[...] a 6 de setembro de 1893, estalaria
no Rio de Janeiro a chamada "Revolta da Armada", sob a chefia do almirante Custódio de Melo, cujo republicanismo sempre deixara dúvidas aos
republicanos. A estabilidade e a consolidação da República iriam ser postas à prova, e o destino reservava a Santos mais um grande papel na defesa
do regime, que ela, tanto quanto o Rio de Janeiro e S. Paulo, ajudaria a instituir no Brasil.
O cruzador República forçando a barra de
Santos,
em pintura a óleo de Batista da Costa, no acervo do Museu da República, no Rio de Janeiro
Foto em Grandes Personagens da Nossa História, vol. III, 1973, ed. Abril Cultural, S.
Paulo/SP
REVOLTA DA ARMADA E
FIDELIDADE DE SANTOS À REPÚBLICA
O bombardeio da Cidade
Governava São Paulo o Dr. Bernardino de Campos, quando, a 8 de setembro de 1893,
chegou um telegrama do Marechal Floriano Peixoto:
Dr. Bernardino de Campos - Presidente de S. Paulo. Consta que os revoltosos
pretendem estabelecer base de operações em Santos. Convém, por isso, providenciar com urgência para que todo gênero alimentício, que estiver a bordo
dos navios de comércio nacionais, seja desembarcado e recolhido a depósitos seguros. Nesse sentido vão ser expedidas ordens ao Inspetor da
Alfândega. Se for possível conseguir a mobilização de alguns batalhões da guarda-nacional, de confiança, para reforçar a guarnição de Santos, será
muito conveniente. Na impossibilidade, lembro-vos, como medida de ocasião, a formação de um ou dois corpos de voluntários, organizados com antigos
elementos militares ou com gente de toda confiança. Devemos nos precaver contra surpresas que os inimigos da República lhe preparam. Saúdo-vos.
Floriano Peixoto.
Santos estava de novo em foco. É inútil dizer que o marechal presidente não acreditava
nos paulistas e em São Paulo. Sondava-os. O tempo se incumbiria de lhe demonstrar que a fidelidade dos santistas e de São Paulo, não a ele,
presidente, mas à própria República, que haviam construído, seria a sua própria vitória ou de ambos.
Um passo dos paulistas e dos santistas, em favor de Custódio de Melo e
Saldanha da Gama, teria sido a vitória da Revolução, e, decerto, o retorno ao regime abolido em 1889, visto que não acreditamos, nem o povo então
acreditava, na sinceridade do parlamentarismo de Custódio de Melo. Não haveria apelação, e isso faz com que cresçam, na História, a fidelidade de
São Paulo e da cidade de Santos, duas coisas distintas, numa só página memorável de fidelidade ao ideal e de modo nenhum à conveniência ou sequer à
simpatia [1].
Em conseqüência do telegrama de Floriano, Bernardino de Campos fez descer
para Santos, imediatamente, todo o 2º Batalhão, para reforçar o 3º que aqui já estava acantonado, expedindo munição, metralhadoras e outros
materiais bélicos, a fim de preparar a defesa da cidade [2].
Novo despacho do Marechal Floriano trazia notícias positivas sobre o intuito que
tinham os revoltosos, de se apoderarem da cidade e fazerem, aí, sua base de operações. Afirmava que o capitão-de-mar-e-guerra Frederico de Lorena
saíra barra a fora, apoderando-se do paquete Itaipus e seguindo a rumo de Santos, no intuito de proteger a revolta, que, segundo pensavam os
revoltosos, deveria estourar, simultaneamente, em São Paulo.
O coronel José Jardim transferiu para Santos a sede do Distrito Militar e assumiu o
comando das tropas em operação no litoral. Seu estado-maior compunha-se do major João Baptista de Azevedo Marques, secretário; tenente Gasparino de
Castro Carneiro Leão, ajudante-de-campo; e alferes Antonio de Lacerda Guimarães, ajudante-de-ordens. O primeiro ato do coronel foi nomear, de acordo
com o presidente do Estado, seu colega coronel Ramalho para o comando da Praça Militar de Santos, que desde aquele instante ficaria criada.
