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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-II-08)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 162 a 167):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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II – CAVALEIRO DA ARTE

8

Enfim, Luís Edmundo, o gigante de carne e osso e de inteligência, era o demônio da pilhéria, impagável e inesgotável, com um poder inventivo que ultrapassa a fábula, que sobrepuja os maiores improvisadores de casos mirabolantes, como o julgou Martins Fontes que admirava este grande Poeta, cuja prosa do livro "O Rio de Janeiro, no tempo dos vice-reis" lhe deu imenso consolo no dia amargo em que o recebeu, comparando-o a um rosedal cheio de sons, aroma, cor, luzes, onde a erudição e bom humor brilham em cada capítulo primoroso, escrito com arte impecável, para repintar o Rio antigo.

Certa vez, há anos, Martins Fontes me comunicava, numa alegria estouvada, que o glorioso Lulu estava na terra, quer dizer, em Santos, e eu devia visitá-lo no Hospital do Isolamento, onde passaria o dia todo, prevenindo-me, porém, de que iria enfrentar um feroz jacobino, único defeito daquele talento exuberante, o que produzia em Martins Fontes amargura e tristeza, como tal me confidenciou, porque todos da Roda eram incondicionais adoradores de Portugal.

No Hospital do Isolamento, encontrei Luís Edmundo, acompanhado de uma Filha, e Martins Fontes, na varanda, refestelados em cadeiras de vime, numa saborosa e indolente digestão do almoço. Conversavam, animados, e assim continuaram com a minha chegada. Quando Luís Edmundo lançava ao ar uma frase cheia de chiste e saltitante, Martins Fontes aparava-a sob o temor de que viesse com laivos de fel jacobino, no receio justo de que me magoasse, ao mesmo tempo que receava dar-lhe aviso do meu lusofilismo.

Encaminhamo-nos todos ao gabinete de trabalho, ou antes ao escritório do diretor do hospital, ao fundo do pavilhão central onde, ao lado, ficavam os aposentos particulares de Martins Fontes, que constavam do gabinete sanitário e do quarto de dormir, com ampla e confortável cama turca.

No escritório, cheio de flores em vasos nos campos e sobre a mesa de verniz preto, atulhada de livros e papéis, entre duas estantes abertas com livros encadernados e em brochuras, a esmo – ficamos longamente a ouvir a Luís Edmundo evocando episódios do Rio e de Paris, que ambos conheciam bem. Martins Fontes se sentara na poltrona giratória, à mesa, silencioso e embevecido na contemplação do amigo.

Dali, fomos passear pelo parque e repousar sob frondosa árvore, em frente da lavanderia e perto do necrotério. A jovem e inteligente filha de Luís Edmundo gastou algumas palavras de louvor à linda árvore que nos servia de guarda-sol, carinhosa e fraternalmente. O parque, respondeu em agradecimento Martins Fontes, era um pedaço do paraíso terreal e ali sentia toda a inspiração para as poesias bucólicas, imaginando-se um pastor selvagem que trauteia na rude avena canções de amor.

Nesse dia, a pedido de Martins Fontes, acompanhei Luís Edmundo e a filha até o hotel da cidade, num automóvel de praça. Durante o trajeto, Luís Edmundo só falou do gênio artístico de Martins Fontes, cuja imortalidade estava assegurada pela obra poética maravilhosa e prodigiosa, e todos adoravam aquele Santo…

Mais tarde, Luís Edmundo surgiu em Santos, a bordo do super-transatlântico francês L'Atlantique, que singrava as águas da América do Sul pela primeira vez, sob o comando de Raúl Charmasson. Luís Edmundo participava do séquito de jornalistas brasileiros que, a convite da Companhia, viajava até a Argentina, a fim de que todos apreciassem as delícias da vida a abordo de L'Atlantique. Do Rio de Janeiro, telegrafaram que os jornalistas brasileiros e argentinos, quando chegassem ao porto de Santos, homenageariam o poeta Martins Fontes, por iniciativa de Luís Edmundo.

