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HISTÓRIAS E LENDAS DE S. VICENTE
São Tomé esteve aqui (1)

Carlos Pimentel Mendes

Um dos apóstolos de Cristo, aquele do "ver para crer", São Tomé protagonizou um dos raros mitos luso-brasileiros: o de sua própria estada na América do Sul. Sua presença no Oriente, desenvolvendo uma comunidade cristã naquela parte do mundo, já era conhecida no século VI, quando Gregório de Tours citou o fato em seus escritos. Logo sua fama chegou à Inglaterra, cujo rei Alfredo lhes mandou em embaixada, com muitos presentes, em 883, o bispo Sigelmus de Sheborne. Consta ainda que o alemão Henrique de Morungen, o Minnesinger, nascido por volta de 1150, teria ido à Índia para visitar a cidade de São Tomé, retornando com relíquias que pelo menos até 1899 foram conservadas no mosteiro de Leipzig dedicado ao apóstolo. Em 1470, a chegada dos portugueses João de Santarém e Pero de Escobar ao arquipélago africano defronte de Guiné Bissau, num dia 21 de dezembro (em que é comemorado o dia desse apóstolo), fez com que fosse assim batizado o local, onde hoje existe a República Democrática de São Tomé e Príncipe.

Em sua obra Visão do Paraíso, o escritor Sérgio Buarque de Holanda registra ainda que no século III outras relíquias do santo teriam ido para Edessa, sendo levadas em 1144 a Quios e em 1258 a Ortona (Itália). O autor continua:

Entrada do Monte Sagrado de S. Tomé de Meliapor, na Índia, onde o apóstolo teria morrido
Foto de Michael Teague, in A Aventura Portuguesa, Editorial Verbo, 1991, Lisboa, Portugal

Aberta em 1523 sua pretensa sepultura em Meliapor, nela se acharam ossos decompostos, um vaso de terra ensangüentada e um ferro de lança. Enviados alguns desses restos a Cochim, Goa e Basrein, ficaram em Meliapor ou São Tomé, a Madrasta atual, um fragmento de costela e o ferro de lança.

Da devoção do apóstolo na Índia, ao tempo da conquista portuguesa, dá larga notícia São Francisco Xavier. Em uma de suas cartas a Santo Inácio, refere que Martim Afonso de Sousa lhe mandara interceder junto ao Pontífice, por intermédio do fundador da Companhia, para que fosse concedida indulgência plenária em seu dia e nas oitavas a todos os que então comungassem, e aos que não confessassem e comungassem não lhes fossem dadas. "Y a esto se mueve el señor Gubernador por amor que la gente se confiesse y comulgue".

Pouco faltaria, em verdade, para que não apenas na Índia, mas em todo o mundo colonial português, essa devoção tomasse um pouco o lugar que na metrópole e na Espanha em geral, como em todo o Ocidente europeu, durante a Idade Média e mais tarde, tivera o culto bélico de outro companheiro e discípulo de Jesus, cujo corpo se julgava sepultado em Compostela.

Não foi certamente novidade, para os portugueses quinhentistas, a lenda da pregação de São Tomé Apóstolo na Índia, já largamente divulgada e mesmo canonizada, ou a da existência ali de seu verdadeiro sepulcro, mencionado em numerosas relações medievais do Oriente, como as de Marco Polo e Montecorvino, sem falar na famosa carta do Preste João. O que os poderia ter surpreendido ao desembarcarem naquela costa era a extensão do culto, que lhe devotavam inúmeras pessoas desde Bombaim até Madrasta, abrangendo o Ceilão, e ainda nas colônias de cristãos de São Tomé que iam até o Mar da China.

A própria devoção a suas relíquias, em particular a certos pelourinhos de barro tomado ao seu pretenso túmulo, e que sempre levavam consigo os fiéis, assim como os mouros e gentios, era bastante generalizada quando lá chegaram eles. Nem são de sua invenção as notícias das pegadas deixadas pelo santo em várias partes do Oriente, e que depois acabariam por ser vistas também no Novo Mundo.


