[1] AS DUAS LINHAS NA SERRA - Vista da Serra do Mar,
com as duas linhas da SPR
Fonte: Acervo da RFFSA - foto publicada com a matéria
As ferrovias na serra.
E o crescimento da cidade de São Paulo
Por Nestor Goulart Reis Filho (*)
Os
ingleses construíram a linha entre Santos e Jundiaí, vencendo a Serra do Mar, em 1867.
Essa ferrovia alterou não só as relações de poder na Província de São Paulo como
também criou uma nova geografia, promovendo o rápido crescimento da cidade de São Paulo e abrindo o interior e parte do Sul de Minas à cultura
do café.
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Antes das ferrovias, as cidades fora do litoral eram
sempre pequenas. O transporte, em lombo de burros, não permitia qualquer forma de concentração populacional. Mais de 90% da população vivia no meio
rural e quase nenhuma atividade econômica urbana era possível. Sobrava pouco para as cidades.
As ferrovias redefiniram as relações no espaço e permitiram o aparecimento de graus
significativos de concentração, em alguns pontos. Mas os primeiros passos não foram simples. Em São Paulo, no século XIX, a grande dificuldade para
o desenvolvimento do interior era vencer a Serra do Mar. Os planos vagos e os projetos bem fundamentados para a construção de estradas, ligando o
interior com Santos, chocavam-se sempre contra a mesma barreira: a da Serra do Mar.
As terras férteis, produtoras de riquezas, como o açúcar e o café, ficavam no
interior, no planalto, a pelo menos 700 metros de altura e uma centena de dificuldades para serem transpostas. Eram problemas técnicos, para os
quais havia poucos precedentes no mundo, naquela época, e eram problemas financeiros, decorrentes dos primeiros, para os quais faltavam os capitais.
Qualquer solução que fosse adotada exigia sempre grandes investimentos. A escala dos
empreendimentos e os riscos desestimulavam os investidores. Por isso mesmo, os planos para ligações ferroviárias com o planalto, elaborados nas
décadas de 30 e 40 do século passado (N.E.: século XIX), permaneceram no terreno da
fantasia.
A solução encontrada pelo Governo Imperial e pela administração provincial, por volta
de 1850, foi a garantia de juros, com pagamento em ouro. Eliminava-se o risco, com a garantia de remuneração mínima para os capitais investidos. Com
essas formas de incentivo, foram construídas as primeiras ferrovias do País. Com essa modalidade de apoio oficial, Irineu Evangelista de Souza, mais
tarde Visconde de Mauá, se propôs a construir a primeira ferrovia de São Paulo.
No final dos anos 50, quando o Governo Imperial aprovou os planos de Mauá e seu grupo
para a construção de uma linha entre Santos e Jundiaí, passando por São Paulo, o primeiro passo para vencer a Serra do Mar havia sido dado. O
projeto técnico foi desenvolvido por um grupo de engenheiros ingleses, sob liderança de James Brunlees, presidente da Associação dos Engenheiros
Civis de Londres.
As obras foram iniciadas em 1860, abertas ao tráfego provisório em 1865 e completadas
em 1867. Mesmo para os dias de hoje, a obra parece de grande vulto. Para a época, devia parecer imensa. As estações eram bem modestas mas os
viadutos e equipamentos exigidos permitiram aos ingleses assumir o controle total do empreendimento, livrando-se de Mauá e seu grupo.
[2] CONSTRUÇÃO DA MAYRINK-SANTOS
Obras de construção dos túneis em concreto armado, na Mayrink-Santos, cerca de 1938
Fonte: Arquivo da Cia. Construtora Brasileira/Ribeiro Franco - foto publicada com a matéria
A implantação da ferrovia alterou as relações de espaço
e tempo e as relações de poder, na Província de São Paulo, criando uma nova geografia. Nessa época, a serra era cortada por diversos caminhos de
tropas, calçados com lajes, que possibilitavam o transporte por mulas para os vários portos, ao longo do litoral: de Sorocaba a Iguape; de Jacareí a
São Sebastião; de Taubaté e Pindamonhangaba a Ubatuba e de Guaratinguetá a Parati (RJ).
A única via que chegou a permitir a passagem regular de veículos nessa época foi a
Estrada da Maioridade, ligando Santos a São Paulo, construída em 1842 e refeita em 1862/5. Santos
foi sempre o principal porto, como São Paulo foi o centro mais importante noi planalto, para articulação dos
caminhos. Mas os outros portos e as correspondentes cidades no planalto tinham um nível de atividade semelhante, rivalizando com Santos e com São
Paulo, que, segundo Pasquale Petrone, era o seu "porto seco". Para cada porto no litoral havia um caminho na Serra e um "porto seco" no planalto, do
qual partiam os caminhos e as estradas de carro, que percorriam os terrenos menos acidentados do interior.
Esse quadro foi profundamente alterado entre 1867 e 1875, com a inauguração da
São Paulo Railway. Vencida a serra, multiplicaram-se as ferrovias no planalto, onde os custos das obras eram muito menores.
De Jundiaí a Campinas foi construída a Companhia Paulista, inaugurada em 1872. De Campinas partiram a Mogiana e as novas linhas a Rio Claro e São
Carlos e a Porto Ferreira, com bitola larga, que se integraram à Paulista. De São Paulo partiu a São Paulo e Rio, pelo vale do Paraíba, e a
Sorocabana, em direção ao Sudoeste. De Jundiaí partiu a Ituana, atingindo Tietê, Porto Feliz e Piracicaba. Em Porto
Ferreira, a Paulista articulava-se à navegação pelo Mogi-Guaçu.