Na manhã chuvosa do dia dez de outubro de 1931, o grandioso navio rasgava com a proa alta e afiada o lençol de água do canal da Ponta da Praia e veio de mansinho se encostar ao cais, ao lado do armazém 16 da Companhia Docas. Martins Fontes se encontrou com Luís Edmundo e os outros jornalistas, a bordo de L'Atlantique, onde, todos emocionados, em carinhosa recepção, à volta das mesas de majestoso bar ou salão de conversação, cuja cúpula se sustinha em dez colunas de nove metros de altura, com decorações em madeira roxa envernizada -, lhe entregaram a mensagem. Foi escrita em papel com o timbre do paquebot L'Atlantique pelo próprio punho do poeta Luís Edmundo, e dizia:

"
Com o apoio de simpatia dos jornalistas argentinos, os jornalistas brasileiros em trânsito por Santos, passageiros do L'Atlantique e em viagem para o Prata, desembarcam neste porto, exclusivamente, para apertar a mão e saudar o grande poeta Martins Fontes, cuja obra de idealismo, visando uma finalidade artística, tanto tem encantado e comovido a cultura do país.

Se, como a crítica tem adotado e o velho Brunetière já havia proclamado, a tarefa dos verdadeiros poetas é a de encantar e comover a sua gente e a sua raça, manda a justiça que se reconheça que o cantor magnífico de Verão, começando por deslumbrar ao próprio Bilac, se desempenhou perfeitamente dessa elevada missão. Por todos os motivos e títulos, Martins Fontes conquistou o lugar em que se acha na galeria dos grandes poetas nacionais. Vindo honrá-lo e festejá-lo, os jornalistas presentes cumprem um dever de compatriotas e admiradores agradecidos. Bordo de L'Atlantique, em Santos, no dia 10 de outubro de 1931. (a) M. Paulo Filho, Luís Edmundo, Porto da Silveira, Ernesto Dutra, Afonso de Carvalho, Severino Barbosa Correia, Garcia de Rezende dos Diarios Associados, Júlio Barbosa; J. Lamas de La Razon de Buenos Aires, Emilio Pedemonte de La Nacion e Notícias Gráficas de Buenos Aires, N. Barreiro de Jornada de Buenos Aires.
"

L'Atlantique largou do porto às quatorze horas e rumou em direção ao Prata, donde voltou no dia dezenove de outubro a Santos, encontrando forte cerração à entrada da barra. A Companhia de Navegação Sud Atlantique, concessionária do luxuoso paquete francês, convidou as autoridades federais, estaduais e municipais, jornalistas e pessoas de representação social e comercial da cidade, a visitarem o navio, oferecendo-lhes, antes, um almoço de quatrocentos lugares, no magnífico salão de jantar, vasto com o seu "lambris" de mogno envernizado, com altos panneaux decorativos, com rico teto de enfeites dourados, arejado e luminoso através duma dezena de janelas, entre colunas esguias e altíssimas, por onde se avistava, dos dois lados, o mar, até o horizonte.

Nesse ambiente de suntuosidade e beleza, todos almoçaram sob a delícia de finas iguarias e vinhos, ao som de músicas brasileiras e francesas. Ao champagne, o sr. Gaston Paitel, diretor da companhia, saudou na pessoa do interventor federal, doutor Laudo Ferreira de Camargo, o Estado de São Paulo, enaltecendo-lhe a riqueza agrícola e o aparelhamento das docas que tornou o porto de Santos o melhor do mundo.

Com certo pessimismo pela situação econômica internacional, o sr. Paitel apresentava o paquete expresso de grande luxo L'Atlantique, com quarenta mil toneladas, o mais belo navio do mundo, dotado de todos os progressos da técnica naval, dos aperfeiçoamentos modernos da indústria e das últimas conquistas da Arte.

Martins Fontes foi incumbido de responder, e agradeceu de improviso, em língua francesa, a saudação eloquente do sr. Paitel, e, em seguida, surpreendendo os convivas, leu um soneto, escrito em francês, glorificando a doce França, a França olímpica e eterna, que, naquele palácio flutuante, suntuoso e em festa, viajava a sua grandeza e abria às claridades dos trópicos as asas de ouro.

A canção do poeta, como beijo de amor, abençoava a suave França, no momento em que atravessava o Atlântico. E a bandeira francesa, que fazia cintilar esta conquista, oferecia ao mundo deslumbrado a beleza atraente. Sentia-se, pois, que a França fraganciava o navio: sorridente, embriagador e fluídico, respirava-se o adorável perfume da sua graça etérea.

