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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - GREVE! - LIVROS
Uma saga em um porto do Atlântico (7)

Em 1994, durante a gestão do prefeito David Capistrano, do Partido dosClique nesta imagem para ir ao índice da obra Trabalhadores, diversas publicações foram produzidas pela Prefeitura Municipal, resgatando a história de Santos e especialmente a sua atividade sindical. Uma dessas obras é o livro Caixeiro, Conferente, Tally Clerk - Uma saga em um porto do Atlântico, dos jornalistas Paulo Matos e Carlos Mauri Alexandrino, aqui reproduzido integralmente a partir de sua edição única, de março de 1996.

Com 144 páginas e ilustrações (registros CDD - 331.879816 - M433c), o livro inclui ainda textos de Marcos Augusto Ferreira e fotos de Carlos Nogueira, dos arquivos do Sindicato dos Conferentes de Santos e do Departamento de Comunicação da Prefeitura. Esta primeira edição digital, por Novo Milênio, foi autorizada em 19/2/2010 por Paulo Matos. Veja:

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Caixeiro - Conferente - Tally Clerk

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 Uma saga em um porto do Atlântico


Nosso presidente Remo Petrarchi (na frente, à esquerda) recebe Jânio e Juscelino em Santos, em 1952. Getúlio era o presidente da República e nada sugeria os dias dramáticos que se aproximavam. Estavam ali dois dos mais importantes personagens do agitado período democrático do pós-guerra

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A vida muda rápido, ao sabor das alterações do quadro político que sacodem o País

A volta de Getúlio ao poder, seu suicídio, Juscelino e sua Brasília no planalto, Jânio e sua renúncia, Jango e seu destino dramático

Democracia. Os anos de bronze começaram sob o signo dessa palavra. Mas não demoraria muito para se perceber que, por si, ela não tinha a característica mágica que muitos supunham depois de tão longo período da ditadura Vargas.

Pelo contrário, vinha carregada de tensões que explodiam a cada momento. Santos tornou-se, por seu porto e sua atividade sindical, um dos centros nacionais das tensões e, se o período trouxe para o Brasil perspectivas de desenvolvimento ainda não alcançadas, aqui floresciam novas possibilidades sociais.


Uma solenidade no Sindicato, em 1946, o País vivendo ainda a redemocratização e o pacto de unidade do pós-guerra que colocara fim ao Estado Novo. O orador é Joaquim Augusto de Oliveira. À sua esquerda estão o advogado Derosse José de Oliveira, o representante do bispo, Vitorino Pinhão, representante do Ministério do Trabalho, e Remo Petrarchi

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O impacto do suicídio de Getúlio em 54, depois de ter voltado ao poder consagrado pelas urnas, geraria na cidade um amplíssimo sentimento nacionalista e o trabalhismo, com o novo conteúdo destilado pela tragédia, explodiria em uma poderosa ação político-sindical. Em 1956, dois anos depois, 53 sindicatos fundariam em Santos a primeira intersindical regional, com o nome de Fórum Sindical de Debates, que produziria alguns dos mais importantes embates sociais daquele período da política brasileira.

No campo político, nem mesmo o governo de Dutra, com sua docilidade às diretrizes emanadas do centro ocidental da "guerra fria", conseguiria impedir que Santos persistisse, teimosamente, em manter sua inclinação para a esquerda. Era uma tendência consolidada ao longo de muitos e muitos anos de desenvolvimento no seio social dos conceitos originalmente trazidos pelos anarquistas europeus, cujos descendentes formaram na cidade um amplo campo fértil para as idéias baseadas nos princípios da justiça social.


Solenidade em 1952, com a mesa composta da esquerda para a direita, por Antonio Feliciano, capitão Esculápio César de Paiva, o presidente Remo Petrarchi, o vereador João Gonçalves Neto, presidente do Sindicato dos Rodoviários e Milton Salles, o "furacão"

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Daqueles primeiros anos de abertura democrática do pós-guerra, passando pelo  segundo governo de Getúlio, foi um passeio rápido até o surgimento da central sindical regional e sua força prevalente no movimento sindical brasileiro, indicando caminhos, sendo vanguarda nas lutas e também, é claro, nos exageros. A grosso modo, para se ter uma boa idéia de comparação, pode-se dizer que a Santos dos anos de bronze equivalia para o País ao que viria a ser o ABC no início da década de 80.