Do coronel Ramalho partiu, então, a primeira ordem de distribuição de tropas pelos
pontos que julgava mais acessíveis ao inimigo e mais vulneráveis. Na Ponta da Praia colocou ele um contingente do 3º
Batalhão, sob o comando do capitão Benedicto A. de Godói; em Outeirinhos, uma força de 20 praças com o alferes Heitor
Guichard. Para a Fortaleza da Barra Grande foi enviado, sob o comando do alferes Dourado, o contingente do 22º Batalhão do
Exército, que se achava na cidade. No Alto da Serra (Paranapiacaba) já estava o tenente Henrique Paraguassu dos Santos com uma força numerosa. Os
serviços de fiscalização no mar, fora da barra, foram entregues aos rebocadores Mauro, Lange e Santos, contratados pelo governo
para esse fim.
O comandante e a oficialidade do cruzador Centauro, que se achava no porto em
serviço quarentenário, declararam, em conferência com o senador Bueno de Andrada e os deputados Álvaro de Carvalho e Carlos Garcia, que se manteriam
fiéis ao governo constituído e que aquele vaso de guerra estava pronto para entrar em ação, no momento oportuno e quando lhes fosse determinado.
Vários outros corpos de tropas, requisitados ou não, desceram para Santos, completando
a defesa da cidade, segundo o desejo manifestado pelo presidente da República. As notícias do bombardeio impiedoso e impatriótico da capital
brasileira, pela esquadra revoltosa, provocaram os mais vivos efeitos morais e psicológicos sobre o povo e também as mais acerbas controvérsias
políticas na cidade, que não perdia, no setor das elites, sua idéia e concepção de soberania e liberdade, apesar do estado de guerra em que se
achava.
Os antiflorianistas, numerosos em Santos, àquela altura, ainda teimavam em não ceder
em seus direitos de opinião, negando-se ao apoio total às tropas de Bernardino de Campos e Floriano Peixoto, fenômeno de consciência e patriotismo
que só ocorreria após o bombardeio de Santos pelo capitânia da Armada revoltosa, o couraçado República, quando então, acordando, formariam um
só corpo e um só movimento no sentido da preservação da conquista republicana, que sentiram realmente ameaçada, mais do que a própria cidade.
O coronel Ramalho não confiava na guarnição do Centauro, que estacionava na
Ponta da Praia, próximo aos dois fortes santistas, o da Barra Grande ou Santo Amaro e o
Forte Augusto. A esse respeito já telegrafara, mesmo, ao presidente do Estado. Sua desconfiança de militar deveria
confirmar-se naquele dia. Num gesto covarde, a guarnição daquele navio de guerra, que fizera juramento de fidelidade, abandonou-o, embarcando como
trânsfugas nos rebocadores Mauro e República, que saíram barra a fora, por serem considerados amigos e insuspeitos pelos comandos das
duas fortalezas.
Mas, não ficara nisso a ação dos tripulantes do Centauro; antes de fugir,
processaram o afundamento do navio, abrindo-lhe as válvulas de flutuação. O capitão do Centauro estava em terra, doente, e ficara em seu
lugar o tenente João F. dos Reis Júnior, que levou a efeito a traição ou defecção, como quer que seja considerado o seu ato, à luz do direito de
opinião e não apenas da disciplina militar. Até mesmo o juramento feito poderia ter sido levado à conta de ato forçado ou coação.
Foi grande o alarme causado ao povo por aquela fuga e
aquele afundamento. Incrédulos, em grande número, foram até a Ponta da Praia, a fim de convencer-se do fato, que julgavam mero boato alarmista, e lá
tiveram sob profunda impressão a dolorosa confirmação do acontecimento [3]. As
pontas dos mastros do Centauro ainda emergiam das águas, atestando a inconsciência da maruja desertora. Alguns ainda assistiram à submersão,
lenta e total, do navio, consumada às 7 horas e 10 minutos da manhã de 9 de setembro [4].