Neste detalhe do mapa-múndi de Waldseemüller, de 1507, o topônimo "Serra S.Thome" no alto e a citação de "S.Vincete" na parte inferior do mapa, logo acima do Rio Cananéia.

A presença de São Tomé no Brasil já é registrada - pelo menos na cartografia - em 1507, no mapa-múndi de Waldseemüler, o mesmo que pela primeira vez cita como América a parte austral do continente. Lá está, um pouco acima do topônimo "S.Vincete", a citação "Serra S. Thome". Quando mais tarde o Brasil foi dividido em 15 capitanias hereditárias, uma delas foi a de Paraíba do Sul, dada em 28/8/1536 a Pero Góis da Silveira, sendo também conhecida como Capitania de São Tomé. Retornando as terras à Coroa em 1753, deu origem à maior parte do atual Estado do Rio de Janeiro.

Santuário de São Tomé de Meliapor, construrído por 
D. Nuno da Cunha para marcar o local da morte do apóstolo
Foto de Michael Teague, in A Aventura Portuguesa, Editorial Verbo, 1991, Lisboa, Portugal

A lenda de São Tomé se difundiu rapidamente, tanto que em 1516 já se falava em sua estada na costa do Brasil. A primeira versão conhecida da presença de um discípulo de Jesus em terras americanas, aliás, é a chamada Nova Gazeta Alemã, referente à viagem de um dos navios armados por Dom Nuno Manuel, Cristóvão de Haro e outros - que, a 12 de outubro de 1514 aportava, já de torna-viagem, à Ilha da Madeira. O autor da publicação recolheu a bordo a notícia de que na costa brasileira os indígenas tinham recordação de São Tomé, acrescentando: "Quiseram mostrar aos portugueses as pegadas de São Tomé no interior do país. Indicam também que têm cruzes pela terra adentro. E quando falam de São Tomé, chamam-lhe o Deus pequeno, mas que havia outro Deus maior (...) No país chamam freqüentemente a seus filhos Tomé".

Acreditava-se então que as terras americanas tivessem ligação direta com a Ásia, e na própria Gazeta lê-se que o piloto da nau portadora daquelas notícias - presumivelmente o célebre João de Lisboa, já acostumado à navegação para a Índia - não acreditava achar-se o cabo e a terra do Brasil a mais de seiscentas milhas de Málaca, acreditando que a terra do Brasil continua, dobrando, até aquela localidade. Assim, seria "bem crível" que os indígenas tenham lembrança de São Tomé, "pois é sabido que está corporalmente por trás de Málaca: jaz na costa de Siramath, no Golfo de Ceilão".


São Tomé, no seu santuário de Meliapor, na Índia
Foto de Michael Teague, in A Aventura Portuguesa, Editorial Verbo, 1991, Lisboa, Portugal

Reforçando a idéia, a existência das pegadas do santo impressas nas rochas, em pelo menos cinco lugares da costa brasileira, como citado por Simão de Vasconcelos: para o Norte de São Vicente; em Itapoã, fora da barra da Baía de Todos os Santos; na praia do Toqué Toqué, dentro da mesma barra; em Itajuru, perto de Cabo Frio; e na altura da cidade de Paraíba, a sete graus da parte do Sul, para o sertão. Frei Jaboatão, dos Frades Menores, registra ter visto essas pegadas no lugar do Grojaú de Baixo, sete léguas distante do Recife (PE). Ambos citam a existência de dois conjuntos de pegadas, uma delas de uma pessoa menor ou um menino, e o fato de serem tais rochas - e a água que delas jorrasse - milagrosas. O costume de raspar as rochas para formar relíquias teria feito desaparecer essas marcas, mas as rochas serviram inclusive de referência em documentos oficiais como as cartas de doação de terras.

