Os primeiros caminhos do Litoral ao Planalto Paulista
Um rol de dúvidas, confusões, enigmas e mitos
Antonio Joaquim Andrietta (*)
1 - Apresentação
O objetivo principal deste breve ensaio é realçar a importância dos
primeiros caminhos de ligação do litoral ao planalto paulista, nos primórdios da colonização portuguesa no território paulista, ainda na primeira
metade do século XVI. Tornou-se necessário um repasse nos relatos históricos sobre o tema e sobre os fatos adjacentes [2],
com o auxílio de diversas fontes e o cruzamento de muitas delas, para proporcionar uma ordem cronológica, tanto no sentido temporal quanto racional.
Resguardado o respeito tributado ao esforço de pesquisa e divulgação, e à
liberdade de pensamento e expressão de muitos autores, alguns anônimos, as abundantes fontes em meio eletrônico (Internet) que tratam do tema
[3], lamentavelmente, em grande parte deslizam para imprecisões e incoerências,
quando não se limitam à pura e simples cópia, às vezes sem reconhecer a autoria original. De tal forma, avolumam-se as dúvidas e confusões sobre
aspectos já controversos do tema, ainda entremeado de enigmas e mitos.
Não se pretende aqui ter atingido a verdade histórica absoluta e cabal, porque se esta
houvesse cessaria toda a necessidade de produção de novos conhecimentos. A contribuição pretendida é, a partir dos relatos narrados, apresentar
outros aspectos e sugerir novas interpretações. Nada é definitivo, e muito ainda se pode pesquisar e acrescentar ao conhecimento de uma parte tão
importante da história e do desenvolvimento paulista e brasileiro.
Com a intenção de produzir um texto de leitura mais palatável e corrida, omitiram-se
nele as recorrentes referências bibliográficas, as mais relevantes apostas em notas ao final do texto, minimizaram-se as citações de autores e
substituíram-se notas de rodapé por breves observações entre parênteses no próprio parágrafo. Acredita-se que tais reparos, que se fariam a um texto
estritamente acadêmico, possam ser relevados em prol de um formato de cunho mais prático e, talvez, mais útil.
De todos os eventuais leitores, historiadores ou leigos interessados nos temas aqui
tratados esperam-se e acolhem-se as contraposições, críticas, sugestões e contribuições adicionais que se dispuserem fornecer.
2 - A trilha dos tupiniquins
Em inúmeros relatos históricos do período inicial da colonização do território
paulista pelos portugueses, encontram-se marcantes referências a um caminho que, partindo do litoral de São Vicente, transpunha os 800 metros da
escarpada serra, além da qual se iniciava o planalto de Piratininga.
É inegável que a portentosa serra - um paredão, ou a muralha que mais tarde
inspirou um excelente romance histórico com o mesmo título [4] -, tão próxima
ao litoral sudeste do território, exercesse forte atração à curiosidade dos colonizadores. O espírito aventureiro, a ânsia de encontrar as tão
decantadas riquezas minerais, ausentes nas terras litorâneas, impeliam-nos a desbravar novos espaços. Afeitos ao mar, os recém chegados não teriam
se arriscado terra a dentro se não tivessem como guias os indígenas.
Os europeus aportados em São Vicente, e que estabeleceram boa relação com os
habitantes locais, logo perceberam que estes se movimentavam constantemente por aquela serra.
Não foi difícil segui-los. No sopé da serra, ao qual chegavam navegando em canoas por
um sinuoso rio, encontrava-se um caminho demarcado, com largura de 1,80 metros (8 palmos), limpo e rebaixado cerca de 40 centímetros (2 palmos) em
relação ao nível do terreno em volta. Subindo em planos suaves, contornando os contrafortes dos morros, o caminho chegava ao topo da serra após
percorrer uma distância aproximada de 40 quilômetros (6 a 7 léguas). Ali chegados os viajantes ouviam os índios falando Paranapiacaba e, instigados
por eles, viravam-se entendendo o significado da palavra - "lugar de onde se avista o mar" - deslumbrados com a imponente visão da orla banhada pelo
Oceano Atlântico.