À noite, o povo santista realizou um grande meeting
(N.E.: reunião, em inglês) de protesto e solidariedade patriótica. Depois de terem usado da
palavra diversos e eloqüentes oradores, foi aprovada a seguinte moção:
"O povo de Santos, defensor incondicional das instituições republicanas, ante a
dolorosa emergência que atravessa a Pátria brasileira, afirma seu apoio leal e dedicado para defesa da honra nacional e para a manutenção da ordem,
condenando patrioticamente o movimento revoltoso de uma parte da Armada, e assegurando a sua adesão sincera ao governo legal, presidido pelo bravo
Marechal Floriano Peixoto".
O comandante do distrito militar, ao organizar a defesa de Santos, dividira o seu
litoral em três linhas, confiando a primeira ao coronel Francisco Xavier Batista, e a terceira ao coronel Joaquim de Sales Torres Homem. A primeira
linha compreendia do Paquetá à Ponta da Praia; a segunda deste ponto ao José Menino (divisa
com S. Vicente) e a terceira todo o litoral vicentino, da divisa a Praia Grande, com postos e observação na
Ilha Porchat e no célebre morro Xixová. As forças que guarneciam estas três linhas compunham-se, naquele tempo, de
1.500 homens das diversas armas, e no Forte Augusto já se achava em vias de conclusão o assentamento do dínamo, que devia fornecer corrente para
explodir os torpedos submarinos, colocados ao longo do canal da entrada.
Almirante Luís Filipe de Saldanha da Gama, em
imagens
da coleção Alice Saraiva Ramiz Wright e da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro
Fotos em Grandes Personagens da Nossa História, vol. III, 1973, ed. Abril Cultural, S.
Paulo/SP
A Estrada de Ferro inglesa (São Paulo Railway) ou
Santos-Jundiaí, a única a dar acesso do planalto a Santos e ao porto, estava guarnecida em todo o seu percurso por fortes
contingentes, em São Bernardo, em Ribeirão Pires, no Rio Grande, no Alto da Serra (Paranapiacaba), em Piaçagüera e em
Cubatão. Essas tropas não ficavam inativas, faziam constantes exercícios de campanha, para adestramento e
experimentação das armas e munições.
Em meados de setembro, o porto estava ameaçado por quatro navios da armada revoltosa e
na iminência de um ataque em qualquer daquelas noites ou daquelas madrugadas. Difícil e trabalhosa a defesa da posição, pela superioridade da
artilharia naval.
Os jornais afixaram boletins, em que o comando da praça e as autoridades civis punham
a população de sobreaviso, prevenindo os mais timoratos, e as famílias em geral, da possibilidade de um pequeno bombardeio, sem conseqüências, a não
ser para os moradores da Barra, que convinha serem retirados dali. A cidade mesma estava fora do alcance das peças revoltosas, em caso do bombardeio
previsto. Apesar disso, muita gente, exagerando as previsões e os riscos, retirou-se para S. Paulo e outras cidades, até mesmo para sítios
interiores.
Os oficiais da legalidade não escondiam o seu receio de vierem os quatro navios atirar
ao mesmo tempo, em linha, reconhecendo que a artilharia de que dispunham não suportaria o peso do ataque naval. Realizou-se mesmo um conselho, para
a discussão do assunto, presente o dr. Bernardino de Campos, presidente do Estado, que se achava então hospedado no quartel-general, do qual
resultou a declaração solene, em forma de juramento, daqueles oficiais chefes de tropa, de que, embora inferiorizados em artilharia pesada, todos
cumpririam seus deveres até a morte.
