Cerca de 1920, o comissário de café Francisco da Costa Pires classificando o café das
latinhas
Foto: acervo de Carmen Cabral e sua avó Sylvia Pires Faria de
Paula,
imagem enviada a Novo Milênio em 4/6/2006
Os folclóricos corretores de café
Francisco de Marchi
Nos dias presentes, de agressiva
competição, não são muitas as criaturas propensas ao riso aberto e à galhofa. E dentro de uma mesma atividade profissional constituem elas, via de
regra, percentagem pouco significativa.
Todavia, numa rua de Santos, de traçado um pouco irregular, que no passado era servida por linha
de bondes (de burros), espremida entre velhos edifícios cujas fachadas de tanto assistirem à corrida do tempo ostentam ar de sonolência, e onde se
agitam profissionais de certa forma folclóricas, sempre se riu à larga, e o otimismo tem tido disparada prevalência sobre a inquietação e o
desânimo. Uma fonte de sublimação num panorama de trabalho, uma classe compactamente unida pelos interesses profissionais e ausência de maiores
preconceitos.
Contudo, numa confrontação entre a presente e passadas épocas, é nossa opinião que a alegria,
hóspede habitual da Rua XV de Novembro, foi mais espontânea e refinada no passado. Talvez porque os problemas domésticos,
inerentes ao exercício de qualquer atividade, não fossem, como agora, agravados por outros problemas paralelos, de ordem geral, abusivos, que têm
infelicitado o País. E é nessa minúscula fatia do centro da Cidade que vamos desfilar recordações de alguns corretores de café, cujos nomes, apesar
de afastados de nosso convívio por motivos diversos - falecimento ou aposentadoria - enriqueceram a memória da Rua XV.
Gostaríamos, se tempo e espaço nos sobejassem, de falar dos velhos profissionais que naquela época
- e já são corridos decênios - se revelavam perpétuos adolescentes, fidalgos no trato, cultores da alegria desatada e pura, tolerantes com as piadas
venenosas e de endereço certo e ligados aos colegas mais novos por um espírito de solidariedade comovente.
Desconfiamos que no café cru se escondem, insuspeitos, poderes mágicos que favorecem o devaneio e
a libertação de nosso EU. À força de aspirar-lhe o aroma, para bem classificá-lo - cafés moles? Zona da Mata? - o corretor experimentaria uma
sublimação mental... Será o café um haxixe de novo tipo, um inebriante que não entorpece, estimulador de nossas forças físicas e de nossa mente?
Sob o prisma afetivo, iremos de início reportar-nos a antigos corretores, através de seus
apelidos: Nenê Camisola (Ângelo Guerra), dono das corretagens nos negócios de entregas diretas, operações que hoje se encontram em
ponto morto; Nenê-sem-jeito, concunhado de Ângelo Guerra. E os Santarrita? Esse apelido fora dado a Carlos Vieira da Cunha, que já
mexia com café em 1902, pelo fato de ter ele trabalhado, anteriormente, com produtos da Santa Rita, empresa que comerciava com a água mineral do
mesmo nome. A alcunha passou de pai para filho e hoje iremos encontrar no Edifício Rubiácea, na Rua do Comércio, o
tradicional Escritório Santarrita, sempre dedicado a corretagens.
Pombinha do Telhado, alcunha dada a um corretor de físico delicado, magrela, com a
cabeleira realçada por um topete e que tinha tiques engraçados: sacudia a cabeça em curtos balanceios, como o fazem as pombas nos beirais dos
telhados, quando cortejam as companheiras.
E vão passando novos apelidos: Chico-Boca-de-Bagre, Braço de Macaco, alusão aos
longos braços do apelidado; Marreco e Marrequinho, este último conhecidíssimo no Paraná, onde abriram escritórios. E o nosso querido
Tamanco, aposentado, que ainda comparece na Rua XV, doente pelo Santos Futebol Clube? Tamanco foi galar-...
(N.E.: linha empastelada na composição original do texto)
sucedâneos das sandálias, noutros tempos de larguíssimo uso e que exibia na loja, como brasão, um enorme tamanco. Somente para falar nos
corretores da velha guarda!