Nos anos seguintes quase nada escapa à participação ou ação direta do Fórum e do movimento sindical santista. O exemplo mais taxativo talvez tenha sido o da "crise da carne", em 1959. Falta carne no mercado nacional, os preços estão literalmente loucos. Os dirigentes sindicais reivindicam a criação de uma Comissão Municipal de Abastecimento e Preços, com a participação dos trabalhadores, e declaram que a luta que iniciam não busca soluções apenas para a população santista, mas visa apoiar o surgimento de soluções para que o País volte a ter a carne nos açougues, a preços acessíveis.

Ato contínuo, o Fórum decide bloquear os embarques de carne pelo porto, enquanto não houver a regularização reivindicada. O poderoso Diário da Noite, um dos mais influentes jornais do período, relata em 17 de novembro:

"Quarenta mil trabalhadores santistas decidiram tomar posição na luta pela carne, impedindo o embarque de qualquer quantidade da mesma para o exterior, enquanto não for normalizado o abastecimento interno do produto. São quarenta mil homens pertencentes a todos os sindicatos santistas, mobilizados como uma máquina sob a direção do Fórum Sindical de Debates, que funciona como uma espécie de Pacto de Unidade e Ação, magnificamente entrosado, compreendendo trabalhadores de todas as categorias, inclusive portuários e estivadores, dos quais depende o embarque do produto. Trata-se de um movimento organizado que visa estrangular por mar todas as vias de escape da carne, devendo dentro de alguns dias adquirir o caráter de movimento nacional... Organizados, estivadores, portuários e demais categorias, seguem orientações de seus poderosos sindicatos, dando início a um movimento destinado a ter repercussão profunda no caso da carne, porque os trabalhadores do maior porto brasileiro começam a compreender que o caso da carne é muito estranho e que parece haver alguém interessado em que tudo fique como está".

O governo de Juscelino negocia diretamente com o Fórum Sindical de Debates uma solução para o impasse, o que por si só basta para demonstrar a importância adquirida pelo organismo dentro não mais apenas do campo sindical, mas na política brasileira. Santos atrai os militantes de muitos partidos de esquerda, intelectuais, pesquisadores, recupera, de certo modo, a importância do final do século passado (N.E.: século XIX), das lutas republicanas e abolicionistas, ou mesmo antes, quando da Independência. Firma-se, mais uma vez, a mística de que nenhuma cidade brasileira fora das capitais influi tanto e tão poderosamente nos rumos do País.


Durante boa parte da década de 50, este prédio na Rua General Câmara, 214, abrigou a sede de nosso Sindicato. A cidade adquiria contornos mais largos, o Centro deixava para as praias, num processo rápido, o caráter de área residencial. Tornava-se uma área de negócios

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Isso vai repercutir também nas artes, na produção cultural e nas preocupações dos setores que, desde 54, ensaiam o golpe de estado. Santos torna-se o principal destaque dos relatórios de segurança das Forças Armadas, dos serviços de informações nacionais e estrangeiros, em suas avaliações sobre o Brasil.

E se o fenômeno janista de 1960 varre também a cidade de Santos, o trabalhismo com seu novo corte nacionalista também está presente. A Cidade, como na maior do País, acaba apostando numa estranha receita de crise: espalham-se os "comitês Jan-Jan", Jânio Quadros para a presidência, Jango para vice, num tempo em que as eleições para um cargo e outro eram separadas - elege-se a contradição daquele ano.

Em agosto de 61 o porto acaba ocupado por forças militares devido à greve deflagrada contra as ameaças que pairavam sobre a Constituição e o regime democrático - a paralisação só terminaria, alerta o Fórum Sindical, com a posse de Jango Goulart, o vice-presidente. O renunciante Jânio, que lança o País em sua maior crise, deixa o Brasil através de Santos, pela escada de acesso do navio Uruguay Star.