No planalto, logo adiante o caminho era interrompido pela confluência de dois rios,
que os índios denominavam Guarapiranga ao que vinha do Oeste e Jurubatuba (ou Jeribatiba) ao que fluía do Leste, ali se juntando e correndo para o
Norte.
A viagem por esse caminho não demandava mais que dois dias e, na descida apenas um,
como mais tarde, com surpresa constatou Martim Afonso de Souza que, já no dia seguinte à sua chegada à ilha de São
Vicente, ao desembarcar foi recepcionado por João Ramalho, acompanhado por grande comitiva, vindos do planalto de Piratininga onde viviam.
3 - A vivenda dos guainás no Planalto
Como pudera o degredado português saber, tão prontamente, da chegada do importante
emissário do rei de Portugal? As atividades exercidas por Ramalho e sua localização no planalto explicam o que não seria coincidência ou premonição.
Ramalho vivia na taba dos Guaianás, chefiada pelo cacique Tibiriçá, cuja filha Potira (ou Bartira) tomara como esposa e da qual já possuía vários
filhos e filhas. Tibiriçá dominava a região de Piratininga junto com seus irmãos Caiubi e Piquerobi, estes estrategicamente localizados o primeiro
na região sul, próximo à confluência dos rios Guarapiranga e Jurubatuba (região denominada de Ibirapuera e depois Santo Amaro) e o segundo na região
leste, às margens do rio Anhembi, ou Tietê (local chamado Uraraí e depois São Miguel Paulista).
A taba de Tibiriçá situava-se próxima à nascente do rio Tamanduateí, num local
denominado Guapituba (em terras do atual município de Mauá). A uma distância de menos de
duas léguas dali Ramalho instalara um posto de observação permanente de toda a orla de São Vicente (a atual Vila de Paranapiacaba, outro "local de
onde se avista o mar"). O interesse era acompanhar a entrada de navios na baía e no porto. Se fossem invasores, descia com sua tropa de portugueses,
índios e mamelucos para lhes dar combate (como o fez em outras ocasiões). Ou, então, seriam parceiros com os quais poderia traficar índios inimigos,
aprisionados em combates.
Ramalho, e outros degredados que o rodeavam, viviam em boa paz com os índios amigos,
cujos costumes que lhes apraziam logo absorveram, sem tentar lhes impingir os seus. Entretanto, o ritual de devorar os prisioneiros inimigos era
abominado por eles. De modo matreiro, acenando com os utensílios, ferramentas, armas e munições que podiam obter no escambo com os mercadores que
aportavam em São Vicente, foi fácil convencê-los de que era melhor vender os escravos do que comê-los apenas ritualmente, posto que aos próprios
índios deveria apetecer mais a carne da caça e da pesca, sua alimentação mais constante. A ausência de referências históricas de que, à época da
catequese dos jesuítas, estes duros padres tivessem que combater a antropofagia dos indígenas, pode ser indicativo de que aquele costume ritual já
se acabara.
O caminho da Serra de Paranapiacaba, trilhado por Ramalho, era continuado por este
após descer o Rio Jurubatuba em canoas de troncos de árvores (as pirogas indígenas). O Jurubatuba têm suas nascentes nas imediações de Paranapiacaba,
e recebendo outros afluentes menores, entre os quais o Bororé, fornecia caudal necessário à navegação fluvial tão primitiva.
Na década de 1920 as bacias hidrográficas do Jurubatuba e do Bororé (então chamados de
Rio Grande e Rio Pequeno) e a do Guarapiranga, junto com a reversão do rio formado por eles (o atual canal do Rio Pinheiros), afluente do Tietê,
foram aproveitadas pelo engenheiro norte-americano Asa Billings para formar o complexo de reservatórios que possibilitou a geração de energia
elétrica na Usina de Cubatão (UHE Henry Borden).
