Prefácio
"Santos Libertária", pela voz dos jornais, muitos inéditos, é a história das primeiras
lutas sociais na cidade e no país. Foi o texto que venceu o Concurso Estadual Prefeito faria Lima em 1986, promovido pela Fundação Faria Lima/Cepam/
Secretaria do Interior do Estado de São Paulo. E é a recuperação de um momento histórico inédito e precioso, que vai do nascimento da luta
abolicionista e mutualista (das entidades de socorros mútuos como a Humanitária, a primeira forma de organização dos
trabalhadores livres) ao período da "resistência", da organização sindical e das grandes lutas sociais. Tempo dos sindicatos livres, que a partir da
segunda década do século XX seriam vigorosamente combatidos, até seu quase extermínio no final da década de 20, substituídos pelo sindicalismo
oficial do Estado.
A favorável situação geográfica do estuário de Santos à ação dos piratas leva seu
porto a ser transferido do outro lado da ilha, que era na atual Ponta da Praia. Ele muda para um local mais abrigado,
onde está hoje. Isso acontece logo depois da chegada de Martim Afonso e Braz Cubas
em 1532 - pois funcionava desde 1510 no antigo local. Em tempos de navios a vela, com o passar dos anos, às portas do
século XIX, a situação já era caótica com o acúmulo de navios e de trabalhadores imigrantes e escravos, carregando febrilmente mercadorias por sobre
pontes de madeira que ligavam o porto aos navios a cem metros nas margens assoreadas.
Os sacos de café eram a maioria das cargas e os comerciantes tinham seus escritórios e
armazéns em trapiches junto ao mar, que ficaram registrados como Trapiche da Alfândega, do Arsenal, da Praia, a Estrada de Ferro, da Banca, do Sal,
do Consulado e da Capela, além do 11 de Junho. As doenças dizimavam a população, febre amarela, varíola, matando algumas
vezes todos os tripulantes dos navios, que fugiam da cidade com medo do Porto da Morte, de praias lodosas.
Em 1892, o presidente do Estado de São Paulo, José Alves Cerqueira César, encaminha
mensagem ao Congresso Legislativo do Estado, chamando para a necessidade de medidas relativas à solução desse cenário que perturbava a economia do
Estado, abrindo as fronteiras para a invasão da febre amarela e prejudicando o comércio exterior. Para sua posse na direção do Estado, em lugar de
Américo Brasiliense, havia contribuído o santista Vicente de Carvalho, seu secretário do Interior, delegando-se
a partir daí atenção à Cidade.
É a época do nascimento do cais do porto de Santos, um dos maiores do mundo em
construção desde fins do século XIX, meados de 1888. Após batalhas judiciais para afastar os barracões de madeira e os pontões privados, com firme
apoio do governo federal contra os poderosos locais - raiz de conflitos que algumas vezes vão irmanar burgueses e
trabalhadores contra a Docas, o "polvo" -, inicia-se a construção que vai inaugurar seus primeiros duzentos
metros de cais em 1892. É o primeiro porto organizado do País, repleto de imigrantes presentes em sua construção e operação.
Este livro narra a epopéia desses imigrantes e dos que vieram para cá, que a partir da
construção do cais povoaram e construíram a cidade, tornando-a território densamente povoado, porém infecto e inabitável, que se regeneraria a
partir dos canais iniciados em 1905. Suas ações e reivindicações estão registradas, assim como sua expressão, em tempos
difíceis de privação e transformação social, que plantariam todo o cenário futuro até hoje com o resgate do sentido da Abolição
da Escravatura: eram trabalhadores pagos e não escravos, embora esta fosse apenas uma variante da forma de dominação e exploração.
Este livro é um documento histórico inédito da cidade, sua história por sua imprensa,
importante fonte histórica e documental incontestável, em um momento em que ela se proliferou pelas mãos dos imigrantes. Pesquisado e construído em
várias bibliotecas e cidades por mais de uma década, reunindo jornais do Arquivo Edgar Leuenroth, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade de Campinas, por exemplo, o maior centro de documentação libertária da América Latina. E da Sociedade Humanitária, uma das três
primeiras entidades mutualistas do País, de onde trouxemos o jornal O Caixeiro, que semeou a entidade, reunindo
vontades solidárias.