Uma coisa era infalível: jogado um apelido, este se colava ao alcunhado como grude; nunca mais o
sujeito se livraria dele! Como um simples traço reflete caricaturalmente os tiques, defeitos ou personalidade da vítima, esta aceitava,
conformada, a nova referência, porque ela caía como uma luva, e o batismo se procedia num ambiente em que predominava a amizade. Daí por
diante, o apelido substituiria, na praça cafeeira, o nome real do corretor.
Há pessoas que, vindas de outros centros, distantes, e isto é uma religião, procuram em
Santos o corretor recomendado citando-lhe apenas o apelido; se referirem apenas ao nome constante na certidão de nascimento do indivíduo buscado,
talvez não cheguem até ele... A importância de um apelido! O atual presidente da República não registrou em
cartório o próprio apelido, legalizando-o?
Não esqueçamos a dureza do trabalho do corretor, nas ocasiões em que o mercado se tornava febril,
na busca de conclusão de negócios, portando um canudo duplo (12 ou 13 latas de amostra de café em grão, enrodilhadas por uma folha de papel
oleada ou cartolina), amparada em seu braço esquerdo, e, às vezes, mais um canudo suplementar, jungido ao outro braço.
Até aí, nenhuma novidade, porque hoje os canudos continuam a ser transportados da mesma
forma. Mas, antigamente, o corretor, esbaforido, banhado em suor e com as pernas bambas, era obrigado a galgar longas escadas, algumas em caracol,
porque havia poucos prédios servidos por elevadores. E faça-se a distinção entre os canudos acima descritos e os outros também assim
chamados, porém, constantes apenas de latas de amostras de café em grão oficialmente classificadas e certificadas, destinadas a comprovar o tipo e
qualidade dos lotes negociados nas entregas diretas, ou no termo (Bolsa Oficial de Café).
As alternâncias de bons e maus tempos nos negócios não se refletiam no comportamento social
dos corretores. Sempre ocorreram na Rua XV manifestações coletivas ruidosas, até mesmo peladas, jogos de futebol reunindo corretores de todas
as idades, improvisados em craques de futebol; minicarnavais, batalhas de confete; fanfarras apareciam para comemorar
conquistas da classe, ou vitórias de porte do Santos Futebol Clube. Clube que os corretores muitas vezes supriram de recursos, correndo listas na
Praça para conseguir donativos em dinheiro ou em espécie (sacas de café). Corretores que deram vida ao Clube de Pesca,
instalado em lugar paradisíaco, freqüentado por sócios e familiares e que reservava as sextas-feiras para os encontros "somente para homens",
libertando-os (ainda hoje) para as estripulias mais diversas...
Nos últimos anos, a alegria fervilhante da Rua XV adquiriu novas tonalidades. Alegria preocupante
para terceiros. Recorda-se o autor desta crônica de ter escapado, por um triz, de um banho monumental, à conta de água fria, quando lhe atiraram do
alto do Edifício Sulacap o conteúdo de uma lata de 20 litros. Várias pessoas ganharam, à custa desse ritual e publicamente, inesperada higiene
corporal...
Outra modalidade: engraçadinhos montavam uma bomba não detonante; enchiam um saco
com latas vazias e o atavam a uma corda, de comprimento calculado, de maneira que, atirado de um dos prédios o artefato se detivesse no ar, a
uns dois ou três metros do solo. Quem passasse pela área de guerra e fosse eleito para a experiência, não sofreria danos corporais;
experimentaria, entretanto, um pânico atroz, tal a barulheira provocada, ficando com a impressão de que o céu e todas as estrelas estavam desabando
sobre sua cabeça!
Rua XV, pedaço de chão rico em tradições, quartel-general dos corretores, que registrou períodos
áureos e críticos, mas que jamais exibiu clima de velório público! A alegria desinibida fez dessa rua sua morada predileta. E pelas evidências
oferecidas, em todas as épocas, dela não pretende afastar-se tão cedo!
Rua XV de Novembro em 1915
Foto: álbum
Exploração do Littoral - 1ª secção - Cidade de Santos á fronteira do Estado do Rio de Janeiro, da Commissão Geographica e Geologica do Estado
de S. Paulo, impresso por Typographia Brazil de Rothschild Co., S. Paulo, 1915.
Acervo da
Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio (SHEC) de Santos |