Capa do livrete com o discurso de Júlio Prestes
No Rancho de Paranapiacaba
Júlio Prestes
Discurso proferido pelo Dr. Júlio Prestes, em 7 de setembro de 1922, na inauguração
dos monumentos mandados construir, no Caminho do Mar, pelo Governo do Estado de S. Paulo, sob a presidência do Exmo. Sr. Dr. Washington Luís
Pereira de Souza, comemorando a passagem do primeiro centenário da Independência do Brasil.
Página inicial do discurso, no livrete publicado
na capital paulista
Exmo. Sr. Dr. Presidente do Estado:
Meus senhores:
De todas as comemorações hoje celebradas para solenizar
a passagem do primeiro centenário de nossa emancipação política, é esta, decerto, a que melhor sintetiza o evoluir dinâmico da nacionalidade.
Os monumentos que ora inauguramos representam a generalização de nossa história, por
marcos que abrangem ciclos diversos e que tão estreitamente se ligam e se encadeiam, resumindo e explicando todos os períodos de nossa evolução.
Cada um destes monumentos rememora uma época, cada uma dessas épocas revela um estado
de civilização, e todas elas, no seu conjunto, intimamente entrelaçadas como os elos de uma mesma corrente, representam a unidade, a seqüência, a
marcha ascencional de nossa vida, qual se nos mostrassem, em diversas idades, fotografias diferentes da mesma criatura.
Erguidos à margem desta estrada, como um culto ao passado, eles ligam entre si as
idéias e a vida, o tempo e o espaço, explicando o presente.
A vida intensa em que nos debatemos, a intelectualidade que formamos, a riqueza que
movimentamos, o caminhar acelerado do nosso progresso sem comprometer a estabilidade de nossa civilização, tudo isso não seria suficientemente
explicado sem o estudo de nossas origens e da marcha que fizemos através das idades e dos governos que se sucederam.
Quem, transpondo os mares, aterrasse hoje nos campos de Piratininga, não teria
explicação para a raça que ali se encontra e nem para a civilização que lhe preside a vida, se não acompanhasse a nossa evolução, desde o embrião da
colônia até o desabrochar de nossos dias.
E quem, conhecendo apenas a nossa origem, desconheça o nosso evoluir através da
caldeagem das raças, dos sofrimentos e das vitórias, das trevas da escravidão e dos fulgores da liberdade, ainda se maravilhará ante os esplendores
de S. Paulo, tão inexplicáveis como as lendas das cidades mágicas que florescem nas Atlântidas do sonho e da imaginação.
Estes marcos, assinalando as diferentes fases de nossa história, demonstram que o
nosso progresso não foi improvisado, que a nossa civilização não veio feita do estrangeiro, que a nossa cultura não teve a adaptação de obra de
centenário.
Descoberto o Brasil, os portugueses formaram os seus primeiros núcleos de colonização
no litoral, onde se instalaram, sem os conhecimentos necessários da terra que iriam dominar.
Martim Afonso de Sousa, que viera de Portugal com ordem
de explorar as costas do Brasil e de escolher os melhores pontos para o desenvolvimento da colonização, fora conduzido por João Ramalho até os
campos de Piratininga. O roteiro de João Ramalho - o primeiro europeu que habitou o planalto - partia do porto das Almadias (Porto de Santa
Cruz) e era apenas constituído por um trilho de selvagens, margeando o rio Mogi, em cujo vale se fez o traçado da estrada de ferro Inglesa.
Regressou Martim Afonso e as populações costeiras continuaram a crescer na pobreza e
na madraçaria, sem vantagem alguma para a colonização.
O interior permanecia, para eles, selvagem e desconhecido.
Os índios livres das florestas desciam para atacar os portugueses, ao mesmo tempo que
os índios escravizados não se adaptavam à nova vida e eram elementos negativos para qualquer obra de desenvolvimento colonial.
Com a vinda dos jesuítas, a cuja frente se destacam Nóbrega e Anchieta, é estudado e
praticado um novo método de colonização.