4 - O Caminho do Padre José
O caminho da Serra de Paranapiacaba, ou Trilha dos Tupiniquins, não pode ser (como tem
sido) confundido com outro caminho que, partindo da encosta da Serra do Mar em Cubatão, subia ao planalto vencendo os 800 metros da serra numa
distância de apenas duas léguas. Também conhecido por "Caminho do Padre José", alguns atribuem sua construção ao jesuíta José de Anchieta, aqui
chegado em 1553. Outros se referem àquela designação apenas por ser o caminho muito trilhado pelo padre em suas diversas missões, seja em prol da
fé, dos interesses da coroa portuguesa ou em defesa dos indígenas que catequizava.
O argumento dos que pretendem atribuir a construção desse caminho a Anchieta, por
motivo de que o outro caminho estava infestado pelos inimigos e ferozes índios Tamoios, seria facilmente derrubado pelo confronto de datas
registradas. Anchieta veio ao Brasil em 1553, com o segundo governador geral, Duarte da Costa, e o antigo caminho teria sido interditado por ordem
de Tomé de Souza, designado primeiro governador geral do Brasil em 1548, sob a alegação de obstar o comércio de espanhóis no porto de São Vicente,
burlando os direitos de alfândega cobrados por Portugal.
A ordem deveria ter sido seguida, até porque prescreveria a pena de morte aos
infratores. Porém, a alegação seria improcedente, pois o porto vicentino era dominado pelos portugueses, e os direitos de alfândega só seriam
burlados com a conivência destes que, provavelmente, também a burlariam. A estranheza surge da origem desse alegado comércio de espanhóis, que
estavam mais além, ao Sul de Cananéia, em respeito à linha traçada pelo Tratado de Tordesilhas, de 1494, que dividiu as terras do Novo Mundo entre
Portugal e a Espanha.
Mais aderente seria a ameaça dos Tamoios que, efetivamente, fizeram incursões para
tomar o planalto de Piratininga, quando já haviam sido fundadas as vilas de Santo André da Borda do Campo e de São Paulo. Os Tamoios (na realidade,
os Tupinambás), vindos do Rio de Janeiro, dominaram a região de Ubatuba, no litoral norte do território paulista. Não há qualquer registro de que
tivessem vindo pelo mar até São Vicente, de onde subiriam pelo caminho da Serra de Paranapiacaba para alcançar o planalto. Então, teriam vindo por
terra, entrando pelo lado leste da região de Piratininga.
Levantada a Confederação dos Tamoios (Tupinambás, aliados aos Goitacazes do Rio de
Janeiro e a parte dos Guainás de São Paulo), João Ramalho, com os caciques Titibiriçá e Caiubi, reuniu cinco mil homens, e os inimigos foram
rechaçados de volta a Ubatuba onde, em 1563, com a intermediação dos jesuítas Manoel de Nóbrega e José de Anchieta, foi selada a Paz de Iperoig.
5 - Qual dos caminhos foi o primeiro?
A razão da ameaça dos Tamoios para se abandonar o antigo Caminho de
Paranapiacaba é confirmada por Francisco Martins dos Santos [5], historiador
santista, mas este a situa bem mais tarde, em 1560, no governo de Mem de Sá, que em sua visita recomendara o uso do novo caminho. O mesmo
historiador refuta, peremptoriamente, a tradição de que o caminho fora construído por Anchieta.
Em citação textual de documento de D. Duarte da Costa, de 1555, mediante relato que
recebera do ouvidor-mor de São Vicente, à época Braz Cubas, o governador-geral comunicava ao rei de Portugal que um João Perez (ou Pires), senhor de
muitas posses, acusado pela justiça de haver matado com açoites um índio escravo, havia proposto a comutação da pena em troca da construção, às suas
expensas, de um novo caminho em substituição ao de cinco ou seis léguas que trazia muitos transtornos ao transporte de mercadorias.
Pela coincidência de datas com a época em que esse novo caminho teria sido construído
(1553/54) Martins dos Santos conclui, então, que o novo Caminho do Mar foi mesmo construído pelo tal João Perez. E supõe que este o fizera por
receio de ser condenado ao desterro em Bertioga, então acossada pelos Tamoios. Aqui, surgem dúvidas cruciais e, talvez, confusões.