Inicialmente, em 1983, Santos Libertária! (assim, com exclamação no final) foi
Trabalho de Conclusão de Curso em Jornalismo do autor na Faculdade de Comunicação da Universidade Católica de Santos, então
mantenedora São Leopoldo. E, depois, ampliado para ser a monografia do autor na sua pós-graduação em História, em 1992, também na Universidade
Católica de Santos.
Trata-se de um documento de valiosa contribuição para a história da Cidade, traçando
os passos da Cidade em construção e expansão de pessoas, na implantação da atividade portuária. conta a evolução do fenômeno ideológico, histórico,
através dos jornais dos trabalhadores, desenhando as três fases do movimento - desde o mutualismo, de ajuda mútua fornecendo médicos e remédios, até
o movimento socialista acadêmico e o reformismo, que se circunscrevia à elite. Isso até o "sindicalismo de resistência", dos trabalhadores
imigrantes, que chegam a partir da década final do século XIX.
Santos em 1877 já tem registros de movimentos reivindicatórios no porto - greve -,
revelando que já existiam trabalhadores pagos, antes do início das grandes imigrações que se sucederiam nos anos seguintes. Em 1891 já existe em
Santos uma greve geral, a primeira do País, que reúne toda a Cidade em oposição às políticas da Docas, que geraram grande antagonismo a ponto de -
em face do apoio de A Tribuna - o jornal ser fechado e tiroteado em 1908, quando os interesses dos produtores locais era divergente
dos do Governo Federal.
Os métodos de expansão ideológica em um contingente analfabeto dão vez a uma numerosa
atividade intelectual e de imprensa, pedagogia e ativa, presentes neste trabalho que desenha as origens do anarco-sindicalismo, a ação dos
reformistas "amarelos" que não vão ao limite da transformação social e todos os fatos das greves desde 1877 até 1927, com uma análise da imprensa
operária brasileira e os jornais editados em Santos, analisados e fotografados.
A conjuntura étnica 9imigrantes em 80% da mão-de-obra ativa), geográfica (o maior
porto do País a partir de 1850) e conjuntural (uma empresa privada administrava o porto com métodos escravagistas, ao contrário do Rio de Janeiro,
que era estatal), fizeram de Santos, nesse confronto, um local das lutas sociais mais intensas do País no período descrito. Os métodos de direção
sindical livres da burocracia das direções fixas inovam neste tempo e multiplicam o movimento, que seria, décadas depois, sufocado com o
sindicalismo oficial de Vargas a partir dos anos 30. Antes disso, porém, de 1879 a 1927, ele traça uma epopéia.
Uniram-se aqui líderes deportados de seus países de origem, entre milhares de
imigrantes. Seu amálgama com militantes intelectuais e gráficos, alfabetizados obrigatoriamente para cumprir seu trabalho, possibilitou a prodigiosa
imprensa, construída por intelectuais da elite na época abolicionista e que muda de mãos nesta fase, em consonância com o processo ideológico de
contestação em curso. É grande a atividade resultante, amplo seu arco de conquistas. É assim que se firma a Abolição.
As duas últimas décadas do século XIX são marcadas em Santos por epidemias de tifo,
febre amarela e outras doenças, que exterminavam a população aos milhares, ao ponto das levas de imigrantes que chegavam não elevarem o número de
pessoas, que se mantém estável entre 1885 e 1890 - saídas e chegadas se compensam. As péssimas condições de vida na cidade facilitavam a
disseminação das epidemias.
Embora saídos da escravidão no Brasil, oriundos de um estágio mais avançado do
capitalismo, os operários imigrantes chegam dispostos a evoluir o quadro de esgotamento físico, sofrimento e mutilações que os aguardavam nas
fábricas, em jornadas de trabalho intermináveis e sem o mínimo apoio do Estado liberal, que apenas reprimia os movimentos sociais na tese de que era
autoritarismo intervir na relação privada dos patrões com seus empregados.
É aqui e nesta fase que nasce o vigoroso movimento de conquista de direitos sociais no
País, na cidade que é um de seus três maiores pólos nacionais, ao lado do Rio de Janeiro e São Paulo, pela significância de seu porto em construção
e expansão, que a partir de meados do século XIX é o maior do país, no auge do café.