Estudando a organização social dos portugueses, viu logo Nóbrega que eles não poderiam
progredir, porque "os portugueses que ali estavam e começavam a povoar lugares, viviam a modo de gentios; e os gentios,
com o exemplo destes, iam fazendo menos conceito da lei dos cristãos".
Daí é que surge o raciocínio de Nóbrega, em conceitos modelados segundo o método de
Ignácio de Loyola, que consistia em discutir consigo próprio as razões de uma e de outra parte para lançar as bases de sua constituição.
Opunha-se ele ao sistema adotado e à conquista violenta, acentuando a diferença que
existe entre a conquista temporal e espiritual: "naquela depende o sucesso do esforço e braço dos soldados - na
espiritual, do esforço e braço de Deus; aquela conquista é violenta, esta é voluntária".
E concluía, exortando: "Haja em nós espírito de apóstolos
e bastará a pregação de qualquer para converter a gentilidade toda do Brasil."
Assentado sobre esses raciocínios, é posto em prática o método católico de
colonização, cujas vantagens Eduardo Prado demonstra, quando o analisa em confronto com o método violento, que consistia em despojar as raças
inferiores e substituí-las, e ao método mercantil, que visava vencer comercialmente o indígena, pelo dolo, pela astúcia, pelo contágio das
enfermidades e dos venenos dos tóxicos inebriantes.
Com aquelas razões, e norteados pelos princípios da mais elevada moral, os jesuítas
estudam o meio, aprendem a língua e iniciam a prática das virtudes cristãs, impondo-se pelo amor, pelo desinteresse e pela pureza.
Precisando em seguida conhecer a terra que vão conquistar para a cristandade,
palmilham praias, vadeiam rios, varejam florestas, escalam serras, penetram e desvendam o segredo do sertão e vão estabelecer o seu posto avançado
nos campos de Piratininga, onde instalam o seu primeiro viveiro e onde iniciam a semeadura de uma raça que viria descobrir, balizar, dilatar, povoar
e fazer a grandeza do Brasil.
É ali que surge o primeiro caboclo, misto das duas raças que se cruzam, trazendo, com
as qualidades superiores do português, a resistência e o sangue quente do selvagem, forjado para as aventuras e para fazer a irradiação da
nacionalidade.
A luta para alcançar Piratininga e para a conquista do planalto é tão agigantada, que
as palavras dos cronistas ainda ficam aquém dos obstáculos que perduram, atestando a temeridade da empresa.
Do litoral à raiz da serra, que se alcantilava como uma muralha misteriosa da terra
que os tentava, não havia caminho, eram os marnéis e os brejais, onde a navegação se tornava impossível e a marcha a pé não podia ser tentada. É o
mangue decomposto ao calor tropical. Não é água nem é terra, sendo, antes, na expressão feliz de Euclides da Cunha, "o naufrágio da terra", onde,
nas ardências do sol, a água podre fervilha, borbulhando os miasmas da morte. Os canais se enovelam em labirintos que coleiam na planície,
desafiando as direções. É pelos rios, de canoas, que eles alcançam a raiz da serra, galgando-a numa escalada de aventura.
O que era essa escalada naqueles tempos, o pensamento que a animava, o quadro em que
se movia, não desejamos deturpá-lo, e, por isso, oferecemo-lo tal qual o fotografou o padre Simão de Vasconcelos, na Chronica da Companhia de
Jesú:
"...Contentam as razões: e logo foram mandados, debaixo
da obediência do padre Manoel de Paiva, fundar o colégio nos campos de Piratininga. Estes campos merecem o nome de Elíseos ou bem afortunados... De
toda abundância de coisas necessárias para o uso da vida humana são capazes; e ainda para recreação e delícia, a quem a procurar. Ficam quase na
segunda região do ar, depois de atravessada aquela notável serrania; que sempre vai subindo, acumulando montes sobre montes; e têm bem que suar os
que houverem de chegar a vencê-los, para gozar do raso das campinas".
