Página da revista Manchete de 1998, sobre o
quase-presidente e seus arquivos
Imagem publicada no
site Julio Prestes
Na revolução de 1930, que liquidou a
primeira República, quem traiu quem? Quem trapaceou, puxou tapetes, ganhou mas não levou, foi herói ou vilão, vitorioso ou derrotado?
Historiadores e interessados dispõem de uma nova fonte de informações para engrossar o que se
escreveu ou falou sobre os agitados anos vinte, em que foi tramada a derrubada da República Velha, os anos loucos que mudaram o mundo e levaram o
Brasil de cambulhada. Os arquivos de Júlio Prestes - presidente eleito em 1930 mas derrubado por Getúlio Vargas
antes de tomar posse - acabam de ser resgatados e doados ao Arquivo Estadual de São Paulo, após permanecerem mais de cinqüenta anos ocultos de
todos, até da família.
Os arquivos tinham sido emparedados, por ordem de Fernando Prestes Neto, filho de Júlio, num porão
da casa da Fazenda Araras, da família, depois de retirados, às pressas, do palácio do governo, para não serem apreendidos pelos revoltosos que
tomaram São Paulo.
Essa estranha maneira de proteger papéis, fotos e objetos fez criar a lenda de que no porão havia
sido enterrada uma fortuna em ouro, pertencente ao Estado de São Paulo. A lenda foi crescendo e apareceu gente disposta a arrombar o porão, em busca
do tesouro. Essa ameaça - e também a comemoração, este ano, do centenário de nascimento de Júlio Prestes - convenceram seus herdeiros a recuperar os
arquivos, antes que fossem destruídos pelos caçadores dessa arca perdida. Além disso, insetos, vermes, a umidade e o tempo começavam a destruir o
precioso acervo histórico.
Um dos sobrinhos de Júlio Prestes, o procurador federal aposentado, Gil Prestes Bernardes, começou
por convencer seus parentes a abrir mão do acervo, uma vez recuperado.
Comprometeu-se a selecionar os documentos, cartas, papéis particulares e oficiais, fotos e objetos
de valor histórico. E cumpriu, num trabalho de garimpeiro, terminando por pinçar uma notável coleção de testemunhos sobre um conturbado período da
história do Brasil.
Junto com os livros comemorativos, que agora saem do prelo, narrando a vida do quase estadista,
são estes testemunhos que espalham novas luzes sobre a agitada carreira de Júlio Prestes e seu tempo. Há mais luz, principalmente, quanto aos
antecedentes do movimento que fez baixar a cortina antes do final do último ato da presidência de Washington Luís,
cortando de cena, também, o papel confiado a Júlio Prestes como primeiro mandatário da nação.
A importância dos documentos é fácil de avaliar, quando se sabe que os vencedores sempre são
exaltados e os derrotados obscurecidos ou vilipendiados. Mas a vida do presidente eleito que não pôde tomar posse desmente a ampla campanha -
desenvolvida pelo violento DIP (N.E.: Departamento de Imprensa e Propaganda)
da ditadura Vargas - para riscar seu nome da História.
Júlio Prestes nasceu em 15 de março de 1882, em Itapetininga, interior paulista, e desde cedo
aprendeu com o pai, Fernando Prestes de Albuquerque, que viver é muito difícil e perigoso, como diria mais tarde Guimarães Rosa.
O avô e depois o pai fizeram razoável pé-de-meia, comprando cavalos e burros no Rio Grande do Sul
e trazendo-os para revenda na feira de muares de Sorocaba. Tornaram-se fazendeiros. Mas uma queimada destruiu toda a propriedade e o pai, carregando
a família no único bem que lhe restou, um carro e uma junta de bois, teve que ir para a cidade, Itapetininga, pedir a ajuda dos amigos e começar
tudo de novo.
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Nos serões do solar de Itapetininga, o menino Júlio vibrava com a narrativa dos embates
de 1909 |
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A primeira lição, sobre a precariedade dos bens materiais, estava aprendida. A segunda foi a de
como reagir diante da fatalidade. Mas outras lições, igualmente preciosas, iriam enrijecer seu caráter. Na política e na luta revolucionária é que
elas foram mais abundantes.