A nova configuração dos caminhos teve três efeitos principais: abriu o interior de São
Paulo e grande parte do Sul de Minas à cultura do café, a partir de Campinas; reduziu os laços do vale do Paraíba com o Rio de Janeiro e,
finalmente, transformou Santos em grande centro de comercialização do café, competindo com o Rio
de Janeiro.
Com exceção da São Paulo Railway, os outros empreendimentos foram promovidos por
capitais brasileiros e basicamente locais. O aumento da lucratividade com o cultivo das terras mais férteis do interior, a adoção de técnicas e
cultivo e beneficiamentos mais eficazes, com o uso de trabalhadores assalariados e a redução dos custos de transporte, asseguraram a realimentação
quase contínua do processo, nas duas últimas décadas do Império e ao longo de toda a Primeira República.
Essas condições fortaleceram decisivamente o papel do eixo Santos-São Paulo-Campinas,
como promoveram a paralisação de todo o restante do litoral e aceleraram a decadência do vale do Paraíba. Essa nova configuração da rede de caminhos
e das relações no espaço explica o rápido crescimento da Capital, a partir daquele momento. Em 1867, quando a ferrovia foi inaugurada, eram 19 mil
habitantes. Em 1900, eram 250 mil.
Até o final do Império, a São Paulo Railway, chamada a "Inglesa", exerceu monopólio
total sobre o transporte entre o planalto e o litoral, reforçando o eixo Santos-São Paulo-Campinas. Era um arranjo político conveniente. Essa
polarização sofreu alguma competição nos primeiros dias da República. O novo regime, sob ventos liberais, abria espaços para que as demais ferrovias
construíssem suas linhas para o litoral. O sistema instalado na serra pela SPR havia esgotado sua capacidade e dava margem a propostas dos
competidores e a novas empresas.
Vários projetos foram elaborados, para estabelecer novas ligações com o
litoral. Três deles, favorecendo companhias já existentes [1]: para a Mogiana
e a Sorocabana, buscando o porto de Santos e para a Paulista, visando uma ligação com São Sebastião. Na mesma época, constituiu-se em Taubaté uma
nova empresa, para construção de uma ligação com o porto de Ubatuba. As obras foram iniciadas em várias frentes e interrompidas, por falta de
recursos e pela demora na chegada dos equipamentos importados. Nenhum dos projetos foi concluído nessa época.
A segunda ferrovia da serra a ser construída terminou por se confundir
com a primeira: a SPR pleiteou e obteve autorização para duplicação de sua linha e instalou na serra um equipamento de maior porte, com o dobro da
capacidade do anterior.
[3] CONSTRUÇÃO DA SERRA NOVA
Obras da segunda linha da SPR na Serra do Mar, cerca de 1897
Fonte: Acervo da RFFSA - foto publicada com a matéria
As obras foram concluídas em 1897. A linha foi chamada
de "Serra Nova", por oposição à primeira, a "Serra Velha".
Sob certos aspectos, a manutenção do monopólio em mãos dos ingleses favoreceu a
hegemonia política dos grupos econômicos do eixo Santos-São Paulo-Campinas. Alguns historiadores vêem nos acontecimentos da época mais do que
coincidência. Quando estava sendo construída a estrada Taubaté-Ubatuba, ganhou força o projeto do engenheiro Silva Telles, para ligação ferroviária
do vale do Sapucaí, no Sul de Minas, com o vale do Paraíba Paulista e o litoral Norte do Estado. Simultaneamente, esboçou-se um movimento para
emancipação política dessa região, para constituição do Estado de Sapucaí. Era a antiga capitania de Santo Amaro, tentando recuperar sua forma. Além
das ligações familiares e econômicas das regiões vizinhas, nos dois Estados, havia ainda a memória, não de todo apagada, dos tempos de Pombal,
quando as regiões ao Sul do Rio Grande haviam pertencido à capitania de São Paulo.
A idéia de uma segunda via de transporte na serra, que pudesse quebrar o monopólio dos
ingleses, permaneceu viva. Em 1926, ao elaborar os projetos para a represa no alto da serra e a usina de Cubatão, o
engenheiro Asa Billings propunha ao governo brasileiro a criação de um sistema de transporte fluvial com barcaças de mil toneladas, que
circulariam pela represa e pelo rio Cubatão e seriam transportadas em teleféricos, no trecho da serra. Mas já estava sendo iniciada a construção de
uma nova ferrovia, que tornou o projeto da Light obsoleto.
No governo de Júlio Prestes (1926-30) foi iniciada a construção do ramal
Mayrink-Santos da Estrada de Ferro Sorocabana (hoje Fepasa). As obras foram inauguradas em 1938. A estrada se tornou famosa
pelas obras de arte (túneis, ferrovias e viadutos) em concreto armado, que constituíram então uma novidade no setor ferroviário. Nos anos seguintes,
foi construído um segundo ramal da Sorocabana, ligando Presidente Altino (Osasco) a Santo Amaro e ao alto da serra, permitindo o acesso direto a São
Paulo, sem passar por Mayrink. O ramal foi inaugurado por volta de 1950, abrindo para a então subprefeitura de Santo Amaro a possibilidade de
instalação de um bairro industrial.
Mas então já havia terminado o prazo de concessão da São Paulo Railway, que foi
encampada pelo governo federal, em 1947, 80 anos após a sua inauguração.
(*) O autor, arquiteto e sociólogo, é professor
titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).
Notas:
[1] SAES, Flávio A. M. -
A grande empresa de serviços públicos na economia cafeeira - 1850-1930. Ed. Hacitec - São Paulo, 1986.
[4] CONSTRUÇÃO DA SERRA VELHA
Obras da primeira linha da São Paulo Railway, na serra do Mar, cerca de 1865
Fonte: Acervo da RFFSA - foto publicada com a matéria
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