O padre Simão de Vasconcelos prossegue na descrição da jornada e das asperezas do
caminho, acentuando que, apesar de ter sido traçado pelo lugar mais favorável, "é tal, que põe assombro aos que hão de
subir ou descer". E é ele ainda quem acrescenta:
"O mais de espaço não é caminhar, é trepar de pés, e de
mãos, aferrados às raízes das árvores, e por entre quebradas tais, e tais despenhadeiros, que confesso de mim, que a primeira vez que passei por
aqui, me tremeram as carnes, olhando para baixo. A profundeza dos vales é espantosa; a diversidade dos montes, uns sobre outros, parece tirar a
esperança de chegar ao fim; quando cuidais que chegais ao cume de um, achai-vos ao pé de outro não menor; e é isto na parte já trilhada e escolhida".
Compensava-se o padre Simão, do trabalho dessa subida, com o sentar-se, de quando em
quando, nalguns daqueles penedos e maravilhar-se, vendo o globo a seus pés, com a variedade das serranias, dos bosques, dos campos, dos rios e do
mar, que ficavam lá em baixo.
Numa dessas viagens, o notável cronista da Companhia de Jesus assim nos descreve a
maravilha de um espetáculo a que teve a ventura de assistir e que não me furto ao prazer de reproduzir, com a frescura e com o pitoresco de suas
próprias expressões:
"Indo eu subindo com meu companheiro o meio desta serra,
nos divertiu um estrondo extraordinário, e desusado, do mais íntimo dela. Parecia-nos que ouvíamos o grande boato de muitas peças de artilharia
juntas, que pelas quebradas dos montes fazia o som mais medonho".
Interrogaram-se os companheiros, que não souberam a que atribuir coisa tão nova, até
que os índios, que os acompanhavam, disseram que não passava de um estrondo de pedra.
"E foi assim: porque passados dias se achou o lugar, onde
arrebentara um penedo de circunferência considerável, que das entranhas, com o estrondo dito, como gemidos de parto, bradou à luz um tesouro
pequeno. Era esta uma pinha do tamanho e forma de um coração, cheia por dentro de pedraria de diversas cores: umas brancas de transparente cristal,
outras roxas, de fina cor, outras entre branco e roxo, ainda imperfeitas, ao que parecia, e não acabadas de formar de natureza".
Aí tendes, nos trechos que acabei de ler, a fotografia fiel do que era esta serra
naqueles tempos, e aí tendes, para atestar a verdade dessas descrições, a mesma serra, sem modificação alguma, ferindo a nossa imaginação da mesma
forma por que feria a dos primeiros colonizadores.
Era esta mesma a natureza selvagem que se eriçava em calafrios, recebendo os seus
primeiros passos; são estes mesmos montes os que levantaram em seus ombros aqueles evangelizadores; eram estas mesmas as grotas que se cobriam de
névoas, para se fazerem mais fundas; era esta mesma a crespa, bravia, irregular, disforme vegetação que se emaranhava, estendendo barreiras de
espinhos à sua passagem, para abrir-se, logo adiante, em tufos de veludo e de perfume nos fofos tapetes de relva, onde descansassem da jornada; eram
estas mesmas as cachoeiras, cujo ronco se ouvia à distância, estrugindo e ecoando, por fundos boqueirões, como um rolar sem fim de carretas de
guerra; eram estas mesmas as águas claras que espumavam cantando, arco-irisadas de sol; eram estas mesmas as palmeiras com o seu cocar de esmeralda,
onde os ventos remexiam, dando a vida, a graça e a majestade das trilhas que dominavam as matas, subindo pelas encostas; eram estas mesmas as pedras
que se quebravam, dando a impressão de boatos de artilharia, para florescerem às suas vistas como escrínios de romã, cujos lóculos fossem como um
incêndio de preciosas cintilações, para tentarem a sua cobiça; era aquele mesmo o oceano em cujas praias escreveu Anchieta a vida da Virgem, sob
este mesmo céu que nos cobre e que era, finalmente, o mesmo que recebia os seus olhares e as suas preces, derramando bênçãos, milagres e perdões.