Em Santos é onde se realiza a primeira greve geral do país - em 1891 - e se constrói o
mito da "Barcelona Brasileira" no "Porto do Café", comparada ao centro mundial da organização anarco-sindicalista na Espanha, terra da poderosa CNT
- a Confederação Nacional dos Trabalhadores espanhola. A defesa ideológica e que se exercita nas ações é pela consecução dos direitos sociais e pela
construção de uma sociedade sem Estado, dirigida por federações de trabalhadores.
Esta história é contada a partir do momento em que a Abolição da Escravatura é
decretada, quando já existem trabalhadores pagos e aquele instituto é decadente em função de suas contradições com o novo modelo econômico de
expansão que se implanta e com as rebeliões de mão-de-obra cativa que causavam conflitos e fugas.
Santos é o "Território Livre" dos escravos, como chamada então, antecipando sua raiz
de cidade-operária, lugar para onde vinham fartos contingentes fugidos em busca do embarque ou do abrigo em casas de abolicionistas, movimento que
engloba todas as classes sociais que patrocinam as ações do então chamado "Abolicionismo de Resistência" - com ações violentas para promover o
resgate dos cativos.
É aqui que surge, nos anos finais da escravidão, uma das primeiras (cinco) entidades
mutualistas brasileiras, de ajuda mútua entre os trabalhadores assalariados, patrocinada pelos setores patronais engajados nas causas humanitárias e
com uma visão bastante piedosa, vemos hoje, da conjuntura opressiva que se desenrola sobre estes caixeiros - atendentes, arrumadores - de lojas, que
dormem sob os balcões. E não têm assistência médica, fim de semana livre, horário de trabalho ou qualquer direito social. Mas, ao mesmo tempo em que
é uma ação piedosa e assistencial, marca este tempo como o da organização dos "de baixo".
Em Santos se desenvolve uma das mais prodigiosas lutas operárias do País, organizadas
por trabalhadores sem salários sindicais, na senha da solidariedade social, com inúmeras conquistas como a das oito horas de trabalho. Isto ainda em
1908, e não em 1931, quando as oito horas de trabalho chegaram ao País através de um governo que deu os anéis para não perder os dedos, fazendo as
concessões trabalhistas idealizadas por Lindolfo Collor para ampliar a base populista, no Brasil antes circunscrito às elites.
Os fatores que vão liquidar com este sindicalismo ativo e democrático vão se
demonstrar neste relato, desde a emergência de um governo forte e com uma política de controle do movimento operário, até o confronto entre
anarquistas e comunistas no movimento, em fatos que narramos na sua ocorrência local, neste que se fez um dos três maiores núcleos do movimento
social no País, ao lado de Rio e de São Paulo, na tendência que foi nacional.
É uma história da formação de Santos, que se expande no período e se viabiliza
enquanto centro de moradia na cidade que fez a primeira greve geral do País, com intensa vida intelectual e mobilização social, que retratamos.
Houve um intenso processo de politização com a chegada do operário imigrante, que embora analfabeto em maioria, tinha lideranças experimentadas, que
construíram uma prodigiosa imprensa, geradora de intensa mobilização social, levando as idéias à discussão. Trazendo o socialismo como tema
acadêmico, com pensadores como Louis Blanc e Fourier, socialistas, enquanto no Sul se disseminava a proposta anarquista, em meio a massivas
reivindicações e atividades gregárias.
O livro fala, além do mutualismo - que inicia um movimento solidário com os
trabalhadores, por sua saúde e dignidade - e do movimento socialista acadêmico, no rol dos movimentos sociais que, evoluindo, resgataram a liberdade
proposta pela Abolição, ampliando seu universo, da educação popular e do racionalismo. Santos tem em Silvério Fontes um dos primeiros socialistas
brasileiros, senão o primeiro, como o classifica o fundador do PCB, Otávio Brandão.
Há referências sobre as entidades e sobre os líderes comunitários, sobre a ação
cultural dos sindicalistas e seus movimentos, de sua ideologia. Reporta o porto de Santos e a história da Cidade através de seus jornais, de
personagens como Vicente de Carvalho, da Abolição e da repressão policial-militar aos movimentos sociais, do porto e da Revolta da Armada, de
Olímpio Lima e da fundação em 1899 de A Tribuna, o maior jornal da região, entre fatos da cidade.