O historiador descreve o antigo Caminho de Paranapiacaba, que denomina de "trilha dos
goianases", percorrido por Martim Afonso de Souza em 1532, na companhia de João Ramalho, e o situa na Serra de Paranapiacaba, com percurso fluvial
até o porto velho de Piaçaguera e, em terra, partindo do local onde se localiza a estação ferroviária do mesmo nome, subia aproximadamente pelo
trajeto da Estrada Velha da Inglesa, apenas declinando pouco mais para o vale do Uraraí (nome que os índios davam à região do Alto Tietê).
Por sua vez, o novo caminho é descrito como "...conhecido durante muitos anos pela
denominação popular de Caminho do Padre José, que deslocava inteiramente o percurso para o planalto, passando para alguns quilômetros abaixo, de
Piaçagüera para Cubatão (porto de Santa Cruz ou das Almadias) a penetração que se fazia alguns quilômetros acima do novo porto fluvial - muito
superior a este e muito mais racional, seja dito de passagem."
Na realidade, tais descrições parecem inverter a ordem dos caminhos. O que é descrito
como o primeiro, a partir de Piaçaguera subiria a Serra do Morrão, entre os rios Mogi e Perequê, fazendo aproximadamente o percurso que depois foi
utilizado pela ferrovia implantada pelos ingleses por iniciativa do Barão de Mauá, atingindo o planalto no local da atual Vila de Paranapiacaba, num
percurso mais curto e mais íngreme, vencendo o desnível de mais de 800 metros em cerca de duas léguas.
Já o segundo, seguindo o rio e subindo a Serra de Cubatão, daí atingindo o planalto
após um percurso de cinco a seis léguas, seria aquele descrito como a original "Trilha dos Tupiniquins", percurso mais tarde seguido pelo ramal
Mairinque-Santos da antiga Estrada de Ferro Sorocabana. Este ramal chega a Santos a partir da estação de Sarutaiá, em São Vicente, onde se interliga
com outro ramal mais antigo (de 1910) de Santos a Juquiá.
As citações de Martins dos Santos sobre as incríveis dificuldades da íngreme subida do
"Caminho do Padre José", narradas pelo próprio Anchieta e também pelo Padre Fernão Cardim, que fez a viagem de Santos a São Paulo de Piratininga em
janeiro de 1583, atingindo a vila depois de navegar todo o terceiro dia em canoa por um rio (descendo os rios Jurubatuba e o atual Pinheiros até a
foz com o Tietê, subindo por este e entrando pelo Tamanduateí até o Porto Geral no sopé da colina Colégio de Piratininga) não justificariam a razão
da mudança do caminho, seja pelas dificuldades de comércio, seja pela ameaça dos Tamoios.
Até aquela época, o maior tráfico para São Vicente era de escravos índios, e os
produtos que subiam ao planalto eram transportados nos ombros de escravos, pelo menos até que a construção da Calçada do Lorena (em 1788) permitiu a
passagem de tropas de muares.
Como já mencionado, a invasão dos Tamoios à vila de Piratininga se deu em 1562
(posterior à época da construção do novo caminho). Os indígenas do litoral norte paulista
possuíam também seus caminhos de subida ao vale do rio Paraíba do Sul (como se relata da trilha que a partir de Parati alcançava o atual município
de Cunha, mais tarde chegando até as Minas Gerais, a depois chamada Estrada Real), e é possível que tivessem subido ao planalto a partir de
Bertioga, chegando à região de Mogi das Cruzes, sesmaria concedida a Braz Cubas em 1561 (a trilha original poderia coincidir com o traçado da atual
rodovia Mogi-Bertioga).
Além disso, o cacique guaianá Piquerobi, agastado com o fato de Martim Afonso de Souza
ter expulsado de São Vicente o português Cosme Fernandes (o "Bacharel"), ao qual dera uma de suas filhas como esposa, afastara-se dos irmãos e dos
jesuítas, depois se unindo aos invasores da Confederação dos Tamoios. Piquerobi dominava a região de Uraraí, na porção leste do planalto de
Piratininga.