Júlio Prestes praticamente ingressou na vida política quando o pai foi eleito deputado estadual
pelo seu distrito eleitoral, no pleito para renovar o congresso paulista. O modelo político, então vigente no Brasil, provia os estados de
congressos, em lugar das atuais assembléias legislativas, e eles tinham um presidente, em vez de um governador.
O presidente em exercício, nessa ocasião, era Américo Brasiliense. Mas foi deposto e o congresso
dissolvido pelo movimento político-revolucionário que lhe moveram seus adversários, entre eles Campos Sales,
Bernardino de Campos e Júlio de Mesquita, diretor do jornal O Estado de São Paulo. As razões do movimento centravam-se no fato de Brasiliense
ter apoiado o golpe de estado desferido pelo marechal Deodoro, logo após a proclamação da República. Mas
Floriano Peixoto assumiu e as agitações recrudesceram.
Júlio Prestes mal atingia uma dúzia de anos em sua vida e já tomara o gosto pelas lutas políticas,
absorvendo por um processo de osmose o caráter revolucionário do pai. Embora tão distantes dos acontecimentos dos anos vinte, esses fatos definem
bem a formação de Júlio.
Com Floriano no poder, explodiu a luta armada no Rio Grande do Sul. Esse era tempo dos rudes
lutadores dos combates corpo-a-corpo, da lança, da espada, do facão, da escopeta e das cargas de cavalaria ligeira sobre o inimigo. Os canhões,
sobre rodas, carregados pela boca, puxados por juntas de cavalos, precediam, com seus bombardeios, a investida montada sobre os adversários, a carga
destes para rechaçar o ataque, depois de responder ao fogo dos canhões inimigos com outro canhoneio. Lutava-se cara a cara, olho no olho,
praticamente sem trincheiras.
E era sobre esses combates que o então menino Júlio Prestes ouvia falar, nas noites de serão em
casa, quando se comentava a revolta da Armada, comandada por Custódio de Melo, que planejava bombardear Santos com seus
navios e tomar a capital paulista para fincar nela seu governo rebelde. Sua estratégia era a de esperar e unir-se aos federalistas gaúchos que já
tinham chegado a Santa Catarina e continuavam a marchar, em direção a São Paulo.
Itapetininga, pela sua localização geográfica e pelo extraordinário fato de ser ligada a São Paulo
pelos trilhos da Sorocabana, interpunha-se no caminho dos gaúchos, que sobre ela marchavam; a lógica era tomá-la para transportar, por trem, tropas,
canhões e material de guerra e subsistência, encurtando tempo e distância.
Coube a Fernando Prestes organizar e assumir o comando da defesa da cidade. O filho, de longe,
acompanhava o movimento dos soldados e voluntários que acorriam para pegar em armas e aguardar os gaúchos, nos limites da cidade. Não chegou a ver
combates. Os rebeldes acabaram sendo derrotados e suas tropas se desorganizaram. Apenas uma coluna dispersa continuara o avanço, mas também foi
batida.
Com a vitória, Júlio viu, orgulhoso, o pai ganhar as honras de coronel do Exército pela sua
atuação em Itapetininga. O prestígio conquistado na defesa militar de Itapetininga não se esgotou com a patente militar. Cresceu ainda mais com ela.
O pai tornou-se diretor do antigo Partido Republicano Paulista, que praticamente dominava, em sua época, a política nacional. Desse posto à
conquista de mandatos de deputado e presidente de São Paulo foi um pequeno salto, impulsionado pela máquina política nas mãos do PRP.
Enquanto isso, Júlio formava-se em Direito, nas famosas Arcadas do Largo de São Francisco, de onde
saíam os melhores advogados do País. Dividir o tempo entre os estudos, as atividades literárias, os movimentos estudantis no Centro Acadêmico XI de
Agosto e a boêmia desvairada na garoa da São Paulo dos anos vinte fizeram-no esquecer, por um bom período, a luta revolucionária. Havia muita coisa
em que se integrar. O movimento modernista, após a célebre semana de 22, repercutia com grande ressonância pela cidade.