A diretoria que dirigiria o Sindicato no período 1957/59, sob o governo desenvolvimentista de Juscelino. Da esquerda para a direita, em pé, estão Romeu Vieira Dias, Nelson Baroni e Antonio Dias Portela. Sentados, Elysio Pestana, Osmar Diegues, Serafim Mendes e Nestor Bittencourt

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Virão a seguir tempos brilhantes e perigosos, tudo sempre por um fio. O próprio sindicalismo santista, agora extremamente dividido, oscila sem a unidade que produzira sua enorme força na década anterior.

Fracassa uma greve pela instalação de "um gabinete democrático", no curto período parlamentarista, justamente devido à divisão que se instalaram, mas já existe um mínimo de unidade quando do plebiscito que devolve o país ao presidencialismo e no período que se seguiu a ele, muitas vitórias foram alcançadas e muitos exageros cometidos.

Talvez o maior deles tenha sido o de 1963, quando o Fórum Sindical deflagra mais uma greve geral na cidade, em defesa dos enfermeiros de alguns hospitais, garantindo fortes argumentos aos setores que já articulam a deposição de Jango. Dirigentes sindicais presos, o próprio Fórum em crise, cidade ocupada por forças militares estaduais, prefeito sob ameaça do então governador Adhemar de Barros - a greve geral torna-se uma queda de braço nacional entre Jango e as forças que se opunham a ele. Uma situação totalmente indesejada. Nosso presidente, Orlando dos Santos, assumindo o comando do movimento, é quem acaba mediando o impasse depois de complicadas negociações e da vinda do próprio ministro do Trabalho a Santos.


A diretoria eleita em 1959 e que ficaria no comando por pouco tempo. Da esquerda para a direita, em pé, estão Afonso Viso Romão e Antonio Portela Dias; sentados, Orlando Leopoldino de Souza, Otávio Pereira de Azevedo, Nestor Bittencourt, José Vieira e Umberto Stori Rigos

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Uma idéia bem clara sobre o que ocorreu naqueles dias tempestuosos está no comunicado final da greve, publicado como matéria paga nos jornais pelo Fórum Sindical de Debates e pela União dos Sindicatos da Orla Marítima:

"O Fórum Sindical de Debates e a União dos Sindicatos da Orla Marítima de Santos saúdam os trabalhadores e o povo da Baixada Santista pela extraordinária manifestação de combatividade e firmeza que tornou vitoriosa, já nas primeiras horas de segunda-feira, a greve geral decretada por estas entidades em solidariedade aos companheiros empregados em hospitais e casas de saúde. (...)

"O governo do sr. Adhemar desencadeou, a partir da noite de domingo último, o terror fascista sobre Santos: espancaram-se trabalhadores e populares, inclusive dentro de estabelecimentos comerciais abertos; cercaram-se sindicatos e fecharam-nos, posteriormente; efetuaram inúmeras prisões; atropelaram-se pessoas nas calçadas; tiroteios foram realizados, como se fossem shows de circo, nas portas dos sindicatos; bombas de gás lacrimogêneo foram lançadas sobre mulheres e crianças; este tal delegado Barbanti determinou a evacuação dos sindicatos, sob a ameaça de abrir fogo de metralhadoras sobre seus ocupantes; para cumprir tais ordens democráticas, mobilizou-se a polícia de todo o Estado, concentrando-se aqui cerca de 40 delegados; o sr. Adhemar põe em ação a famigerada Polícia Marítima - julgando que poderia reviver os anos de 1948-49 e cumprindo seu papel de lacaio do imperialismo e cúmplice do mata-mendigos Lacerdas. (...)

"Queriam na verdade criar um clima que propiciasse ao sr. Adhemar de Barros provocar uma crise nacional, com que tentariam as forças reacionárias mais uma das suas inúmeras goriladas frustradas, para derrubar o governo federal, arrebentar com o movimento sindical, estudantil, camponês e popular, e estabelecer em nossa terra a ditadura capaz de liquidar com os direitos conquistados pelo povo e impedir as reformas de base e a emancipação da nossa Pátria do jugo econômico estrangeiro. (....)