Se não fica bem evidenciada a razão da abertura do novo Caminho do Padre José, é certo
que este permaneceu, com diversas alterações de traçado e melhorias, passando até os dias atuais pelas sucessivas fases de Calçada do Lorena,
Estrada da Maioridade, Estrada do Vergueiro, Caminho do Mar e Estrada Velha do Mar (quando se construiu a moderna rodovia que homenageou o nome de
Anchieta).
6 - Existiria o Peabiru?
Entretanto, ainda não ficou esclarecido o verdadeiro motivo do abandono da antiga
Trilha dos Tupiniquins. Por que a teria interditado a ordem tão peremptória de Tomé de Souza? Aqui surge outro enigma dos primórdios da colonização
da América do Sul.
Desde o início da colonização do Sul do Brasil houve relatos de que os indígenas
possuíam caminhos demarcados, apenas conhecidos pelos iniciados e que, cruzando matas,
campos, rios e serras, ligavam os oceanos Atlântico e o Pacífico. A corrente mais incisiva descreve um caminho que partindo de São Vicente, ou de
Cananéia mais abaixo, e se estenderia até o Peru, atravessando os atuais Estados de São Paulo e Paraná, o Paraguai e a Bolívia, num percurso de mais
de três mil quilômetros. Este caminho teria, ainda, ramais que partiam do litoral dos atuais Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, formando
uma rede de mais de cinco mil quilômetros (há referências, também, a trilhas semelhantes nas regiões norte e nordeste do Brasil).
Muitos autores referem-se a esses caminhos indígenas pelo termo Peabiru,
traduzindo-o como "caminho da montanha do sol" e outros como "caminho do Peru". Para a época, seriam caminhos de grande facilidade de trafego e de
rápida comunicação entre seus mais longínquos pontos. Há a suposição de que os Incas o construíram (ou teriam ensinado a técnica a outros
indígenas). Atribui-se a Guilherme Schuch (1825-1908), o Barão de Capanema [6],
engenheiro e naturalista de grande reputação, a identificação da técnica construtiva desses caminhos com a dos Incas.
O historiador paulista Hernani Donato [7]
levantou o trecho "Botucatu" da trilha, a partir de Sorocaba e seguindo o curso do rio Paranapanema em direção ao Paraná. Uma equipe de pesquisa da
Universidade de São Paulo teria proposto o levantamento da trilha no planalto de Piratininga (não há relato de resultados, talvez devido às
dificuldades de pesquisa numa região em que a desenfreada urbanização pode ter apagado quaisquer vestígios). Desde 1970, diversas equipes de
pesquisadores de universidades paranaenses têm se dedicado ao levantamento e estudo de trechos da trilha, no território daquele estado, ao longo do
curso dos rios Tibagi, Ivaí, Piqueri e Iguaçu. Estas pesquisas apresentaram alguns resultados, como a descoberta de trechos conservados da antiga
trilha - infelizmente logo em seguida destruídos por máquinas agrícolas - e a coleta de diversas peças arqueológicas que remontariam à época dos
Incas.
7 - O Peabiru teria facilitado a penetração no território?
Os espanhóis foram muito rápidos em penetrar o interior bravio da parte do território
sul-americano que lhes coubera pelo Tratado de Tordesilhas e, nessa empreitada, tiveram os indígenas locais como guias.
Partindo de Santa Catarina, os espanhóis seguiram o caminho indígena para chegar ao
Paraguai e fundar Assunção (1537) e, logo depois, estabelecerem a estancía (similar às capitanias hereditárias do Brasil) do Paraguai, que incluía o
território catarinense, nomeando seu primeiro governador, Juan de Sanabria. O mesmo se deu com missionários jesuítas e franciscanos espanhóis. Ainda
em meados do século XVI instalaram-se missões jesuíticas no Paraguai.
Dos relatos mais antigos, consta a epopéia do português Diogo Aleixo, náufrago nas
costas da Ilha de Santa Catarina (atual Florianópolis) que, acolhido pelos índios carijós do local, foi por estes conduzido em expedição que, em
1525, atingiu o Peru (Cuzco, a então capital do Império Inca, anos antes que o espanhol Pizarro o fizesse navegando pelo Oceano pacífico). O relato
de Aleixo sobre a façanha e, principalmente, sobre a abundância de metais preciosos (ouro e prata) que encontrou naquelas terras, logo chegou à
corte portuguesa (e, certamente, à de Espanha também).