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Na revolução de 24, Júlio ajudou o pai, vice-presidente, a formar a resistência em São
Paulo |
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Amigo de poetas, artistas, escritores
e boêmios, Júlio também cometeu alguns poemas, sendo o mais conhecido Venâncio Aires, publicado e muito criticado. Logo, porém, voltou à
seriedade. Montou sua banca de advogado e, em pouco tempo, graças ao brilhantismo com que defendia e ganhava causas, chegou a ter vinte colegas no
escritório, trabalhando para ele.
Júlio, como tudo levava a crer, seguiu as pegadas do pai, candidatando-se a deputado. Ganhou e
levou. Foi no exercício do mandato que outra revolução iria estourar, em São Paulo, só que desta vez ele não ficaria como observador, como ocorreu
quando vivia o deslumbramento de sua infância, em Itapetininga. Foi um dos seus mais exaltados participantes.
Era o ano da graça de 1924, quando São Paulo gozava fartamente o luxo proporcionado pela riqueza
do café. Paulistas quatrocentões, aristocratas rurais viviam em permanente alegria, numa trepidante festa que parecia não ter mais fim, regada a
champanha francesa. Até para se deslocar entre São Paulo e o interior, onde estavam suas fazendas, ou para o porto de Santos, onde negociavam seu
café, a festa não parava. Prosseguia no interior dos opulentos trens de luxo, exclusivos, dotados de excelente bufê.
Todos se sentiam seguros. O dinheiro - moedas fortes como a libra esterlina, dólares ou marcos -
corria fartamente e confiava-se cegamente no poderio da Força Pública, adestrada por militares franceses. Essa força dispunha de material bélico -
incluindo uma força aérea com modernos aviões de combate - superior ao disponível nos quartéis do exército de São Paulo, a mais poderosa jamais
vista. Qual outra força militar estava em condições de desafiá-la? No momento, nenhuma.
Nem por isso, contudo, ela estava imune aos descontentes e aos socialistas, que eram muitos na
cidade que começava a se industrializar. Quando se deu pela coisa, a FP tinha sido infiltrada e entrava em fase de ser minada, interiormente, sem
que seu chefe, o então major Miguel Costa, da cavalaria, se desse conta do que ocorria.
Coisa semelhante acontecia nos quartéis do exército, onde respirava-se o mesmo clima de
insurreição que dominava o País, proclamado por numerosos setores parlamentares, mas desdenhado pelos situacionistas. Reclamava-se dos governos
viciados pelas fraudes eleitorais, que se sucediam na direção do País. Até que chegou o dia 5 de julho.
O general Abílio Noronha, comandante da 2ª Região Militar, foi surpreendido, nesse dia, pela
sublevação em quase todas as suas unidades. Pouco antes, ele havia sido alertado por um militar sobre a falta de armamentos e munição e,
ingenuamente, confirmou a deficiência, realizando um balanço geral a fim de pedir reforços ao Ministério da Guerra. Mal sabia ele que esse reforço
seria usado pelos insurretos, quando chegasse a hora H, marcada para aquele dia 5.
Mesmo assim, o general Noronha, militar dos velhos tempos, saiu e foi de quartel em quartel,
valendo-se de sua autoridade, para destituir no berro os oficiais rebelados menos resolutos e peitos do que ele, colocando em seu lugar gente de sua
confiança. Num dos quartéis, porém, topou com um oficial valente - que não se impressionou com as estrelas bordadas em suas dragonas e deu-lhe voz
de prisão, imediatamente cumprida. Assim o comandante do 2º Exército, sem a glória de uma batalha, tornou-se prisioneiro dos rebeldes por algum
tempo.
Com o Exército acéfalo e a Força Pública minada, os rebeldes passaram para a próxima etapa de seus
planos: o ataque ao Palácio do Governo, para aprisionar o então presidente Carlos de Campos e seus vice, Fernando Prestes, pai de Júlio. A primeira
tentativa não deu certo e foi rechaçada pela guarda do palácio. Mas depois começou o canhoneio, com peças de artilharia montada nos altos de
Santana.
De próprio punho, Júlio Prestes, que correu para o palácio para ajudar sua defesa, escreveu o que
foi a revolução de 24 em São Paulo, o caos em que a poderosa cidade mergulhou, as pilhagens, bombardeios, a retirada do governo dos Campos Elíseos
para o Palácio da Justiça, depois para o quartel dos bombeiros e, finalmente, para o subúrbio de Guaiaúna, onde foram parar o presidente Carlos de
Campos e seus secretários e tropas. O estado de São Paulo passou a ser dirigido, no que restava em mãos dos legalistas, do interior de vagões
ferroviários parados naquela estação da Central.