É possível apontar muitas semelhanças entre o lendário Chimé conhecido pelos budistas da cidade sagrada de Angkor Vat, no Camboja, e o Pai Sumé dos indígenas brasileiros - diferentes formas de pronunciar o nome do apóstolo de Cristo. Em terras sulamericanas, a maior obra de São Tomé teria sido a abertura da grande estrada que liga o litoral atlântico brasileiro até o Paraguai nas vizinhanças de Assunção - a mesma estrada que se tornou famosa com as entradas de Aleixo Garcia, Pero Lobo, Cabeza de Vaca e outros aventureiros castelhanos e lusitanos nos séculos XVI e XVII, como cita Sérgio Buarque de Holanda:

Esquema construtivo de uma redução jesuítica em Guairá, no Paraguai 
Imagem do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo

Chamavam-lhe os do lugar Peabiru e Piabiyu, por outro nome Caminho de São Tomé ou do Pay Zumé, que assim também era conhecido o misterioso personagem.

Na versão que da abertura desta estrada nos conservou o Padre Antônio Ruiz de Montoya, da Companhia de Jesus, alude-se à fama corrente, em todo o Brasil, entre os moradores portugueses e os naturais que habitavam a terra firme, de como o santo apóstolo principiou a caminhar por terra desde a Ilha de São Vicente, "em que hoje se vêem rastros, que manifestam esse princípio de caminho [...], nas pegadas que [...] deixou impressas numa grande penha, em frente à barra, que segundo público testemunho se vêem no dia de hoje, a menos de um quarto de légua do povoado".

"Eu não as vi", pondera o missionário, mas acrescenta que à distância de duzentas léguas da costa, terra adentro, distinguiram, ele e seus companheiros, um caminho ancho de oito palmos, e nesse espaço nascia certa erva muito miúda que, dos dois lados, crescia até quase meia vara, e ainda quando se queimassem aqueles campos, sempre nascia a erva e do mesmo modo.

"Corre este caminho", diz mais, "por toda aquela terra, e certificaram-se alguns portugueses que corre muito seguido desde o Brasil, e que comumente lhe chamam o caminho de São Tomé, ao passo que nós tivemos a mesma relação dos índios de nossa espiritual conquista".

Os relatos de outros jesuítas castelhanos, alguns de época muito mais tardia, concordam no essencial com o de Montoya e parecem, não raro, calcados sobre as suas palavras. Assim escreve, por exemplo, o Padre Pedro Lozano, aludindo em particular à província de Taiaoba, situada junto às cabeceiras do Piqueri, no Sul de Guairá: "Por esta provincia corre el camiño de Santo Tomé, que es el que trajo el gloriosissimo apostol por mas de 200 leguas desde la capitania de San Vicente, en el Brasil, y tiene ocho palmos de ancho, em cuyo espacio se le nace una yerba muy menuda que le distingue de toda la demás de los lados, que por la fertilidad cresce á media vara, y aunque agostada la paja, se quemen los campos, nunca la yerba del dicho camiño se eleva mas, en reverencia sin duda de las sagradas plantas que la hollaron, y para testimonio de las fatigas que en tierras tales padeceria el apostol primeiro de la América".

Também no Paraguai, e em sua própria capital, há registros sobre as pegadas do santo marcadas em rochas. Desde Assunção, seguia o caminho cerca de 200 léguas até a lagoa chamada do Paititi, mais uma corruptela do nome Pai Tomé. Dali, São Tomé teria passado ao Peru, onde foi conhecido como Pay Tumé, com sua lenda se enriquecendo aos poucos, não só com a recordação dos ataques que sofrera no Oriente - agora transpostos para enfrentamentos de índios traiçoeiros nas selvas sulamericanas - mas com detalhes como o de ganhar sandálias comuns no Paraguai e sapatos com sola tríplice no Peru, ele que segundo as primeiras pegadas andava descalço...