Aí tendes, pois, na paisagem de hoje a paisagem de outrora. Nela vereis o Brasil
material, a Pátria tangível dos primeiros tempos.
Isso é bastante para explicar o que fomos, mas não explica o que somos. Pelo
contrário, limitando-se a reproduzir o que fomos, enevoa os espíritos, confunde os raciocínios e não conclui logicamente a demonstrar o como e o
porquê do que viemos ser.
Para tanto foi que, representando a Pátria moral daqueles tempos, mandou o governo do
Estado erigir estes monumentos.
Detenhamo-nos um pouco ao pé de cada um deles, começando pelo
PRIMEIRO MONUMENTO
da série que estamos a inaugurar.
Ele sintetiza a história, a religião, as tradições, os sentimentos, a alma e o
espírito que foram os ideais daquele tempo, concretizando a ousadia, a lealdade, a honradez e a coragem dos nossos fundadores.
Quem vem de Santos a S. Paulo, ao aproximar-se do
Cubatão, avistará o cruzeiro quinhentista, que se destaca como um alto relevo no fundo verde-negro da serra e
que, a certa distância, parece crescer e subir, aparecendo entre nuvens, com a cordilheira por pedestal, na maravilhosa ascensão de um sonho que em
seguida se reduz à realidade e se torna palpável aos sentidos do sonhador.
Ei-la, erguida e plantada no alto, como a indicar o caminho, a imagem da Cruz, que foi
o primeiro símbolo da nacionalidade!
Ei-la, agora, ao nosso alcance, derramando de seus braços a mesma sombra protetora, as
mesmas bênçãos com que encheu todo o período colonial!
Símbolo sagrado, a Cruz resume a época dos descobrimentos e concretiza os usos, os
costumes, a crença, as lutas e os ideais que foram o germinal da nossa nacionalidade.
Plantada por Anchieta, representa a fé que produziu guerreiros e mártires, que animou
colonizadores e heróis.
Como um culto ao passado, simboliza o alicerce e a fundação moral da Pátria.
É o passado explicando o presente, e este cultuando aquele, para honra do que fomos,
para afirmação do que somos e para esplendor do que viremos a ser. [Aplausos].
Representa esse monumento uma época que remonta a 1560, e está erigido na bissetriz da
atual estrada de rodagem com o antigo caminho do padre José de Anchieta. O seu conjunto é formado por um corpo central com
a Cruz, um chafariz e uma exedra. Duas exedras laterais abrem passagem às duas estradas separadas pelo corpo central.
Na base da Cruz, três painéis representam a luta entre a civilização e os silvícolas,
a catequese do padre José de Anchieta e a abertura do primitivo caminho.
Na face voltada para a serra, outros três painéis representam a chegada das caravelas
portuguesas a S. Vicente.
Esse primeiro monumento representa, pois, a idade religiosa, sob cujos auspícios se
fez a conquista do planalto.
Não tomando o trilho de João Ramalho como um caminho, pois que nele não entraram o
esforço e o engenho dos civilizados, é este o primeiro caminho feito para alcançar o planalto. Começado em 1553, foi ele
inaugurado em 1560, com a denominação de "Caminho novo do mar", em contraposição ao "Caminho velho", abandonado em conseqüência dos ataques dos
tamoios. Toma em seguida o nome de "Caminho do Padre José", e por ele se faz não só o abastecimento do litoral, como o serviço necessário para a
catequese e utilização do silvícola.
Na história desta estrada, o trânsito dessa época era feito a pé e as mercadorias eram
carregadas na cabeça e nas costas dos índios e dos negros.
Na história de S. Paulo, a abertura desse caminho assegura a conquista do planalto e
esboça a missão social do paulista na formação da nacionalidade.
Com a vitória da catequese religiosa e do método de colonização dos jesuítas,
aumenta-se a produção, cresce a população, inicia-se a mineração e a dilatação territorial começa.
Os mestiços predominam, afirmando o aparecimento de uma nova raça para a humanidade.
Tentados pela mineração, emplumam-se os primeiros bandeirantes.