Escreveu, também, sobre as providências que tomou, quando ainda o governo estava nos Campos
Elíseos, pelo telefone e diante de todos que acorriam ao palácio (não existiam cabines telefônicas) para que seu pai, vice-presidente, que estava em
Itapetininga, organizasse outra resistência.
Washington Luís encontrava-se nas proximidades e os dois, com Ataliba Leonel, organizaram
batalhões patrióticos, formando a Coluna Sul, destinada a deter o avanço dos revolucionários que subiam do Sul e estavam no Paraná. Júlio Prestes,
depois, foi ao encontro do pai, combatendo a seu lado. Não havia mais cavaleiros de lança em punho e em seu lugar combatiam os soldados com moderna
artilharia, canhões automovidos, metralhadoras e fuzis. Mas nem por isso o modernismo era completo.
Enfrentando a precariedade das comunicações, o então capitão Estilac Leal, comandante dos
revoltosos em Jundiaí, ao ligar o telefone e pensando estar falando com um dos seus, entendeu-se sobre movimentação de tropas justamente com Júlio
Prestes, que o combatia à frente de um dos batalhões patrióticos que tomara Itu aos rebeldes. As tropas legalistas venceram, por fim, e os
revolucionários de São Paulo acabaram se juntando aos gaúchos, para com eles integrarem a épica Coluna Prestes, de Luís Carlos.
Amargas críticas foram feitas ao procedimento do presidente paulista Carlos de Campos, por ter
abandonado o palácio do governo e com isso - no entender do general Abílio Noronha, em seu livro Narrando a Verdade - ter facilitado a ação
dos revoltosos. Estava claro, porém, que a vitória de 24 (N.E.: 1924)
não debelara completamente os anseios de sedição e mudanças. Era apenas o começo de uma ação mais ampla, que voltaria a eclodir, mais cedo ou mais
tarde.
Contudo, em setembro de 1925, os delegados do PRP, preferindo desconhecer a situação periclitante,
realizaram sua convenção nacional, para escolha do candidato à presidência. Era a continuidade da política do café com leite, isto é, de paulistas e
mineiros, que se revezavam no poder. Nesse ano, chegara a vez de um paulista e Washington Luís, escolhido na convenção perrepista, com seu vice,
Melo Viana, foram eleitos em março do ano seguinte, sem sustos.
Eleitos e empossados. E antes de começar a governar, Washington Luís, diante das circunstâncias
especiais da política de seu tempo, acabou chamando, para criar, a cobra que iria picá-lo três anos depois. Célio Debes, biógrafo de Júlio Prestes,
conta em seu livro Júlio Prestes e a Primeira República como Washington aproximou-se de Getúlio Vargas e o que isso viria a custar - entre
outras coisas, também a carreira de seu biografado.
A posse dos eleitos seria no dia 15 de novembro e Washington Luís organizava seu ministério. Como
era de sua índole, desprezava as sugestões de seus correligionários, com sua altivez e sua autoridade de presidente. Privavam de sua companhia
poucos amigos, entre eles Ataliba Leonel, companheiro da resistência na Coluna Sul, e Júlio Prestes. Gilberto Amado contou ter sido encarregado de
levar algumas sugestões, sem sucesso. Na noite definitiva, só Ataliba e Júlio entraram no quarto do Palace Hotel do Rio onde estava o presidente.
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No governo de São Paulo, Júlio ordenou a prospecção de petróleo e a adoção do álcool
como combustível |
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Madrugada, Júlio deixa o quarto, muito
vermelho, e arrasta Gilberto pelo braço: "Venha, acompanhe-me à casa do novo ministro da Fazenda, para comunicar-lhe a indicação", disse.
- "À casa do Lindolfo Collor?", perguntou Gilberto.
- "Não. À casa de Getúlio Vargas", respondeu Júlio, azedo.