"Essa a razão da investida brutal contra o prefeito José Gomes e contra a autonomia do município de Santos. O prefeito encontrava-se na posição correta: tentava, por todas as formas, uma solução que conciliasse as partes, desempenhando de maneira justa o seu papel mediador. Isso bastou para irritar o governo e os seus assessores e aliados.

"Com a libertação dos presos e os compromissos assumidos pelo governo federal, de encontrar uma fórmula definitiva, dentro das próximas horas, para a solução do problema criado com a greve dos enfermeiros, além da reabertura dos sindicatos, cessaram as razões para a greve geral. Conhecemos os efeitos terríveis que ela provoca. Só a desencadeamos, porém, depois que os enfermeiros tinham esgotado todos os recursos, a fim de chamar atenção das autoridades. A greve de solidariedade prolongou-se para a defesa das liberdades democráticas e sindicais, quando estas foram asseguradas pela Justiça e o governo assumiu o comando dos entendimentos para serem atendidos os nossos companheiros enfermeiros. O FSD e a USOMS houveram por bem suspender e não encerrar o movimento.

"Chamamos a todos os companheiros a que continuem mobilizados, prontos para retornar à ação a qualquer momento, se assim o exigirem as circunstâncias.

"Santos, 5 de setembro de 1963. Vitelbino Ferreira de Souza, presidente do FSD; Domingos Garcia, presidente da USOMS".

O Fórum e a União, é verdade, vencem a greve, mas Santos estará marcada para os golpistas como a cidade rebelde, alvo prioritário para as ações posteriores ao 31 de março do ano seguinte. A classe média está assustada e torna-se presa fácil dos falsos argumentos da defesa da família, da propriedade, dos pequenos privilégios que são brandidos como conquistas ameaçadas por um poderoso lobby com sede central em Washington.

A Cidade depois dessa greve geral sofre o impacto da divisão que já assolava o País como uma onda irrefreável e torna-se, ela própria, parte integrante da grande conspiração em marcha que, pouco depois, mudaria a vida de cada um dos brasileiros. Rompera-se a bela Santos como um vaso de frágil porcelana. Os tempos seguintes serão de ferro.


Nos anos 60 duas sedes marcariam a trajetória dos Conferentes do Porto de Santos. A primeira, na Praça Azevedo Júnior, 12, espremida entre o outrora imponente edifício da Bolsa do Café e um dos muitos edifícios que mudaram a fisionomia do Centro.

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A segunda, na João Pessoa, onde ainda estamos hoje. Construída por Orlando dos Santos, seria mobiliada por Serafim Mendes, que a inaugurou já na condição de interventor nomeado pelos militares. Orlando estava preso

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Ripasarti, uma vida de lutas

Conferente desde 54, Aldo Ripasarti é personagem obrigatório das lutas da categoria e dos trabalhadores santistas, destacado militante das lutas populares. Expedicionário da FEB, foi presidente do Centro de Estudos e Defesa do Petróleo na luta pelo monopólio nacional.

Nessa batalha, objeto de intensa repressão policial - quando o governo atendia às pressões norte-americanas, ansiosas pelo nosso ouro negro -, foi preso e condenado a 5 anos de prisão, 3 dos quais cumpriu no Carandiru (N.E.: antiga penitenciária da capital paulista).

Organizador de inúmeras greves, passou 92 dias no Raul Soares, o navio-prisão, em 64. Esteve em diversas chapas no Sindicato e fará 75 anos em dezembro de 96.


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"Os soldados abriram fogo sobre a multidão"

Desde as cinco e meia da tarde anterior - quando o corpo descera do quarto do terceiro andar para a câmara mortuária, e as pessoas que enchiam o salão o receberam cantando o Hino Nacional - os pranteadores desfilaram sem cessar em frente ao caixão: colocavam papeizinhos com pedidos na mão do morto, arrancavam flores para levar como lembrança, rezavam. Muitos desmaiavam e eram carregados para fora. Um homem, com a mão sobre o caixão, conseguiu fazer um curto discurso antes de ser afastado: "O povo vingará Getúlio!" Apolônio Salles, o ministro da Agricultura, colocou um terço entre os dedos das mãos ceráceas de Vargas.