O coronel Jardim pediu ao sr. presidente, naquela ocasião, que telegrafasse ao
marechal Floriano, instando pela remessa de mais e melhor artilharia, com a respectiva guarnição, de modo a tornar inexpugnável a praça santista, o
que foi feito por Bernardino de Campos em sua volta imediata à capital do Estado. No dia seguinte, e sempre pensando na possibilidade do ataque
global a Santos, o presidente Bernardino telegrafava de S. Paulo ao coronel Jardim:
"Coronel Jardim - comandante do distrito. Santos. Pode haver intenção de tomar
a fortaleza pelos fundos, por terra, desembarcando na praia do Góis ou em frente à Moela. Em terra convém esmagá-los com a vossa infantaria.
Bernardino de Campos".
Em outro despacho, expedido no mesmo dia, o presidente aditava às suas primeiras
instruções outras em que aconselhava evitar toda a comunicação de terra para o mar, acrescentando: "Atenda São Vicente
e praia da Conceição. Sigo para lá, no trem da tarde, amanhã".
De fato, Bernardino de Campos embarcaria para Santos no dia
seguinte, a tempo de assistir em companhia do coronel Jardim, no Forte Augusto, ao combate da manhã de 20, previsto pelo comandante da praça
santista e objeto de um telegrama na véspera, comunicando a chegada do "fantasma" de todos os espíritos, o couraçado República, à entrada da
barra. O telegrama dizia assim:
"Dr. Bernardino de Campos - São Paulo. Do Monte Serrate tenho
aviso de estar fundeado em Ponta Grossa um navio grande com mastaréu arriado e posteado ao lado de terra. A bordo nota-se movimento exagerado de
pessoal. Penso ser o República, que, como já vos disse, passou às 3 horas da tarde por São Sebastião, vindo então fundear em Ponta Grossa,
que não é longe da nossa barra. Provavelmente espera pelos outros que forçaram a barra, para encetar qualquer operação. O navio põe-se em movimento.
Estamos alerta. Coronel Jardim".
Após essa comunicação, outro telegrama recebera o presidente, antes de embarcar,
dizendo-lhe que o Palas fundeara às 7 horas da manhã em São Sebastião.
O República bordejou por algum tempo, decerto para examinar as posições das
tropas legais, e depois ancorou à altura da ponta de Itaipu, ao lado oposto (Oeste), parecendo trazer içado o pavilhão do almirante chefe da
revolta.
Verificado ficou, entretanto, que comandava a esquadrilha o capitão-de-mar-e-guerra
Frederico Guilherme de Lorena, sendo comandante do República o capitão-tenente Cândido dos Santos Lara. Custódio de Melo, o almirante, não
estava a bordo do cruzador couraçado.
Logo que o República lançara ferros em sua nova posição, fora arriado um
escaler, que aproara para a Ilha de Santo Amaro, dirigindo-se para a praia do Góis, entre a fortaleza e o Cheira Limão. Encontrando uma canoa de
pescadores, os homens do escaler aprisionaram-na, levando-a com toda a tripulação até o navio capitania, para cujo bordo içaram um dos tripulantes,
evidentemente para ver se obtinham alguma informação. Chegaram a pensar que os tripulantes da canoa eram amigos dos revoltosos, que já ali estavam
para esse fim - o encontro com o escaler, e a ida ao navio capitânia -, o que nunca foi provado, ou pelo menos nunca transpirou.
O bravo tenente Lima, comandante do Forte Augusto, diante da audácia cometida, não se
conteve naquela hora e mandou disparar dois tiros de peça contra o navio, de pura bravata, pois sabia-o fora do alcance de sua artilharia. Do
couraçado partiu também um tiro, em resposta, indo a bala cair no mar, a pouca distância da praia, onde o tenente-coronel Alberto de Barros estava
dando instrução ao 2º Batalhão, de seu comando. Um jato de água, levantado pela violenta explosão, chegou a respingar os seus soldados, em cujos
semblantes ele não notou, conforme testemunharam depois, a menor emoção ou reação de medo, o que não deixava de mostrar o estado de espírito da
tropa.