Estupefato, Gilberto caiu da poltrona onde aguardava o amigo, incrédulo. Conta, então, ter-lhe
vindo à memória a frase dita três anos antes, de modo claro, por Getúlio a Júlio Prestes, quando este era líder da maioria na Câmara Federal: "Não
poderei, de nenhum jeito, fazer parte da Comissão de Finanças desta casa (a Câmara), simplesmente por ignorar completamente essa matéria. Minha
especialidade é o Direito. Por conseguinte, se tiver que fazer parte de alguma comissão, esta terá de ser a Comissão de Justiça", disse-lhe.
Olhando Júlio diretamente nos olhos, Gilberto deixou escapar, atordoado: "Não pode ser ele!".
"Pois é", repetiu Júlio, furioso. "Mas Washington não prometeu um governo voltado justamente para a estabilização monetária e o combate à
inflação?", tentou resistir. "Pois é", foi a última resposta.
Para remediar, coube a Júlio Prestes, líder da Câmara e presidente da Comissão de Finanças, propor
um plano de estabilização monetária, através de um projeto de lei que começava assim: "Artigo Primeiro. Fica adotado, para o Brasil, como padrão
monetário, o ouro, pesando em gramas 900 milésimos de metal fino e 100 milésimos de liga adequada. Parágrafo primeiro. A moeda será denominada
cruzeiro e será dividida em centésimos. Segundo. Para a moeda divisionária, ficam adotadas a prata, o níquel e o cobre, na proporção
respectiva". Seguiam-se outras providências, destinadas a substituir, com a moeda metálica, a avalanche de moeda de papel impresso, dos mil-réis.
A oposição caiu de pau e Batista Luzardo foi o principal crítico do projeto, curiosamente aprovado
e posto em prática, após a revolução de 30, por Getúlio.
Nas eleições para o governo paulista de 5 de junho de 28, Júlio elege-se com 134.386 votos contra
881 dados a Rubião Meira, opositor do Partido da Mocidade, organizado às pressas por Marrey Júnior, dissidente do PRP.
Nesse tempo, ninguém imaginava a proximidade de uma crise financeira como a de 29 e São Paulo
tinha seus cofres abarrotados dos impostos sobre a produção agrícola e industrial como nunca fora vista. Júlio pôde tocar em frente seus planos de
governo. Resolveu o problema dos hansenianos que, naquele tempo, não tinham os recursos médicos de hoje e aterrorizavam as populações do interior
com suas ulcerações e deformações físicas, a troco de esmolas. Corria a lenda de que leproso encontraria cura após contagiar sete pessoas. Júlio
determinou a construção de leprosários.
Construindo o ramal Mairinque, da Sorocabana para o porto de Santos, rompeu o monopólio inglês da
São Paulo Railway. Visionário, em dezembro de 1927, promulgou a lei 2.219 para a prospecção de petróleo no estado, antecipando-se a Monteiro Lobato
e sua bandeira do ouro negro. Profeta, recomendou estudos para a adoção do álcool de cana como combustível, ou gasogênio, a fim de estancar a
impressionante massa de importação de petróleo.
Antes disso, cheirando pólvora revolucionária por todos os cantos, Washington Luís tratava de
colocar as barbas de molho, procurando colocar nas presidências dos estados, através da impressionante máquina política que dispunha, gente de sua
confiança, como Júlio Prestes.
Para a presidência do Ceará, ganhou Matos Peixoto; em Sergipe, Manuel Dantas; na Bahia, contra a
opinião unânime dos baianos, Vital Soares; no Rio de Janeiro, Manuel Duarte; no Paraná, Albuquerque Maranhão; no Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas,
retirado de seu ministério. no Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine e, em Minas, cortejava Artur Bernardes e Melo Viana, embora a presidência
estivesse com Antônio Carlos de Andrade, de quem não gostava muito.
Tratava, no fim das contas, de armar seu esquema para a sucessão e, ostensivamente, deixava claro
que essa se daria com Júlio Prestes. O problema, porém, ficou em banho-maria, até o início de 1929, quando suas pretensões começariam a naufragar
com a crise econômica mundial, que principiava a quebrar as mais sólidas instituições financeiras americanas e européias. A inflação brasileira, por
sua vez, continuava em estado hemorrágico. Não havia recursos para atender à lavoura, fermentando ainda mais os descontentamentos. Emprestar o quê,
se o Brasil seria o principal atingido pelo impacto do crack de Wall Street?