Esse fato deve ter se somado a outros que incomodavam Portugal em relação às suas
terras da América. Depois da expedição de Pedro Álvares Cabral, em 1500, a Ilha de Vera Cruz (logo a seguir mudada para Terra de Santa Cruz) esteve,
praticamente, abandonada pelo reino português. Não havia recursos humanos e materiais para dar conta das novas possessões em três continentes além
mar, e as Índias ainda representavam o foco prioritário de onde provinham valiosas cargas de especiarias.
Até a chegada de Martim Afonso de Souza, registraram-se apenas duas expedições
portuguesas ao Brasil. A primeira, de 1501 a 1502, foi comandada por Gonçalo Coelho e André Gonçalves, participantes da armada de Cabral, e veio a
mando do rei D. Manuel para reconhecimento da nova terra.
Dessa expedição fez parte o florentino Américo Vespuccio, companheiro da viagem de
Cristóvão Colombo à América. Exímio cartógrafo, coube a Vespuccio dar nomes (de santos venerados no calendário católico do dia do reconhecimento)
aos acidentes geográficos da costa nordeste e sudeste, desde o Cabo de São Roque até às ilhas de São Vicente e Santo Amaro (em tributo às cartas
geográficas elaboradas por Vespuccio, ou talvez por engano, em 1507 o cosmógrafo alemão Martin Waldseemüller atribuiu o nome América ao novo
continente).
A segunda expedição, de 1516, comandada por Cristóvão Jaques, visava o policiamento da
costa e combate aos piratas franceses que contrabandeavam o pau-brasil. A ação predatória dos franceses irritava o reino português que arrendara a
exploração do pau-brasil a uma companhia inglesa, e desse acordo arrecadava vultosas comissões.
Quando, então, D. João III decidiu enviar para cá seu amigo de confiança e reconhecida
competência, Martim Afonso de Souza, entre as intenções de iniciar uma efetiva colonização e afastar os invasores - empreendimentos que o intrépido
capitão logo pôs em ação - incluía-se uma disposição secreta, de avançar por aquelas trilhas indígenas e explorar as riquezas minerais nas terras
interiores sob domínio espanhol. Pois até essa disposição real o capitão procurou executar, sem sucesso porém. Chegando em Cananéia em 1531, antes
de aportar em São Vicente, enviou uma tropa de 80 homens armados em busca de ouro, subindo a Serra do Cadeado na região do Alto Rio Ribeira de
Iguape, mas em combate com os ferozes Carijós toda a expedição foi dizimada.
Seriam, então, os Carijós os guardiões de todo o Peabiru, aqui e nas terras do Paraná,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Do mesmo ramo dos Tupiniquins do litoral vicentino e do planalto paulista, a estes teriam ensinado apenas parte
da trilha. Esta poderia chegar a Cananéia, no litoral sul, como continuação daquela que chegava em São Vicente, ou poderia estender-se até lá como
um ramal da trilha que de Sorocaba alcançava Botucatu e depois seguia para o Paraná.
A Trilha dos Tupiniquins, tenha havido ou não a ordem governamental de interdição,
acabou esquecida e abandonada. Talvez o receio de Tomé de Souza fosse seu possível uso pelos espanhóis, penetrando as terras em disputa, mas é
evidente que a ordem não se aplicaria a eles.
Independentemente das trilhas indígenas, mais tarde os bandeirantes paulistas se
incumbiram de encontrar as tão decantadas riquezas minerais, desbravar o interior das terras do Brasil de Portugal e até fazer recuar mais para
Oeste o marco divisório de Tordesilhas.
Além do mais, a ligação litoral-planalto, pelos dois caminhos, havia cumprido seu
papel e perdeu importância. A determinante geográfica foi decisiva para que o desenvolvimento paulista se desse no planalto, em sua região central,
ao contrário de todas as províncias litorâneas (à exceção do Paraná que até 1853 pertenceu à província paulista).