Antes desse disparo, havia o República feito um primeiro disparo de intimidação
e intimação a um rebocador que conduzia um navio de vela para fora do porto, obrigando-o a retroceder. Confirmava-se então o bloqueio do porto
santista pela esquadra revoltosa.
Até a madrugada de 20, o República conservou-se no mesmo lugar, como se
estivesse ali para auxiliar as fortalezas na defesa da barra, e não em posição de ataque. Naquela manhã, pelas 7 horas e meia, surgia o Palas,
navio-frigorífico convertido em transporte de guerra, parecendo querer tomar a Ponta Grossa; depois aproou para o República, trocando
pequenas salvas com ele e fundeando a pequena distância do capitânia. Entre os dois vasos estabeleceu-se, aí, um longo e contínuo vaivém de
escaleres, conduzindo oficiais e marinheiros.
Às 8 e meia, os escaleres foram içados para bordo dos dois navios, cessando as
intercomunicações. O mar estava agitadíssimo naquele momento, e de terra podia-se notar a violência com que eram sacudidos os navios, principalmente
o República, que fundeara num lugar desfavorável, muito batido pelas vagas que refluíam do pontal de Itaipu.
Às 9 e meia em ponto, um penacho de fumo elevou-se bruscamente do República e,
em seguida, um silvo cheio, prolongado, denunciou a trajetória de uma bala de canhão de grosso calibre, dirigida contra a Fortaleza Velha, da Barra
Grande.
Apesar do inesperado do ataque, assim de tão longe, a resposta de terra não se fez
esperar. Antes mesmo que os canhões de bordo despejassem novas cargas, uma bala de Krupp era atirada pela fortaleza, indo cair a pouca distância do
couraçado. Do Forte Augusto, outro disparo foi feito, com auxílio da Fortaleza. Estava iniciado o desequilibrado combate. Entre o República,
a tamanha distância, e a defesa do porto, estabeleceu-se um fogo nutrido, violento, mas sem efeito algum. Os tiros disparados de terra não atingiram
o couraçado, e os deste, pelo estado do mar e os grandes balanços do casco, passavam por cima da Fortaleza e do Forte, indo descoroar as velhas
palmeiras, então abundantes em toda a redondeza.
O Forte Augusto possuía apenas baterias de campanha, Krupp, de 7 e meio, e a Fortaleza
da Barra, velhos canhões La Hitte, que de nenhum modo poderiam molestar os navios da esquadra. As próprias muralhas das duas fortificações antigas
não teriam resistido às balas dos canhões de bordo, principalmente naquele longo martelamento operado, se o mar não houvesse conspirado em favor da
legalidade, encapelado como estava durante todas aquelas horas. A Providência velava pela República.
Uma única bala, calibre 32, Armstrong, que acertou na muralha da
Fortaleza da ilha (N.E.: refere-se o autor ao Forte Augusto, na Ponta da Praia), de 1
metro e meio de espessura, abriu nela uma grande brecha. O projétil perfurou a pedra, a princípio em linha reta, passando a descrever um
semicírculo, e terminando por uma linha oblíqua em relação à entrada, sendo o ponto de perfuração de 1,20 m em seu maior diâmetro. Os estilhaços de
pedra atingiram a segunda muralha, onde estava montado um canhão guarnecido, ferindo o cabo Francisco do Nascimento Carvalho e o soldado Pedro
Augusto do Nascimento, ambos do 2º Batalhão de Infantaria [5].
Durante o combate, os vapores manobraram para se afastar da zona de alcance
dos canhões que defendiam a barra. Ao início da luta, o República estava a 1.000 metros da Fortaleza. Logo após os primeiros disparos, cessou
o fogo e afastou-se para o dobro da distância, encobrindo com seu costado o Palas. Ali, naquela segunda posição, recomeçou o fogo, para
cessá-lo somente perto das 11 horas da manhã, e para levantar ferros [6].