A coisa estava feia. E ficou ainda pior quando o presidente mineiro, Antônio Carlos, descontente
com a repetição de outra candidatura paulista para suceder Washington Luís, como bom político de Minas, resolveu mexer seus pauzinhos e bagunçar o
coreto. Se Washington Luís tem, mesmo, a intenção de fazer Júlio Prestes seu sucessor, então o negócio é fazê-lo abrir o jogo, pensou.
Até então, nem Antônio Carlos nem ninguém tinha conseguido fazer o obstinado e grave presidente se
pronunciar. Ele o faria apenas no dia certo, após cumprir três quartos de seu mandato, como era costume entre os presidentes desde Prudente de
Morais, o primeiro civil no poder.
É nesse ponto que cresce a coleção de correspondência trocada entre Júlio Prestes e seus
correligionários, encontrada em seus pertences. Na seqüência dos fatos, o presidente de Minas aproximou-se dos gaúchos, acertando com eles a
indicação de um candidato. Isso deveria precipitar um pronunciamento de Washington Luís. Mas este permaneceu calado.
O lance seguinte foi o de estreitar a aproximação com o extremo Sul e jogar, pelos jornais, a
disposição manifestada pelo presidente de Minas de que os mineiros apoiariam qualquer nome indicado pelo Rio Grande do Sul, mesmo apontado por
Washington Luís, desde que não se repetisse uma candidatura paulista, no caso, Júlio Prestes.
Esse era o ponto da birra política que fez nascer uma aliança inimaginável: mineiros e gaúchos no
cenário das eleições, unidos para o que desse e viesse. Ainda assim, o silêncio do primeiro mandatário permanecia sepulcral. Antônio Carlos acertou,
então, apoiar a candidatura do colega presidente gaúcho, Getúlio Vargas, acertando a vice-presidência, na mesma chapa, com outro presidente, o da
Paraíba, João Pessoa.
Escreveu, depois, a Washington Luís, relatando as démarches, mas ficando sem resposta.
Estas démarches tiveram início, na verdade, junto a Borges de Medeiros, o influente chefão do Partido Republicano gaúcho. Getúlio também
escreveu a Washington (que enviou cópia da carta para Júlio Prestes) confessando ter sido surpreendido pela indicação de seu nome. Mas, como homem
de partido, aceitaria as decisões dos republicanos de sua terra. Pedia a amizade do presidente e deixava-o à vontade para o encaminhamento da
sucessão.
Antônio Carlos, em outra carta ao presidente, justificou-se por ter precipitado os acontecimentos.
A resposta, entre manifestações de cortesia e cavalheirismo, tanto para um como para o outro, foi lembrá-los de que outros estados tinham que ser
ouvidos e que a grande maioria inclinava-se pelo nome de Júlio Prestes e, para vice, Vital Soares, presidente da Bahia. Uma outra aliança política,
a do café com coco.
Tudo era comunicado a Júlio, em cartas ou telegramas. A política fervia além do esperado. No eixo
gaúchos-mineiros, através de um pacto formal, nasceu a Aliança Liberal. No Congresso e na imprensa, os debates se exaltaram. Oposicionistas
procuraram até entre exilados no exterior, de outras revoluções contra Epitácio Pessoa e
Artur Bernardes, nomes para engrossar suas fileiras. Em suas cartas, Júlio diz que até Luís Carlos Prestes, o
"político maldito", chegou a ser contatado, mas não quis embarcar na canoa, que achava furada. Cada lado cerrou fileiras, com o que tinha e podia.
O governo mantinha-se confiante e
Júlio desdobrava-se em sua campanha e em aparar as setas desferidas pelos adversários. Em carta, contou ao presidente ter acertado com os jornais
mais influentes uma defesa cerrada do governo central, enquanto durasse a ebulição dos acontecimentos. O desdobrar dos fatos, porém, iria abalar a
estrutura presidencial de Washington Luís. No recinto da Câmara, no Rio, um parlamentar esqueceu os compromissos de cortesia e decoro e, num momento
de total privação dos sentidos, sacou sua arma e mandou um rebite no peito de um nobre colega que o exasperara, pertencente à maioria. Logo depois,
em Princesas, no interior da Paraíba, ecoaram gritos de rebeldia contra o governo estadual e peixeiras e paus-de-fogo foram empunhados nas ruas.