Já existe uma organização social na colônia e os caminhos se fixam para a saída dos
produtos.
As minas prometem enriquecer a metrópole. Esta, então, promove a organização
industrial das capitanias por meio dos seus governadores, que vêm fazer a arrecadação dos quintos.
Esses governadores empregam esforços para a abertura de uma boa via de comunicação com
o mar, mas nada alcançam, porque a metrópole quer tirar o máximo de proveito com o mínimo de dispêndio. O capitão-general
d. Luiz Antonio de Souza chega a aplicar, por muitos anos, nessa estrada, o produto do imposto que arrecada sob a rubrica de "Novo imposto para a
edificação de Lisboa".
Em seguida, é feito o aterrado entre os rios Grande e Pequeno, depois é atacado o
serviço do trecho que vai do sopé da serra ao Cubatão, até que é todo ele alargado e reconstruído, fixando a fase colonial real, com o pleno
desenvolvimento de Piratininga, que reclama uma estrada capaz de atender às necessidades de sua produção e de seu comércio.
Daí é que vem a origem do
SEGUNDO MONUMENTO
na época em que o capitão-general Bernardo José de
Lorena manda melhorá-lo e calçá-lo com lajes ainda hoje ali existentes.
Esse monumento lembra o início do trânsito das tropas e abrange o período que vai de
1757 a 1839.
Erigido no eixo dessa estrada e no ponto em que ela é cortada pela nova, é formado por
um paredão de pedra com escadarias, uma exedra e um arco de abrigo, onde foram carinhosamente assentados os marcos históricos que ali haviam sido
colocados pelo governador Lorena, e cuja memória era ignorada pela geração atual.
O governador Lorena mandou calçar oito quilômetros de estrada, de três metros de
largura, em ziguezagues, e colocar no alto da serra um padrão comemorativo com quatro pedras lavradas, com as seguintes inscrições:
1ª - Omnia vincit amo subditorum
2ª - Maria Regina
3ª - Neste anno de 1790
4ª - Fez-se este caminho no feliz governo do illmo. exmo. sr. Bernardo José Lorena,
general desta capitania.
Duas dessas pedras são as que foram colocadas nesse monumento, que evoca um dos mais
belos períodos de nosso crescimento e de nossa formação.
S. Paulo colonial já exportava para as outras capitanias e para a metrópole o excesso
de sua produção, e já importava para suprir as suas necessidades. O seu comércio com o porto de Santos era feito
por tropas arreadas e intensificava-se de dia para dia. Era por ali que saíam os produtos da lavoura, da pecuária, da mineração e das indústrias
nascentes, e era por ali que entravam os produtos de sua importação.
O tropeiro foi nessa época um dos mais fortes elementos de vida e de progresso e todos
quantos trabalharam para a grandeza e pela unidade do Brasil. Eram eles que recebiam mercadorias em pontos diversos e que as traziam para o
comércio, entretidos com o seu lote, com a sua lida, com os seus cantares saudosos e nostálgicos e que iam, dessa maneira, inconscientemente,
tecendo o elo da solidariedade nacional.
Partiam de todos os pontos de produção, choutando a sua tropa, que cadenciava o passo
pelo retinir dos guizos da besta dianteira, e, atravessando os desolados chapadões do planalto, em demanda do porto de Santos, encordoavam os lotes
por esta estrada, descendo e subindo as asperezas desta serra, como formigas em carregação, parecendo desaparecer ao volume e ao peso das cargas,
que, em movimento, davam a impressão de ir arrastando as alimárias.
Já não são mais os estrondos das pedras que povoam estes ermos, mas as vozes dos
tropeiros que animam esta paisagem.
Cientistas e viajantes célebres, que por aqui passaram, de 1812 a 1839, entre os quais
se destacam o americano Kidder, o norueguês Gustavo Boyher, o inglês John Mawe e o alemão Hercules Florence, pintam com as mesmas tintas a majestade
da serra, a maravilha e o deslumbramento das vistas que se descortinam e as obras gigantescas da estrada de Lorena.
