa, emocionadora, descreveu como na verde América, na África rutilante, na Ásia eterna, na Europa artística, na Oceania longínqua, nas cinco partes do mundo, onde quer que se
fale a nossa língua formosíssima, onde se alinde a frase, onde se pratique a religião da arte, no silêncio do gabinete, na serenidade do templo, na oficina de trabalho dum poeta, enfim, onde arte a lâmpada do sonho – existe a multifária admiração a
Júlio Dantas.
Martins Fontes tinha a honra, naquele momento oportuno, de saudar o seu mestre e a ventura de o brindar como Irmão, quando sentia uma das mais raras comoções da sua existência, experimentava a alegria mais vívida, no instante que ele desejou
durante anos, esperou com desespero.
Cercado da sua gente que o enobrecia, na sua cidade que o orgulhava, só três vezes Martins Fontes gozou felicidade igual: quando, aos quinze anos, coroou a Olavo Bilac em nome dos pajens poetas do Brasil; quando, em pleno verão do seu destino,
agradeceu aos irmãos Valdomiro e Agenor Silveira o prêmio divino da sua amizade; quando, ao alvorecer do seu primeiro cabelo branco, entoou a Coelho Neto, pelo povo de Santos, o hino da sua
admiração.
Na peroração arrebatadora, Martins Fontes sugeriu que o monumento a Júlio Dantas, um dia, brilharia numa das claras avenidas cariocas, entre rosais fragrantes, tendo o silêncio para o beijo, ninho florido para o sonho, entre Camões e Guerra
Junqueiro, entre Eça de Queiroz e António Nobre.
Júlio Dantas, com extrema e harmoniosa elegância, na sua casaca de corte impecável, de flor ao peito, lindo botão de rosa, cingindo a banda rubra da Ordem de Santiago, com visível emoção agradeceu o hino laudatório de Martins Fontes, e num tom de
voz melodiosa, quente e forte, iniciou a sua conferência, contando-nos a influência da vida perdulária de Jorge Bryan Brummell, o maior árbitro da aristocracia inglesa, desde o fastígio em Londres à miséria em Paris, sobre a elegância romântica em
Portugal ou, melhor, sobre os elegantes portugueses, Garrett e Soto Maior, que viveram de 1830 a 1880, com o sincero lamento da situação atual da sociedade que atravessa uma crise de estreito utilitarismo e precariedade financeira em que a prostrou
a Grande Guerra de 1914.
Aquela noite apoteótica de domingo no Teatro Guarani foi encerrada por Júlio Dantas na visita ao fidalgo solar de Vila Nova, o Clube XV. Lindas senhorinhas, na escadaria nobre, abriram alas e jogaram, sobre a
cabeça do hóspede querido, mãos cheias de pétalas de flores, enquanto os cavalheiros batiam palmas. O salão de baile dispunha, em simetria, de tufos de rosas e cravos, nas paredes e nos lustres. Ao alto do majestoso espelho, em moldura de ouro,
estava escrito o nome do romance A Severa com letras de flores.
A orquestra iniciou o baile, que terminou de madrugada. Num dos intervalos, a diretoria do Clube XV, por intermédio de João Carvalhal Filho, fez o brinde a Júlio Dantas em nome do escol santista, na sua requintada postura de elegância e graça, se
reunia há cinquenta anos em festins magníficos. Júlio Dantas externou a sua emoção pela empolgante recepção do povo e da sociedade da terra de Martins Fontes e, em agradecimento, só encontrou num gesto de galante simbolismo, beijando a mão duma das
senhoras presentes, à maneira de homenagear a mulher santista.
Martins Fontes e Ribeiro de Melo telegrafaram à senhora d. Maria Augusta Pereira d'Eça Dantas, mãe de Júlio Dantas, dizendo que tinham a honra de beijar-lhe a mão no dia em que seu glorioso filho acabava de receber do povo de Santos, como
embaixador no Brasil do gênio de Portugal, o esplendor de uma apoteose. Para completá-lo, faltou o comparecimento do genial lírico Vicente de Carvalho, um dos maiores poetas da língua portuguesa, que, dias antes, viajara
para Iguape.
No dia seguinte, Júlio Dantas visitou a Beneficência Portuguesa, saudando-o o sr. Aristides Cabrera Correia da Cunha; a Escola Portuguesa, cumprimentando-o o professor Guerreiro; o Centro Republicano Português,
dando-lhes as boas vindas o cônsul de Portugal; o Real Centro Português, brindando-o em brilhante improviso o sr. Agostinho Maria da Rocha; a Sociedade União Portuguesa, salvando-o em patriótico discurso o sr.
Bernardino Pereira Leite.
Em companhia de Martins Fontes, Júlio Dantas foi ao Bazar Americano para conhecer o seu patriótico honrado, Bernardino de Barros, o primeiro e heroico editor do poeta de Verão, com o qual palestrou durante muito tempo, manifestando-lhe
admiração e gratidão pela cooperação valiosa no desenvolvimento intelectual dos santistas.
No Teatro Guarani, à noite, Júlio Dantas, sob a mesma efervescência festiva do povo, igual ao dia anterior, leu a segunda conferência sobre o Heroísmo em Portugal, baseado na magnífica epopeia em pedra do Mosteiro da Batalha.
Abrindo o sarau, o poeta Galeão Coutinho leu admirável panegírico da raça que colonizou, civilizou e preparou a independência do Brasil, apresentando, como síntese empolgante do homem brasileiro do
futuro, a Martins Fontes, "exemplo espantoso de trabalho, de atividade fecunda, e cuja palestra é um ofuscante jogo de pedrarias; resumo fulgurante do nosso fastígio continental, ele é a própria terra brasileira, moça, banhada no ouro liquefeito do
sol magnífico; o seu verbo é todo o tumultuar dos nossos rios, ora despenhando-se, férvidos, para prosseguir na vertigem das corredeiras, ora defluindo serenamente no verde bucolismo dos vales ensombrados".
Depois, Ibrahim Nobre orou com eloquência sobre o luso-brasileirismo, e a poetisa Clotilde de Matos, na qualidade de embaixatriz da mulher brasileira, pintou em palavras as grandezas naturais do Brasil, imaginando-se na iminência azul duma
montanha, donde se espiavam ao longe as águas inquietas do Amazonas que se resolvem sob a quentura dos trópicos, e aqui perto as brancas e merencórias praias de São Vicente, onde aportaram as naus de Portugal.
No último e terceiro dia de permanência em Santos, Júlio Dantas foi homenageado pela Municipalidade com lauto banquete nos amplos salões do Parque Balneário, onde recebeu afetuosos brindes, entre os quais o de Martins Fontes endereçado à veneranda
progenitora do eminente poeta luso. Júlio Dantas pôde avaliar com profunda emoção a hospedagem e as demonstrações de apreço que lhe dispensaram e de que não se julgou merecedor, atribuindo-as ao prestígio miraculoso de Martins Fontes, que
congregara todos os espíritos em torno da sua pessoa.
À tarde, Júlio Dantas voltou a São Paulo, de automóvel, pela Estrada Vergueiro. Na Curva da Morte, ao alto da encosta da Serra do Mar, ele contemplou os encantos da Baixada Santista e relembrou gentilmente a visão
literária da poetisa Clotilde de Matos – o verde mar, as praias espumosas de Santos, São Vicente e Guarujá, os riachos ora esguios ora largos que serpeiam, na várzea infinda, à volta de morros e ilhotas… depois o Azul. |