O litoral não tinha riquezas minerais. A exígua faixa de terra entre o mar e a serra,
a baixa produtividade do solo e a umidade determinaram a falência da cultura canavieira na orla vicentina. O porto de São Vicente foi assoreado por
invasão do mar e, em 1624, a sede da capitania passou para Itanhaém que, por sua vez a perdeu para São Paulo em 1681.
Apenas quando findou o ciclo do ouro, já no século XVIII, e o açúcar do planalto
requeria melhor acesso ao porto de Santos, o caminho do mar passou a receber sucessivas melhorias, iniciando-se então o movimento inverso do tráfego
e do desenvolvimento, agora do planalto para o litoral.
8 - O mito religioso do Peabiru
Associados ao caminho do Peabiru há alguns mitos de
cunho religioso, em que se
misturam tanto as crenças indígenas quanto até as cristãs dos primeiros missionários que
se dedicaram à catequese, segundo autores dessas correntes históricas.
O Sumé é o mais antigo, e seria um personagem branco, de grande estatura, origem
desconhecida e poderes sobrenaturais. Entre outros ensinamentos, teria ensinado aos indígenas da costa brasileira o cultivo da mandioca e, ao tentar
introduzir outras crenças religiosas entre eles foi hostilizado de tal sorte que se retirou para o Oeste, em direção ao Peru. Nessa ocasião, usando
seus extraordinários poderes, à medida que caminhava, à sua frente ia se formando a trilha demarcada, de oito palmos de largura e dois de
profundidade, forrada com uma gramínea fina e leve.
Alguns associam o trajeto do caminho com aspectos astronômicos, visualizando no
zigue-zague da trilha a posição de determinadas estrelas de constelações da Via Láctea, visíveis nas latitudes do hemisfério sul. Conta-se que os
primeiros missionários teriam indagado aos indígenas quem construíra o Peabiru, e ao ouvir o nome Sumé, acreditando que somente forças sobrenaturais
o pudessem fazê-lo, entenderam Tomé, ou São Tomé, o Apóstolo de Cristo, que por aqui teria andado em trabalho de
evangelização, quinze séculos antes.
Outro mito é o yvy maraey (a "terra sem mal") ou yvyju miri (a "terra
perfeita"), o paraíso, que se encontraria além da "grande água" (o mar). Corrente entre os índios Guaranis do Paraguai e da Argentina, dos grupos
Mbya e Nandeva, eles partem em busca desse lugar mítico, e se fixam nas faixas do litoral atlântico, numa posição aparentemente ambígua: o mar
representa tanto um obstáculo a atravessar para atingir o alvo, como um ponto de chegada e, ao mesmo tempo, terminal, pois ali a vida vai acabar.
Este mito tem sido desenvolvido mais recentemente, por várias correntes
indigenistas, na procura de justificar as migrações desses grupos para o litoral brasileiro, onde constituíram aldeias de uma a duas centenas de
indivíduos, algumas delas reconhecidas (ou em processo de reconhecimento) como "reservas" ou "terras indígenas" (TIs) pelos governos federal e
alguns estaduais. Hoje, algumas dezenas dessas aldeias se espalham pelo litoral desde o Rio Grande do Sul até o Espírito Santo
[8].
No Estado de São Paulo essas migrações se iniciaram no começo do século XX
com os Guarani-Nandeva e, a partir de 1970 com os Guarani-Mbya, que convivem na maioria das aldeias, mas hoje os Mbyas superam os primeiros na
população total, que está em torno de 1.700 a 1.800 indivíduos [9].
Distribuídos em 14 TIs, três se localizam no município da capital do estado, sendo duas na região sul, no distrito de Parelheiros, próximas entre
si, e nas imediações de onde a Trilha dos Tupiniquins atingia o planalto de Piratininga vinda de São Vicente, e a terceira no Pico do Jaraguá, na
região norte. As demais estão localizadas no litoral, sendo seis na região da Baixada Santista, entre São Vicente e Peruíbe, três no litoral sul
(uma em Iguape e duas em Cananéia) e duas no litoral norte (uma entre Bertioga e São Sebastião e outra em Ubatuba).