Kidder, por exemplo, descreve a subida da serra que tem cerca de quatro milhas de
sólido calçamento, com mais de 180 ângulos no seu curso de ziguezague. Impressiona-se com o sucessivo encontro de tropas de bestas, que tornavam
interessante o seu trajeto, e, assim, continua: - "ouvia-se primeiro a voz áspera dos tropeiros, tocando seus animais,
a ecoar tão acima de nossas cabeças, que parecia sair das nuvens; depois, ouvia-se o clac-clac das patas ferradas dos animais nas pedras e
avistavam-se as mulas num esforço de se segurarem na ladeira, parecendo arrastadas pelos pesados fardos que carregavam. Afastava-me para um lado da
estrada, para deixar passar os diversos lotes das tropas, e logo o pisar das mulas ia desaparecendo e bem assim as vozes dos tropeiros e dos
camaradas iam-se perdendo abaixo na floresta"...
Gustavo Boyer acrescenta:
"Quatro ou cinco caminhos em ziguezagues pareciam correr
acima de nossas cabeças."
John Mawe, reproduzindo as mesmas observações, acentua:
"É surpreendente a habilidade dos arrieiros em arrumar as
cargas".
E todos eles são acordes em afirmar que "...tudo nessa
estrada contribui para dar uma idéia da energia dos brasileiros e das grandes empresas de que são capazes".
Nos rios sem pontes e nos lugares pantanosos eram as cargas baldeadas nas próprias
costas dos tropeiros, para que as bestas pudessem vencer a salvo os empecilhos do caminho. Muitas vezes, uma besta se desgarrava do lote, ou
escorregava e caía, sendo arrastada pelo peso da carga ao fundo destes precipícios, de onde nada se aproveitava.
Tinham os tropeiros os ranchos de pousada e de sesteio, em lugares certos, plantados
de espaço a espaço, ao longo do caminho.
Aqueles restos de muros esborcinados pelo tempo, aquelas taperas onde hoje crescem
somente as jurubebas, levantando aos céus as palmas cravejadas de espinhos, numa paisagem de abandono, foram as estalagens risonhas onde os
tropeiros chegavam com duas braças de sol e de onde partiam ao miudar dos galos, na faina incessante de fazer a circulação da riqueza.
Os arrieiros eram tipos representativos da época, de uma coragem e de uma honradez que
ficaram proverbiais na história paulista. Toda a riqueza que saía ou que entrava em S. Paulo passava por suas mãos, sem um recibo, sem um documento,
com a nota apenas da consignação, para conferência do consignatário.
Bem mereciam esses ignorados, esquecidos e desconhecidos patriotas um monumento como
este, fixando a memória de sua passagem na estrada que trafegaram. [Aplausos].
Esse marco recorda o período colonial, o governo absoluto da monarquia portuguesa, e
lembra ainda, apesar da opressão dos governantes, a expansão dos governados.
Passam-se os tempos coloniais. Vem a independência política do Brasil, cujo centenário
estamos a comemorar no dia de hoje. Esse período abrange toda a transformação por que passamos. Os horizontes econômicos se alargam. Já não são
somente o açúcar, o toucinho e a aguardente os gêneros de exportação da província.
O café começa a ser cultivado e as possibilidades se
realizam.
A estrada de Lorena vai-se tornando insuficiente para as necessidades da entrada e
saída da província.
O tráfego se intensifica e engrossa, como uma corrente que transborda, procurando
outro leito.
O transporte em lombo de burro vai ser substituído, como já antes o fora o transporte
em cabeças de índios e negros.
Vai ser construída a nova estrada e eis-nos no
TERCEIRO MONUMENTO
apreciando o rancho da maioridade, a recordar o início da rodagem, sob a presidência
provincial de Almeida Torres, que cuidou de dar a essa estrada as proporções necessárias para o trânsito de veículos.
Reformada em 1844, recebe ela o nome de "Estrada da Maioridade",
comemorando a ascenção de Pedro II ao trono do Brasil. Esse edifício lembra o período imperial, de cujas armas se destacam o escudo e a esfera
armilar que simboliza a autoridade e o poder soberano. A origem desse símbolo vem da empresa de d. Manuel e assinala o reinado dos descobrimentos.