Quase ao mesmo tempo o próprio vice-presidente da República, Melo Viana, viu-se envolvido num conflito em Montes Claros, Minas, de onde saiu ferido
e carregado às pressas.
Mas, entre mortos e feridos, Júlio Prestes e Vital Soares levaram a melhor, com mais de um milhão
de votos contra os 700 mil dados a Getúlio Vargas e João Pessoa. Os situacionistas exultaram, no meio do cerrado fogo cruzado de acusações de
fraude, que estouraram de todos os lados, principalmente de Minas, Paraíba e Rio Grande do Sul, naturalmente.
Prometia-se que a coisa não ficaria impune. A dupla que perdeu as eleições, sentindo-se
prejudicada, prometeu troco. Quando o congresso, renovado, instalou-se em maio para reconhecer deputados e senadores eleitos, a maioria saiu para a
forra, rebatendo as acusações de fraude. Negaram reconhecer toda a bancada da Paraíba - logo essa! - e boa parte da de Minas.
Júlio Prestes, presidente eleito, insistia com seu alfaiate para caprichar em seu fraque e
recomendava ao seu chapeleiro que fizesse a melhor cartola possível, para a viagem que faria ao Velho Mundo, onde seria recebido com as honras
devidas a um presidente do Brasil, por reis, rainhas, príncipes e colegas de outras nações.
Viajaria, também, aos Estados Unidos,
onde seria recebido pelo presidente Herbert Hoover e ganharia a medalha da Ordem do Sino da Liberdade, na Filadélfia, em cerimônia solene. Era
imperioso prosseguir os programas afetos a um presidente eleito, que deveria ostentar uma aparência serena, segura e altaneira.
Na intimidade dos hotéis, porém, Júlio mantinha-se informado de tudo que se passava no Brasil.
Participava diretamente dos acontecimentos, orientando seus assessores e correligionários, para sufocar ressentimentos ou atrair exaltados do lado
contrário para as linhas da situação.
Mas a coisa voltou a pegar fogo quando, por motivos que nada tinham a ver com política (dizem ter
sido passionais), um nordestino exaltado acertou a tiros outro figurão da República, justamente João Pessoa, companheiro de chapa de Getúlio.
Em política, todo cadáver vira um estandarte de luta. E justamente nessa ocasião, para complicar
ainda mais a situação, foi desfechado um golpe militar na Argentina, derrubando o governo e dando uma boa idéia para os descontentes e derrotados
nas eleições.
O certo é que a morte de João Pessoa deixou os vitoriosos completamente desorientados. Quem
pensava em outra revolução, deixou de pensar e começou a agir. Virgílio de Melo Franco e Batista Luzardo se apressaram a procurar quem estava
disposto a engrossar fileiras.
Chegaram até Epitácio Pessoa, Artur Bernardes e Antônio Carlos, de Minas. Este último hesitava. os
dois encontravam-se com um grupo de respeito: Oswaldo Aranha, João Neves da Fontoura, Flores da Cunha, Lindolfo Collor, Maurício Cardoso e o próprio
Getúlio. Alguns passaram a correr listas, levantando fundos para a revolução. Outros, mais práticos, encomendaram armas modernas à
Tchecoslováquia.
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"Os de 30 chegaram ao poder não pela vitória legítima, mas levados pela taraição e pela
covardia" - Júlio Prestes |
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Oswaldo Aranha conseguiu um aliado brilhante e eficiente; nada menos do que o poderoso chefão
gaúcho, Borges de Medeiros. Este partiu logo para usar seu prestígio na área militar. Juarez Távora, do Norte, mandou avisar que estava pronto. Em
Minas, Aristarco Pessoa - irmão de João Pessoa - conquistou, para a causa, Cordeiro de Farias e Nery da Fonseca, de seu estado-maior. Em Porto
Alegre, o então tenente-coronel Góes Monteiro assumiu a chefia geral do Exército e levou com ele João Alberto e Estilac Leal. Tudo proto,
organizado, combinado, sob controle. Dia D: 3 de outubro de 1930.