O pessoal do 2º Batalhão, que aquartelara ao lado do Forte Augusto, desde a sua
chegada, iniciara a construção de trincheiras e abrigos. Continuava tal serviço, mesmo sob o fogo dos navios, quando uma das granadas, caindo
próximo ao local de trabalho, explodiu e seus estilhaços foram ferir o soldado da 4ª Companhia do 2º Batalhão, João Baltazar de Souza, estilhaçando
os vidros das janelas da casa onde aquartelara o estado-maior do Batalhão. Outra bala, caída no Paquetá, perfurou uma canoa que ali estava amarrada
e foi danificar a parede de uma casa, em ricochetes.
Às 11h30, inesperadamente, os navios levantaram as âncoras e saíram barra a fora, em
linha; o República à direita, a rumo Leste (Norte do País). Percorridos três quilômetros de mar, viraram, tomando a direção do Sul, até se
perderem de vista.
Santos foi, desde então, respeitado pelos navios da esquadra revoltosa, que
bombardearam São Sebastião, Paranaguá, Florianópolis, mas nada mais quiseram por aqui; pareceu-lhes, talvez, inexpugnável o porto paulista,
guarnecido pela polícia de S. Paulo, alguma tropa do Exército, e voluntários sem grande adestramento.
Contra-almirante Custódio José de Melo,
comandante-em-chefe da revolta de 1893 na Marinha
Foto: acervo do Museu da República (Rio de Janeiro)
in Grandes Personagens da Nossa História, vol. III, 1973, ed. Abril Cultural, S.
Paulo/SP
Este episódio do ataque a Santos pela esquadra do almirante Custódio de Melo marcou
uma extraordinária reviravolta no panorama político e patriótico de Santos. Bernardino de Campos, depois que recebera alarmante telegrama (já
visto) do coronal Jardim, tomara a decisão de ir para as fortalezas de Santos, a encorajar os defensores do porto e participar com eles de todos
os riscos que sofressem. Na tarde do dia 19, sem prevenir a pessoa alguma na capital, levando em companhia o filho, dr. Américo de Campos, seu
ajudante-de-ordens, tenente João Aires da Gama, e dois ordenanças, embarcou para Santos no trem das 3 horas e quarenta minutos (15h40).
Sabendo da sua temeridade, diversos representantes do Estado e grande número de
amigos, deputados e senadores republicanos, entre eles o coronel Fernando Prestes, os drs. Álvaro de Carvalho, Rivadávia Correa, José Pereira de
Queiroz, Casimiro da Rocha, Alonso da Fonseca, Pereira dos Santos, José da Silva Vergueiro e o capitão Fiel Jordão da Silva, embarcaram também para
Santos e se apresentaram ao coronel Jardim, pedindo armamentos para poderem colaborar na defesa do seu presidente e da cidade. O coronel Jardim,
muito instado por eles, consentiu, fornecendo o armamento pedido e colocando-os às ordens do tenente-coronel Silva Teles. Bernardino de Campos só
soube disso depois dos fatos consumados, quando os seus amigos já estavam militarizados e incorporados às forças de defesa, incluindo seu filho, que
com ele descera.
Acontecem então aqueles fatos já descritos, do bombardeio das fortalezas. A presença
de Bernardino de Campos fazia um herói em perspectiva de cada soldado e cada oficial da defesa. Um sargento do 2º Batalhão, quando fumegavam os
canhões dos navios e os do Forte Augusto, levado por excessivo entusiasmo, surgiu, sem ordem, fora do abrigo, e com a sua carabina Comblain abriu
fogo contra os navios... Também na Fortaleza, um anspeçada quis proceder de modo semelhante, sendo impedido de pronto por um oficial que se achava
ali perto.