Às oito e meia Lutero Vargas, João Goulart e o general Caiado de Castro fecharam o caixão.

Pouco depois, o esquife com o morto foi retirado da câmara ardente e colocado numa carreta, no portão lateral do palácio, da Rua Silveira Martins.

Perto do Calabouço, na Avenida Beira-Mar, soldados da Aeronáutica dispararam contra a multidão. Em pânico, centenas de pessoas fugiram correndo em direção aos prédios da avenida. Outros reagiram enfurecidos jogando o que podiam, sapatos e tamancos, contra os soldados que atiravam. Muitas pessoas foram feridas.

O comissário procurou ficar junto com o grosso da multidão que mantinha-se cerrada em torno do caixão, sem se dispersar, empurrando obsessivamente a carreta em meio ao ruído seco dos disparos de metralhadoras.

Afinal chegaram ao aeroporto Santos Dumont. Um avião da Cruzeiro do Sul aguardava na pista. Um homem, erguido por dois outros, explicou de punhos cerrados que a família do presidente recusara a oferta de um avião da FAB para transportar o corpo e a multidão prorrompeu em gritos de ódio, imprecações, urros e uivos de fúria e desespero.

O caixão, acompanhado por Darcy Vargas e os dois filhos do presidente, Alzira e Lutero, foi posto dentro do avião. Fez-se então um súbito e soturno silêncio no meio da multidão, quebrado inopinadamente pelo girar das hélices do avião postas em movimento.

Em meio ao aceno de lenços o avião deslizou pela pista, em direção ao mar, alçou vôo e passou por cima do cruzador Barroso, que - imóvel sobre as águas - parecia um navio de brinquedo.


Trecho do livro Agosto, de Rubem Fonseca

Um conturbado período na política

Jânio Quadros estava aboletado na casa de José Ermírio de Moraes, em Bertioga, saboreando a vitória confirmada pelas urnas, quando resolveu dar um passeio de barco. O motor de popa não pegou, uma onda virou o barco e Jânio, atazanado, renunciou ao passeio. Visto de hoje, o episódio do final de 1960 parece um presságio do que estava por acontecer.

Jânio - pode-se dizer - começou e terminou seu governo no porto de Santos. Primeiro, ao chegar de sua viagem de descanso à Europa, desembarcando de um transatlântico sob intensa festa popular que tomou o cais do armazém quinze. Depois, quando embarcou no Uruguay Star, o navio que o levou de volta à Europa, após a estrepitosa renúncia que deixou o País atônito à beira do cais e do caos, com o vice-presidente em viagem pela China, do outro lado do planeta.

Depois dos "cinqüenta anos em cinco" de Juscelino Kubitscheck, que não conseguiu transformar em bem-estar o ritmo acelerado de industrialização e modernização do Brasil e construiu uma nova capital "levando tijolo de avião", como diziam seus opositores, havia ganas nas ruas por deter a corrupção que campeou, sim, em seu governo. E lá estava Jânio, "varre, varre, vassourinha, varre toda a bandalheira", como uma esperança que, logo se viu, era vã. "A esperança pode até ser a última que morre, mas com certeza é a primeira que apanha", resumiu Millôr Fernandes com seu humor agudo.

O certo é que, quando o Uruguay Star deixou a barra do porto, na tarde de 28 de agosto de 1961, um golpe de estado vinha navegando num belo mar de almirante, a todo vapor.

É verdade que aquele golpe, evitado pelo suicídio de Getúlio, tinha tido seus ensaios no tempo de Juscelino, como por exemplo nas rebeliões de Jacareacanga e Aragarças, habilmente contornadas pelo presidente.

Com João - Jango - Goulart, porém, tudo seria diferente. Começou pela renúncia de Jânio o encontrando na China, do outro lado do planeta, num tempo em que uma viagem de volta consumiria bem mais tempo que o disponível. O retorno foi uma pequena epopéia garantida pela Rede da Legalidade, de Leonel Brizola, no Sul, discursos enfáticos pelo rádio, distribuição de armas à população, construção de barricadas nas ruas - um jogo de cena que produziu os efeitos desejados.