Ele surge no Brasil no drama do descobrimento e atravessa os períodos de sua formação, fixando-se como símbolo nacional na sua independência.
Um dos painéis que ladeiam a esfera armilar representa a passagem de d. Pedro II, com
a sua comitiva, quando, em 1846, por esta estrada, se dirigia a S. Paulo. O outro reproduz os próceres da época.
A política é leaderada por Antonio Carlos e Martim Francisco. A ordem legal é
representada pelo duque de Caxias e pelo brigadeiro Tobias; a agricultura, pelo senador Vergueiro; a arte, por Gonçalves Dias e Porto Alegre; a
ciência, por José Bonifácio e St. Hilaire; a indústria e o comércio, por Paes de Barros.
Estamos, pois, em pleno império constitucional do Brasil.
O regime das tropas arreadas ainda continua para o transporte de mercadorias, mas, ao
seu lado, para os grandes pesos, são empregados os carros de eixo móvel, sendo o transporte pessoal feito pelos banguês,
traquitanas e diligências. Esse período floresce até pouco além da segunda metade do século e avança até a República,
que é representada pelo
QUARTO MONUMENTO
que simboliza a época atual.
Os banguês, as traquitanas, os carros de boi, as carroças de cargas e, enfim, todos os
veículos de tração animada, vão sendo substituídos pela rodagem mecânica, em trilhos ou em leitos macadamizados.
Estamos no Rancho de Paranapiacaba, em pleno regime de liberdade republicana.
Estamos no Rancho Paranapiacaba, em plena sazão da democracia, colhendo os frutos da
liberdade pregada pelos republicanos de 1870, e estamos na realidade daquele sonho, vendo a Pátria engrandecida e fortalecida, próspera e feliz,
expandir-se sob o regime da República Federativa de 1889.
Estamos há 33 anos da Proclamação da República, e, comemorando o desfilar das figuras
dos patriarcas e dos apóstolos de nossa liberdade, sentimos em nosso peito a mesma chama ardente de civismo que vibrava naqueles corações.
Estamos em nossos dias, inaugurando o monumento que assinalará, no futuro, a
passagem da época atual.
Devemos a inspiração e a execução destes monumentos ao atual governo do Estado, em
cuja frente se encontra o notável estadista que os paulistas, na sua sabedoria e no seu patriotismo, elegeram para seu presidente, e veneram e
cultuam como a expressão máxima de suas aspirações. [Aplausos].
O engenho patriótico que delineou estes monumentos revela o amor ao passado e absoluta
confiança no futuro.
A sua execução foi ordenada, obedecendo a esse duplo fim: ensinar o povo a cultuar o
passado e a confiar no futuro.
O estilo destas construções obedece à arquitetura tradicional do Brasil.
Há no estilo destas construções uma atração indefinível, que nos transporta ao
passado; há névoas de sonhos contemplativos e um perfume pálido de saudades.
Estamos em plena serra, no cume da serra de Paranapiacaba, e estas varandas evocativas
descortinam campos, desenrolam e estendem praias, alargam horizontes, recordam o trabalho sadio das fazendas, a vida agrária, o noivado dos cafezais
na poeira branca da florada, o mugir do gado em recolhida, o canto da peonagem, as agachadas gauchas dos ginetes...
Há em torno a estes beirais andorinhas aos pares, tatalando as asas em tardes de
verão.
Os poiais destas janelas arrastam os espíritos ao incomparável prazer da abstração e
do sonho.
Tudo nestes monumentos é brasileiro, de um brasileirismo forte e hospitaleiro, largo e
sadio, que tudo recebe e nacionaliza, desde aqueles jesuítas que por aqui passaram, rasgando os pés nas pedras dos caminhos, com os olhos pregados
no clarão da fé, até os indígenas que os acompanharam; desde os governadores da capitania, até os presidentes da província; desde os arquitetos,
pintores, mestres e operários destas construções, até os presidentes de Estado que têm encaminhado o nosso progresso e feito a felicidade de S.
