SE EU FOSSE NORTE-AMERICANO...
"Você pode esperar que o cão
maltratado venha lhe lamber a mão,
mas não pode exigir que abane
o rabo". - Autor desconhecido.
Solange Rech (*)
Fique claro, de pronto, que não
endosso atos terroristas, qualquer que seja sua natureza e motivação.
Considero um crime hediondo ceifar vidas inocentes, e me refiro a qualquer
tipo de vida, não apenas humana.
Dito isso, gostaria de fazer uma
reflexão sobre os recentes acontecimentos que feriram na carne o
povo norte-americano, tanto pela imprevisibilidade e arrogância de
seus autores quanto pela extensão dos malefícios causados.
Se eu fosse um cidadão norte-americano,
pensaria mais profundamente sobre tudo isso. Pensaria, por exemplo, que
deve haver uma causa de extrema e absoluta gravidade para levar alguém
a abdicar da própria vida fazendo-se instrumento de um ato terrorista.
Só uma pessoa desprovida de um mínimo de auto-estima aceitaria
tal incumbência. Os camicases modernos passam-nos a mensagem de que
há, sim, algo mais valioso do que a vida, que atende pelo nome de...
dignidade. Assim como o corpo definha sem alimento, a psique humana não
tem estrutura para sobreviver em estado de absoluta e permanente humilhação.
Que causas seriam capazes de arrastar
o mundo a esse estágio dramático, portal limítrofe
da existência, senão a injustiça intransponível,
que se perpetua pelo respaldo de forças colossais, muito acima de
nossa capacidade de opor resistência? Alicerçado no poderio
bélico e econômico, o dominador se faz arrogante e, com o
tempo, já não disfarça a insensatez.
Se eu fosse norte-americano, juro
que iria me aprofundar nas causas que levam pessoas, grupos, povos a essa
situação, que contraria até mesmo a lei natural de
autopreservação da espécie.
Hoje, mal apagados os incêndios
criminosos, choram as famílias pela perda de pessoas inocentes,
cujos corpos sequer foram ainda resgatados e contados, tamanha a destruição
e tantos os escombros. Chora um país, que se considerava inexpugnável,
sem saber como evitar o pânico.
Eu próprio choro, no silêncio
dos meus solilóquios, em solidariedade não apenas a um povo
agredido, mas à vida humana banalizada. De certa forma, choramos
todos nós. Mas confesso que eu também choro, diariamente,
pelas mortes, vindas dos vários continentes, ocasionadas pela opressão
e pela desconsideração dos poderosos. As lágrimas
correm, salgadas, pelas vidas de palestinos ceifadas em holocausto, tão
inocentes quanto são os norte-americanos sacrificados por fanáticos.
Meu pranto surge, e em vão tento contê-lo, quando vejo o mundo
do dinheiro e da tecnologia virar as costas para a África, dizimada
por guerras insufladas pelos mercadores de armas, pela fome e pelo flagelo
da AIDS, havendo já países que estão a sepultar seus
mortos aidéticos em valas comuns, pois o dia é curto para
cerimoniais isolados.
Entristece-me sentir que essas vidas
não são lamentadas pelo chamado mundo cristão e ocidental,
como se o ser humano fosse graduado: gente de primeira merece ser pranteada,
os demais não contam... Foi preciso que houvesse uma catástrofe
no Primeiro Mundo para a estupefação geral tomar conta dos
noticiosos. Nos demais casos, as pessoas ouvem os comunicados sem qualquer
sobressalto e reagem como se estivessem ouvindo o resultado de uma loteria
às avessas: "Não fui sorteado, está tudo bem!"
Pois, tentando ajudar a reflexão
dos meus irmãos do norte, eu diria que esse absenteísmo,
esse descompromisso, essa irresponsabilidade cúmplice é a
principal causa do que hoje estamos a lamentar, sem entender. Está
visto que a propalada globalização serve aos interesses mercadológicos
americanos, já que economicamente são bem mais fortes e podem
impor sua vontade. Mas, contraditoriamente, se o modelo nos põe
a todos no mesmo barco, não nos aquinhoa igualmente no nível
de conforto. A maior parte dos tripulantes é segregada nos porões
e precisa remar para que o cidadão de primeira classe chegue seguro
ao seu destino, fazendo festa. O que forma os camicases são as injustiças
prolongadas, travestidas de atos legais. São gerações
humilhadas, sonhos abortados, esperanças que não podem vingar.
Desculpando-me pelo momento doloroso e portanto impróprio, é
forçoso reconhecer que nenhum país é mais responsável
pelos desassossegos mundiais do que os Estados Unidos da América.