No Rio Grande do Sul foi fácil. Em Minas, foram precisos cinco dias de lutas. Os governos
catarinense e paranaense foram depostos pelos militares desses estados, que aderiram. Norte e Nordeste não ofereceram resistência. Briga, mesmo, só
em São Paulo, Rio, Bahia e Pará. Washington Luís mantinha-se firme. Estava certo de que os gaúchos, com Góes Monteiro à frente, seriam barrados em
Itararé, limite entre São Paulo e Paraná.
Mas a batalha ficou no desejo. A infiltração foi geral, em todos os escalões, até mesmo entre as
forças que davam - ou deviam dar - segurança ao presidente. Tramava-se, na verdade, a sua deposição.
Na madrugada do dia 23 de outubro, alguns generais resolveram virar a mesa presidencial. Eram
Tasso Fragoso e Mena Barreto que, com o almirante Isaías Noronha, logo formaram a famosa junta militar para assumir o governo.
O presidente, ainda assim, não capitulou tão facilmente. Só depois que o cardeal Leme o procurou,
ponderando que a situação era grave e poderia morrer muita gente, é que ele concordou em sair do Catete. Saiu apoiado em sua bengala, solene, grave,
embarcando na limusine que o levaria ao porto e, daí, para o exílio.
A Junta Militar ficou à espera dos revoltosos. Quando os gaúchos terminaram de amarrar seus
cavalos no obelisco da Avenida Rio Branco, no Rio, os militares entregaram, de mão beijada, para Getúlio, o governo do país.
As cartas, dos arquivos de Júlio Prestes, que contam assim o epílogo do regime instituído em 1889,
contam, também, o que se passou a seguir em São Paulo, até então a "Londres das neblinas frias", de Mário de Andrade, que mergulhava na escuridão da
ditadura.
"A situação modificou-se rapidamente - diz -, a ponto de perdermos até a polícia, que aderiu ao
movimento e deixou a cidade entregue à desordem e totalmente desguarnecida. Assim mesmo, nos mantivemos no Campos Elíseos (sede do governo) até as
3h50 da madrugada de 25 de outubro, quando nos retiramos para o consulado inglês, porque já não dispúnhamos nem da guarda do palácio. Fomos para o
consulado porque não estava na posse do governo paulista, não tinha chegado a hora de assumir a presidência da República e não tinha mais residência
em São Paulo, estando em gozo de licença.
"Do consulado, recebi passaporte e vim para Paris, onde
me encontro até nova deliberação ou até que cheguem recursos para me movimentar para outros lugares. Não era possível organizar a reação, no momento
da vitória da revolução. Esta reação seria esmagada onde quer que aparecesse e os revoltosos cantariam uma vitória que nunca alcançaram. Fomos
vitimas da traição de que ninguém se livra, mas eles não foram vitoriosos. Chegaram ao poder, mas levados pela traição e covardia".
Depois, em seu exílio, encontrou antigos adversários da revolução de 30, amargando a mesma sorte,
como Artur Bernardes, Batista Luzardo e outros - inclusive Euclides Figueiredo, pai do atual presidente João
Figueiredo, exilado depois que a revolução paulista de 32 foi vencida.
Júlio Prestes voltou ao Brasil em 1934. À política, só retornaria bem mais tarde, em 1945, após a
derrubada de Getúlio, quando se empenhou na candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes. Com um sorriso de vitória nos lábios, que manteve até o dia 9
de fevereiro do ano seguinte, quando morreu, internado no Sanatório Esperança, em São Paulo.
O final de uma vida, já de volta à
pátria: duas de suas últimas fotos, na fazenda paterna...
Foto e legenda: reprodução de página da
revista Manchete publicada no
site Julio Prestes
... e na campanha do brigadeiro Eduardo
Gomes, em 1945
Foto e legenda: reprodução de página da
revista Manchete publicada no
site Julio Prestes
Júlio foi muito popular, antes que o
Estado Novo o atirasse no ostracismo. Na foto, a campanha vitoriosa de 1929 em São Paulo
Foto e legenda: reprodução de página da
revista Manchete publicada no
site Julio Prestes |