Uma emenda instituindo o parlamentarismo no Brasil - leia-se Jango presidente, mas sem poder - completou a articulação capaz de permitir a posse do substituto constitucional de Jânio Quadros. Duraria pouco o tumultuado período de um parlamentarismo artificial. Um plebiscito em 6 de janeiro de 63 mostrou uma opção maciça dos brasileiros pelo presidencialismo e estava Jango de volta ao poder.

Visto pela população como herdeiro do Getulismo (além de amigo de Getúlio, Jango ocupara por longo tempo a pasta do Trabalho), com trânsito ambíguo nas muitas facções da esquerda brasileira e forte apoio sindical, o presidente iniciou a execução de seu programa de "reformas de base".

Em dezembro de 63, estabelece através de decreto o monopólio estatal sobre a importação de petróleo e derivados, em janeiro de 64 regulamenta a remessa de lucros para o exterior, restringindo as facilidades das empresas estrangeiras; em março do mesmo ano, nacionaliza as refinarias de petróleo e desapropria, para fins de reforma agrária, propriedades com mais de 100 hectares, numa faixa de dez quilômetros às margens das rodovias e ferrovias federais - junto com esses últimos decretos, que assinou no dia 13 de março no Comício da Central do Brasil, Jango assinou também sua sentença.

A encrenca dos concursos em seu ponto alto

A briga sobre quem deveria ou não realizar concursos para ingresso na categoria percorreu todo o período, teimosamente. A insistência do governo - e do patronato também, por tabela - em realizar os concursos pela Delegacia do Trabalho Marítimo, e do Sindicato em fazer ele próprio o concurso, foi motivo para crise crônica que durou décadas. Independência em cheque.

Como cada turma ganha seu apelido em função de fatos marcantes da época, a primeira queda de braço do período foi com os Bombas, logo em 1945, que enfrentariam a resistência de Joaquim Augusto de Oliveira. Depois houve o caso dos Coreanos, de 1951, que quem não queria aceitar era a Delegacia, porque tratava-se de pessoas indicadas pelos sócios, filhos, irmãos, parentes de diversos níveis, funcionários do Sindicato - foi nesta encrenca que Remo Petrarchi lascou o adjetivo bêbado para cima do capitão dos Portos e foi um Deus nos acuda.

No concurso de 1955, no primeiro mandato de Nelson Mattos, foi preciso duas rodadas, uma só para os filhos e parentes dos sócios, debaixo de muita encrenca e mesmo quem não passou, por força de recurso judicial, acabou sendo aceito na categoria, em 1958, já na gestão de Serafim Mendes. Além do nepotismo despropositado de um concurso só para filhos de sócios, houve um tal índice de reprovações que os jornais caíram em cima com tal virulência que perigou muito a seriedade e a própria existência da categoria. A regra absurda de garantia de vagas para filhos e parentes produzia seus maus frutos: transformara-se em argumento dos que queriam eliminar, de uma vez por todas, os conferentes do cais.

Como nos demais casos, que também acabaram em disputas judiciais, o caso mais retumbantes ainda estava por vir: o dos Lacerdinhas, com o concurso de 1962. Foi tão violento o embate que o então presidente, Orlando dos Santos, desafiou a decisão judicial, o que acabaria por tornar-se uma das acusações que o levaram, em 64, ao navio-prisão Raul Soares. Com o golpe de estado em 64, foram incorporados, definitivamente, os Lacerdinhas à categoria. Orlando questionava o concurso inteiro: as provas haviam sido rodadas no mimeógrafo do Centro de Navegação Transatlântica, "imagine, a casa do patrão".

Mas já em 1965, com a regulamentação de concursos, foi proibida essa prática danosa. Os Astronautas de 69, os Campineiros e os Feras do Saldanha de 70, e Os Sobrinhos do Capitão, de 73, não tiveram a reserva de mercado que, ainda hoje, há quem defenda sem perceber que é por aí que se vai ao fundo do poço. Mas foi o que consolidou a idéia de que concurso deve ser feito pelo Sindicato sim, mas sem privilégios de qualquer espécie, o que se conseguiu afinal em 1994, na primeira gestão de José Tarciso, mesmo debaixo de pressões.