Se no Leste do continente o santo tinha veste simples e talvez um menino por companhia, em terras espanholas ganhou "uma túnica inconsútil (N.E.: inconsútil = sem costura) de matéria desconhecida", tendo por companhia cinco ou seis índios. Assim por diante, cada ponto da história de São Tomé no Oriente encontra versão correspondente na América do Sul, como as maravilhosas aves que o acampanhavam e defendiam, ou os caminhos por ele abertos e cujas plantas demarcatórias serviam como remédio aos enfermos.

O bordão que deixou marcas milagrosas em rochas brasileiras se transformou em uma cruz de madeira milagrosa com resistência de pedra e agradável cheiro (avistada às margens do lago Titicaca) como a que se afirmava ter sido encontrada em seu túmulo de Meliapor, na Índia - e que, apesar de seu grande peso, que três cavalos mal poderiam puxar - teria sido transportada pelo apóstolo num percurso de mais de 1.200 léguas. Comenta mais Sérgio Buarque de Holanda:

 

Panorâmica da cidade de Diu, vista da Igreja de São Tomé, na Índia
Foto de Michael Teague, in A Aventura Portuguesa, Editorial Verbo, 1991, Lisboa, Portugal

Na atividade que, já a partir de 1538, e até 1546, ano em que morreu, desenvolvera na Ilha de Santa Catarina, no continente vizinho, no Guairá e até em Asunção, o Frade Bernardo de Armenta, comissário da Ordem de São Francisco, estariam, muito possivelmente, os acontecimentos históricos que podem ter servido para avivar a lenda. A alta reputação ganha por ele entre os indígenas teria sido partilhada e talvez herdada, até certo ponto, por outro franciscano que o acompanhou e lhe sobreviveu, Frei Alonso Lebron, o mesmo que Pascoal Fernandes iria aprisionar em 1548, levando para São Vicente. A este podia corresponder, na história, o papel atribuído no mito indígena ao companheiro de Sumé.

Sabe-se que Frei Bernardo percorreu, pelo menos uma vez, em toda a sua extensão, o caminho chamado de São Tomé quando acompanhou, à frente de uma centena de índios, o Governador Cabeza de Vaca, e que o tinham em grande acatamento aqueles índios. Posto que o não estimasse o adelantado, autor de sérias acusações ao seu comportamento - entre outras a de que, junto com Frei Alonso Lebron, guardaria encerradas em sua casa mais de trinta índias dos doze aos vinte anos de idade -, a boa conta em que era geralmente havido entre catecúmenos e gentios Carijó espelha-se no nome que todos lhe atribuíram de Pay Zumé, como a identificá-lo com figura mítica.

Consta que, ao chegar a Santa Catarina, onde aceita a oferta do feitor real Pedro Dorantes, que se propõe ir descobrir o caminho "por donde garcia entró", Cabeza de Vaca conseguiria realizar mais facilmente o intento de penetrar por terra até o Paraguai pelo fato de o julgarem os índios filho do comissário da Ordem de São Francisco, ou seja, de Bernardo de Armenta, "a quien ellos dizen Payçumé y tienen en mucha veneración", segundo se expressaria em carta o próprio Dorantes.

No que dirão mais tarde os guaiarenses aos missionários jesuítas, não parece muito fácil separar o que pertenceria ao franciscano, predecessor daqueles na obra de catequese, dos atributos do personagem mitológico celebrado pelos seus avós e a eles comunicado de geração em geração. Mesmo no nome dado ao caminho que, da costa do Brasil, procurava as partes centrais do continente, não se prenderia, de alguma forma, a lendária tradição a uma verdade histórica ou, mais precisamente, ao fato de o ter trilhado Frei Bernardo, que na imaginação dos índios da terra deveria ser figura mais considerável do que o adelantado?


Igreja de São Tomé na cidade de Diu, base portuguesa no lado ocidental da Índia
Foto de Michael Teague, in A Aventura Portuguesa, Editorial Verbo, 1991, Lisboa, Portugal

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