Em grande parte, é a sua política sócio-econômica
que cria os assassinos e os terroristas do mundo
- quando se auto-intitulam a polícia
do mundo, sem procuração legítima para tal;
- quando transformam em dólar
anseios populares, como se os povos pudessem abrir mão de suas aspirações
legítimas e tivessem que aderir obrigatoriamente ao "american way
of life";
- quando se dizem arautos da liberdade
mas respaldam ditadores, como Strossner, Habybe, Pinochet, Fujimori e tantos
outros, desde que e enquanto sirvam a seus objetivos.Certo dia Robert Kennedy
pensou
sobre isso: "Demos medalhas a ditadores; incensamos regimes retrógrados
e tornamo-nos firmemente identificados com instituições e
com homens que mantinham seus países na pobreza e no medo";
- quando condenam a população
cubana a privações de recursos básicos e essenciais
à vida por conta de um bloqueio econômico que dura várias
décadas, sendo que a razão alegada para seu estabelecimento
já cessou há muitos anos. E a prepotência chega a tal
ponto que terceiros países que queiram comercializar com Cuba sofrem
retaliação comercial;
- quando bombardeiam sistematicamente
o Iraque, alegando a defesa dos ideais de liberdade, mas viram as costas
para os massacres da Chechênia, Kosovo, Timor Leste...
- quando nos acusam de pirataria
na guerra de patentes, mas silenciam quando seus prepostos roubam nossos
vegetais com poderes farmacológicos, para patenteá-los alhures,
como qualquer terrorista o faria;
- quando, ainda no ramo das patentes,
nos denunciam à OMC porque copiamos medicamentos para combater a
AIDS, sem o quê muitos morreriam, numa inequívoca demonstração
de que a vida vem depois (muito depois!) do dinheiro;
- quando se negam a cumprir o Tratado
de Kyoto (redução dos níveis de contaminaçãoatmosférica),
sendo eles os responsáveis diretos por um quarto de toda imundície
que empesta o ar e compromete a vida do planeta;
- quando usam de seu poder de veto
na ONU para baldar os esforços de povos subdesenvolvidos que busquem
alcançar conquistas sociais.
Muitas outras razões, até
mais relevantes em termos de barbárie de estado, teria eu para elencar
aqui, comprobatórias da crença americana de que seguem o
dito de Calígula: "Odeiem-me mas temam-me". Cito estas, ao acaso,
como uma síntese do terreno propício onde germinar a semente
do terrorismo. Ainda ontem, num morro do Rio, numa guerra de traficantes,
crianças da favela morreram, inocentes, trucidadas por sofisticadas
armas americanas, que entraram clandestinamente no país, contrabandeadas
pelo conluio de mercadores internacionais e delinqüentes brasileiros.
É possível que se diga
ser nossa a culpa por não sabermos evitar o ingresso desses armamentos,
o que não deixa de ser verdade. Mas, em situação análoga,
o governo norte-americano invade militarmente a Colômbia, para evitar
o envio de cocaína ao seu território. A lógica mostra
que, se não houvesse o mercado consumidor de drogas americano, não
haveria por que se preocupar com os exportadores. Sei que vão dizer
que há um tratado bilateral dos dois governos. Mas é exatamente
desse mundo de aparências, de faz-de-conta, que nasce a insatisfação
mundial, gene formador dos marginalizados.
Não basta exterminar os rotulados,
pois, mantida a política atual, outros surgirão, pipocando
nos vários quadrantes da terra, num interminável suceder
de violências. É vital extirpar as causas que lhe dão
origem. "Cessada a causa, cessam os efeitos". Ou mantemos limpo o estábulo
ou não adianta exterminar as moscas. Elas voltam, mais adaptadas
ao habitat e mais resistentes a cada geração.
Atônito e preocupado, o mundo
vê e ouve um presidente despreparado a fazer ameaças de que
vai retaliar e que quer vingança. É pena. Vingança
e justiça nunca andam juntas. Punir os responsáveis é
o anseio da quase totalidade dos povos. Mas, sair por aí a detonar
bombas em cima de inocentes, à guisa de vingança, será
um gesto ainda mais covarde do que o perpetrado pelos bandidos que se busca
punir. Nessa hipótese, o mundo dirá, como os antigos romanos:
"Ave, Bush, os que vão morrer te saúdam!" Depois, é
só se preparar para uma nova série de explosões e
mortandade, brotada do ódio e da intolerância.
Tudo isso acontece porque, na prática,
conhecimento e sabedoria não chegam a ser palavras sinônimas.
Solange Rech é escritor
catarinense, residente em Florianópolis, autor, entre outros, de
TROVÕES DOLENTES, PARA MATAR A NOITE, DE AMOR TAMBÉM SE
VIVE... |