O texto comenta as intervenções policial-militares sobre a organização proletária e
relaciona os sindicatos livres da época, federações sindicais - desde a Confederação Operária Brasileira até a Sociedade Internacional União dos
Trabalhadores, e a anarco-sindicalista Federação Operária Local de Santos. ala do colégio Escolástica Rosa e de alguns
heróis e entidades de Santos.
O trabalho traça a trajetória dos reformistas sociais parlamentaristas, de Santos, do
Brasil, e seus congressos nacionais de 1892 a 1920. O conflito ideológico mundial entre anarquistas e comunistas refletido aqui, o dia a dia e as
reivindicações de 50 anos das greves santistas, os sindicatos e sua ideologia, os estrangeiros que chegaram para o trabalho e os casos de expulsão
do País, por atividade sindical, que existiram no período.
É um retrato com imagens sociais de época, descritas em detalhes. |
O autor Paulo Matos é jornalista, historiador pós-graduado, escritor e bacharel
em Direito, formado pela Universidade Católica de Santos. Escritor, prêmio estadual Fundação Faria Lima de História em 1986, nasceu em 1952.
Militante político do movimento estudantil e popular desde a puberdade, integrante da geração 1968, escreveu centenas de crônicas em diversos
jornais e revistas.
Matos lançou em 2004 o livro Na
Santos de Telma, a vitória dos mentaleiros - Anchieta, 15 anos - a quarta revolução mundial da Psiquiatria,
obra sobre a intervenção no hospital realizada em Santos em 1989. É autor de livros sobre transporte coletivo urbano - Transporte coletivo em
Santos, história e regeneração, editado pela Prefeitura de Santos no governo do prefeito
Osvaldo Justo (1984-1988), em 1987.
O autor escreveu também outro livro sobre a história do porto e do sindicalismo portuário (Caixeiro,
conferente, tally clerk - uma odisséia em um porto do Atlântico), além de seu prêmio estadual,
este junto com o também jornalista Carlos Mauri Alexandrino, editado em 1997 pela Prefeitura de Santos, no último ano da gestão do prefeito
David Capistrano (1993-1996).
Poeta e contista premiado na Universidade, palestrista, Paulo Matos é autor também de ensaios sobre arquitetura -
Santos/Jurado, a ilha e o novo -, que mostra o arquiteto e construtor do edifício Verde Mar, João Artacho
Jurado, editado pela Prodesan em 1996. E história - em que ganhou o Prêmio Estadual Faria Lima de História em 1986, promovido pelo Governo do
Estado (Secretaria do Interior/Cepam). Um trabalho que conta a trajetória do movimento operário livre em Santos, desde seu nascimento após a
Abolição, fins do século XIX.
Seu Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo em 1983, Santos Libertária - imprensa e movimento operário,
1879/1920 - foi ampliado e apresentado como sua monografia de pós-graduação em história em 1992 (Imprensa operária na Santos Libertária -
imprensa e história do sindicalismo livre/1879-1920), depois de ganhar o prêmio estadual Faria Lima de História em 1986 - narrando o período em
que se originaram os sindicatos no Brasil, nos fatos ocorridos em Santos, um dos três principais pólos nacionais do movimento operário à época do
sindicalismo livre.
Na sua formação em Direito em 2002, apresentou como Trabalho de Conclusão de Curso a monografia Catracas,
cobradores e direitos sociais, em que mostra todas as infrações legais praticadas pelos empresários do sistema de transporte coletivo em Santos
- de cuja luta participou há 20 anos, como membro da coordenação da Associação dos Usuários, tendo sido vítima da Lei de Segurança Nacional em 1984
por essa militância.
Matos também participou dos movimentos de organização popular, como integrante do movimento estudantil e
coordenador da luta pela legalidade dos ambulantes de praia, conquistada pela primeira vez no País em Santos. Uma luta iniciada
em 25 de fevereiro de 1983 com a criação da Socó Unidade Ambulante de Resistência - semente do atual Sindicato dos Ambulantes -, na legalidade
conquistada em 1986, engajando no trabalho legal cerca de 1.500 pessoas após extensa trajetória de luta.
Membro da coordenação da Associação dos Usuários do Transporte Coletivo, em 1984 Matos foi preso em manifestação e
indiciado na Lei de Segurança Nacional, então o último do País, sendo demitido da Cetesb - anistiado político em 1998.
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