Paulo e a grandeza do Brasil.
Brasileiros têm sido e brasileiros serão todos os que trabalham pela grandeza e pelo
progresso do Brasil, todos os que sofrem suas dores, exaltam suas vitórias, lutam pelos seus triunfos. Brasileiros são todos os que compreendem e
amam o Brasil. [Aplausos].
Esta serra é o emblema da intrepidez, da coragem, do descortino dos paulistas. É o
símbolo da altivez e da sobranceria de S. Paulo.
Por ela, se fez a primeira conquista, quando os seus cocurutos, embiocados de neblina,
calafetavam o interior numa noite povoada de fantasmas; por ela, penetrou na América a civilização latina, quando, ao sol da cristandade, os seus
cumes se aureolavam de arneses de ouro e o céu, raiado de púrpura, refletia as planícies de além; por ela, os patriarcas de nossa emancipação
política conduziram Pedro I, e as trompas da liberdade retroaram na alvorada da nacionalidade, acordando a alma alvoroçada do Brasil ao grito de
Independência ou morte!; por ela, a escravidão, fugindo ao cativeiro, voltou à liberdade; por ela, São Paulo galvanizou o Brasil com os clarões
de sua fé republicana, com a mesma segurança com que fez a democracia e com a mesma firmeza com que mantém o império da ordem e da legalidade.
[Aplausos].
Ei-la, com a sua estrada de novo reformada e entregue ao trânsito público, a rememorar
e a encadear todas as fases de nossa vida, desde o descobrimento até a conquista do planalto; desde a formação de nossa raça, até a sua
independência; desde a independência, até a abolição e a República.
Ei-la, como uma coluna erguida ao nosso desenvolvimento material e moral, motivando
tudo, desde as suas fundações, desde a base sobre que se elevou o seu fuste, até o rendilhado luminoso e florido da civilização que se desabrocha no
seu capitel.
Ei-la, a explicar o presente pelo passado, como um ex-libris de nossa história,
aberto aos olhos dos que nos visitam.
Ei-la, monumento erguido à raça que conquistou e fez o Brasil, que dilatou e balizou
as suas fronteiras, que semeou e colheu as nossas liberdades, que lutou pelo nosso progresso e que se glorifica com a nossa civilização.
[Aplausos].
Ei-la, base e pedestal do gênio aventureiro, da iniciativa vitoriosa, do trabalho
fecundo, das realizações poderosas, da fonte genetriz e das energias criadoras dos paulistas.
[Aplausos].
Ei-la, entremostrando, na Cruz de quatro séculos, plantada no seu início, a figura de
Anchieta, que a levanta de braços abertos, para aquecer no seio de sua crença toda a gentilidade americana.
Ei-la, em seguida, como um rio que, engrossando, mudou de leito e nos faz adivinhar,
na epopéia das cheias que rolaram nas suas pedras, o veio abandonado do período colonial.
Ei-la, depois, a seiva do crescimento latejando em suas veias, na eclosão florescente
das artes, das ciências e das letras, durante a maioridade do segundo reinado.
Ei-la, finalmente, a assinalar o período da República, flor da civilização e do
progresso, desabrochando no alto de todas as conquistas, com as suas raízes de inviolável defesa fincadas no coração da terra que acalentou os
ideais supremos da democracia.[Aplausos].
Ei-la, ainda agora, pedestal do monumento de nossa raça, a mostrar ao Brasil a figura
moral irrepreensível do protótipo da nosssa energia, da nossa justiça, do nosso direito, da nossa cultura, da nossa consciência e das nossas
aspirações na pessoa do grande presidente de S. Paulo, que, ao dirigir os nossos destinos, vai norteando os destinos da Pátria e da República, para
glória da civilização americana. [Grandes e prolongados aplausos. O orador é vivamente
felicitado por todos os presentes].
Detalhe na contracapa do livrete com o discurso
de Júlio Prestes
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