Coincidência ou não, a maioria das aldeias dos Guaranis está no percurso, ou nas
proximidades, da Trilha dos Tupiniquins, embora não haja registros da existência desses grupos indígenas no território à época do início da
colonização portuguesa.
Os Carijós foram dados como extintos, no território paulista e nas
províncias do Sul antes do final do século XVII [10]. Porém, é possível que
parte deles tenha se refugiado em matas inacessíveis entre o Paraguai, a Bolívia e as respectivas fronteiras com o Centro-Oeste brasileiro, ou mesmo
na Argentina. A tradição oral das lendas indígenas, passadas de geração em geração, poderiam ter chegado aos atuais Guaranis, tanto para a busca da
"Terra sem Mal", quanto para o percurso pelas trilhas do Peabiru. Quiçá sejam eles os únicos que ainda possam indicar os vestígios atuais desses
antigos caminhos, se ainda existirem.
Santo André, novembro de 2004
Notas de fim de texto
[1] O autor é professor e
pesquisador universitário, estudioso da colonização, povoamento e desenvolvimento posterior do Estado de São Paulo.
[2] Utilizaram-se as fontes
históricas da Fundação Serviço Estadual de Análise de Dados - SEADE, no produto Perfil Municipal - Histórico, arquivos das estradas de ferro
e estações ferroviárias do Estado de São Paulo, arquivos das usinas hidrelétricas paulistas, em páginas disponíveis na Internet, e verbetes da
Encyclopaedia Britannica e Delta-Larousse.
[3] Nos sites de busca,
GOOGLE e YAHOO, páginas que atendem à procura por "Trilha dos Tupiniquins", "Caminho do Padre José", "Peabiru", "Calçada do Lorena", "Caminho do
Mar", "João Ramalho" e semelhantes.
[4] A Muralha, da
premiada escritora e segunda mulher eleita para a Academia Brasileira de Letras, Dinah Silveira de Queiroz (1910-1982), publicado pela Editora
Record. O livro também inspirou uma mini-série, com o mesmo título, exibida pela Rede Globo em 2000.
[5] A obra de Francisco
Martins dos Santos, História de Santos, publicada originalmente m 1937, foi republicada em 1986 junto com Poliantéia Santista, de
Fernando Martins Lichti, pela Editora Caudex de São Vicente.
[6] Filho de austríacos,
vindos ao Brasil com a Imperatriz Leopoldina, o Barão de Capanema foi contemporâneo e amigo do Imperador D. Pedro II, de quem seu pai foi preceptor.
Formado em Engenharia em Viena, o Barão conheceu pessoalmente e entusiasmou-se pelas obras dos naturalistas Martius e Humboldt que estudaram a flora
brasileira e, assim, tornou-se uma autoridade também em Botânica.
Considerado um dos grandes cientistas brasileiros do século XIX, o Barão de Capanema
implantou e dirigiu o primeiro serviço nacional de telégrafos. Também, presidiu uma Comissão que estabeleceu as fronteiras do Brasil com a Bolívia,
o Peru e o Paraguai, países onde esteve por longos períodos, daí seu conhecimento das construções e obras viárias da civilização dos Incas.
[7] Natural de Botucatu, o
escritor Hernani Donato divulgou seu livro Sumé e Peabiru: mistérios maiores do século da descoberta, publicado em 1997 por Edições GDR de
São Paulo. O mito de Sumé insere-se na teoria difusionista, com certo destaque no início do século XX, segundo a qual europeus teriam estado nos
territórios americanos em épocas pré-colombianas e influenciado a cultura dos povos que neles viviam.
[8] Maria Inês Ladeira,
ligada ao Centro de Trabalho Indigenista (CTI), organização não-governamental, tem diversos trabalhos sobre o povo Guarani, alguns deles com outros
autores. Neste tema foi consultada sua dissertação de mestrado em Antropologia, apresentado à Pontifícia Universidade de São Paulo, em 1992, e
intitulado O caminhar sob a luz: o território mbya à beira do oceano.
[9] Dados populacionais, das
etnias e das terras indígenas são disponibilizados pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
[10] Fundação Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na publicação Brasil 500 anos. |