A França, paraíso, jardim dos loureiros em flor, ele a via resplender em apoteoses, maravilhando sempre pelo seu sonho semeado de estrelas. E L'Atlantique realizava e ultrapassava o sonho de Júlio Verne em Uma cidade flutuante com o Great Eastern, de proporções gigantescas, algo comparáveis às deste paquete de luxo que possui doze pavimentos desde os porões à ponte de comando, com duzentos e vinte e sete metros de comprimento por trinta metros de largura.

Encontrei Martins Fontes e Luís Edmundo no "hall" de L'Atlantique, num longo e afetuoso abraço de despedida, talvez o último, entre aquelas paredes de mármore branco. Procedemos, eu e Martins Fontes, a uma visita a sós e rápida ao navio. Ele, ao meu lado, quase sem pronunciar palavra, salvo as que proferiu ao almoço, caminhava deslumbrado com aquele supremo requinte do agonizante capitalismo, pela rua central, entre estabelecimentos e mostruários da indústria francesa, como se passeássemos por qualquer bulevar de Paris; subimos escadarias largas e longa que nos levaram a outros salões onde muitos pares dançavam.

Pelos ascensores fomos ter ao convés dos esportes; depois descemos e começamos um giro pelo convés de passeio, envidraçado, que nos deu a impressão duma avenida à beira-mar. Cá fora no cais, Martins Fontes correspondeu a uns acenos de lenços. Depois, seguimos cada qual o nosso destino…

Além dos companheiros da Roda Literária, Martins Fontes dedicou culto de amizade sincera a muitos poetas e escritores estrangeiros e nacionais. Era esta a sua Humanidade, da qual recebeu certa influência: - Catulle Mendès, o artista impecável, mestre na arte de amar, poeta perfeito do teatro francês, paladino da beleza, que para Martins Fontes foi uma flor primorosa, simétrica, toda cor de rosa, com semitons de opala, esmaiando em lilás; Jean Richepin, poeta assombroso, hipermágico, prestidigitador, que transformou o próprio coração em flor, pelo seu poder de feiticeiro; Shakespeare, o iluminista da vida, o criador das mulheres divinas, Julieta, Ofélia, Miranda, Cordélia, das quais Martins Fontes tinha predileção por Miranda que simbolizava a essência aromal da brisa, a alma da Poesia, a ilusão do Poeta; era o grande Will cujo teatro, todo ele, durante onze meses, leu, espantando-se do fantasista imortal, esvurmador de ambições, que é comparável ao coração do oceano em convulsões de dor, rouco e fero, na tempestade do martírio doído, assombrando-o ter sido Shakespeare sobre-humano e ao mesmo tempo o mais humano em tudo; Vargas Vila, irmão trismegisto, kopotkinesco, beethovenesco, sobrevidente, arcangelesco, de Martins Fontes, com alma de Satanás, de Rei Lear, de D. Quixote, Hamleto e Prometeu, glorioso escritor que cultuou a Arte realizando a beleza, em obediência rígida, perfeita, exemplar, imaculada conduta e disciplina, mestre imortal e genial que sempre combateu pela verdade e pela liberdade dos seus ideais ateístas e aristárquicos; Amundsen o herói e semideus que praticou o maior sacrifício humano na descoberta do planeta, para depois sepultar-se nos gelos do Polo Norte, pondo-se em dúvida se estará morto ou em letargo; Goya, o pintor de quadros com figuras teratológicas; Rabelais, poeta de epopeias de gigantes em lutas formidandas; Leconte de Lisle, poeta que Martins Fontes comparava ao Obelisco da Praça da Concórdia de que Paris se orgulha, incompreendido nos seus hieróglifos multisseculares; George Sand que amargou um grane castigo: - sendo arrebatada, cheia de aflições, nunca pôde amar e nunca pôde compreender o amor de Musset e Chopin, pois o seu gênio ardia entre gelos; Martins Fontes adorava Musset, poeta das paixões femininas, que, com egoísmo, lamentou ter tido amor, o mai grato dos premios do destino, e Vigny foi o poeta do brio e da piedade, asatralizando-se; Villiers-de-L'Isle-Adam era um sonâmbulo que costumava ir por uma rua deserta e imensa, quando ao céu nenhuma estrela cintilava, alheio à vida, num sonho perene, porque amava a princesa que sempre estava à janela da Ilusão; Beethoven que, sendo surdo, compunha música com uma vareta, segurando uma ponta na boca entre os dentes, a qual tocava com a outra ponta nas cortas do clavicórnio quando vibravam, transmitindo-lhe os sons pelos ossos da caixa craniana e compondo assim a Nona Sinfonia; Helen Kéler, a célebre cega-surda-muda, que é o maior assombro da Humanidade; Rodenbach, o poeta doce e triste, príncipe e monge louro, vestido de azul, a quem a Arte deve o dom inigualável de traduzir a poesia sutil em penumbras, sombras, brumas, neblinas, esfumados; Guy de Maupassant, cuja alma de artista rescendia a forte cheiro da terra virgem ou da seiva da floresta, unindo-se em suas obras a força e a graça; Villaespesa, o grande lírico espanhol a quem Martins Fontes tinha grande veneração porque outro poeta não conseguiu dar à palavra humana tanto colorido e sonoridade na pintura da terra e dos costumes da Espanha rubra e cantadeira, de que sempre se tem saudades quando se avista em terra estrangeira a bandeira tricolor, lembrando a terra nata, assim como Villaespesa ao lembrar-se de Martins Fontes diria que ele era pobre mas que o amou fraternalmente.

Nas montanhas, erguem-se as sombras subjetivas de Ésquilo e de Homero. De cada píncaro, Martins Fontes descortinava perspectivas pasmosas e gigantescas – solitários Dantes, sábios Salomões; cobertas de neves ou vulcânicas simbolizam Cervantes, Goethe, Shakespeare, Hugo, Milton, Camões.

Com estes vultos, noutros tempos, segundo imaginava Pompeyo Gener, criar-se-ia o Tribunal Ordenador que teria a eficácia duma Academia, onde cada nação orientaria o conclave de dez ou doze artistas e filósofos escolhidos, como expressão da Panarquia.

Veríamos o sentimento iluminando a ideia pelo culto a Venus e para glória de Atenas. Augusto Comte, Garibaldi, Flaubert, Lesseps, Roux, Zola Stead, Kropotkine, Marconi, D'Annunzio, figurariam nesse conclave, revestidos das honrosas insígnias de cavaleiros da Glória que mereceram o batismo da Cavalaria Eterna.

Camões é herói e vate na revelação porque interpreta a causa das causas. Cíclico e cósmico, vibra e é Poeta, sobre o tempo e além do Espaço. Eco da criação, concentra esperanças ou desalentos na sua universalidade. Ruge no mar ou no fragor dos ventos. É fogo e terra, transfigurado plos elementos.

Antero de Quental, grande Irmão de Martins Fontes, que lhe consagrava cerebral culto, entre os magos da morte, traduziu em linguagem nebulosa do mais profundo misticismo, o sentido da inanidade da existência. Quando a gente se aproxima do fim da vida, considera quanto é nefasta a nossa continência e nefando o mal e ter vivido. Matar para viver; reproduzir-se, perpetuando a dor; ser sepultura – a miséria da vida. Era disso que Martins Fontes sentia horror, culpando-se e se desprezando, e queria se incinerar, sem receio da morte, mantendo ileso o seu anseio de inércia na harmonia.

Martins Fontes julgava Antero um grande poeta anarquista e filósofo budista que, nos "Sonetos", expressou a piedade e a ironia de quem ficou triste quando viu a beleza, em versos sem brilho e frios, de forma ácida, sem relevo, sem colorido, feitos com a cinza das ideias, para quem a Arte é uma lágrima gélida a escorrer.

Quando Martins Fontes lia os sonetos de Antero de Quantal, quedava-se apavorado porque sentia que o mal de haver nascido era sem dúvida o grande mal. Doía-lhe a sua dor de cérebro. Não acreditava que houvesse quem tivesse amargado semelhante desventura, chorando e abafando o seu gemido. Dizia-lhe os versos mas cansava-se porque eles são cinza, "ecos da insônia e da esperança".