O próprio presidente do Estado, dr. Bernardino de Campos, no mais aceso do bombardeio,
cometeu uma quase fatal imprudência. Vinha um balaço do República, silvando pelo espaço e trazendo endereço certo - as muralhas do Forte -,
onde aparecia, até muito acima delas, a figura do presidente. O tenente Aires da Gama, seu ajudante-de-ordens, correu para ele, pretendendo forçá-lo
a abaixar-se, a esconder-se do perigo iminente, e assim outras pessoas que ali se achavam, gritando em voz de comando:
- Abaixem-se todos!
Todos se abaixaram realmente, menos o presidente, que elevou ainda mais a avantajada
estatura, em vertical absoluta, ao mesmo tempo que respondia ao ajudante e amigo:
- São Paulo não se abaixa!...
O balaço passou a pouca distância de sua cabeça e foi explodir mais atrás, junto ao
galpão do fundo, com enorme estrondo. A frase e o fato ficaram célebres, conservados na admiração de todos, apenas glosados pelos seus inimigos com
irreverentíssima deturpação.
A verdade é que, segundo todas as testemunhas, por um quase nada São Paulo perdia seu
presidente e a República o seu melhor bastião, aquele que, pode-se dizer, lhe garantiu a continuidade pela oposição decidida e sincera aos planos
políticos e militares dos chefes do movimento revolucionário do Sul, sabendo que dele e de São Paulo dependiam então o Governo e a própria vida do
marechal Floriano.
O ataque a Santos, o episódio de Bernardino de Campos e outros detalhes
circunstanciais abalaram a resistência política e moral dos republicanos ortodoxos, da ala oposicionista, até então afastada do presidente. A
presença de Cerqueira César e seu apelo aos amigos do Clube Republicano completaram a "conversão". Nesse Clube estava a mais aguerrida gente
republicana: Vicente de Carvalho, o herói das "barricadas" e ex-secretário de Cerqueira César; Quintino de Lacerda, o
Comandante do Jabaquara; Martim Francisco, já preso em São Paulo; e assim todos aqueles grandes do movimento vitorioso em 89.
Se até então nada pudera ser feito contra Santos, dali por diante, muito mais difícil
seria fazê-lo, com a adesão total do Clube Republicano.
Os navios que nada tinham conseguido em Santos, já no dia 21 haviam tomado São
Francisco, em Santa Catarina, e mandavam forças para a tomada de Joinville. O Palas, sozinho, tomara Desterro (N.E.:
a capital de Santa Catarina, que em outubro de 1894, como castigo aos revoltosos e homenagem ao presidente Floriano, seria rebatizada como
Florianópolis), e o presidente do Paraná, dr. Vicente Machado, preparava tropas para seguir em auxílio do estado
vizinho e impedir, ao mesmo tempo, a projetada invasão de seu próprio Estado, o que aconteceria muito mais tarde.
Chegavam mais armas e munições a Santos. Nove caixões enormes de material de guerra,
para substituir o armamento Minié, usado por algumas unidades. A Guarda Cívica, o Corpo de Bombeiros e a Guarda Nacional foram armados e municiados,
para se encarregarem de vários policiamentos, enquanto os republicanos formavam diversos batalhões patrióticos da mocidade, preparados para a luta
em breve tempo.
Floriano mandava armamento em quantidade, já agora confiante na gente paulista e nos
republicanos de Santos, entregando-lhes a artilharia pesada que lhes faltara até então: 6 canhões de grosso calibre, sendo 2 Krupp e 4 Whitworth, os
dois primeiros montados no ponto mais alto da Ilha Porchat, e os outros 4 sobre as muralhas do Forte Augusto. Para a Bertioga seguiu o batalhão
patriótico Alfredo Éllis. Quintino de Lacerda organizara depressa o seu Batalhão Silva Jardim, sem esquecer o grande chefe
e amigos que o Vesúvio tragara havia dois anos. Até mesmo aquele Batalhão, já uma vez organizado, por Augusto de Carvalho e Constantino Xavier,
militarmente adestrado, surgiu de novo, pujante, em defesa de Santos e da República.
Nada disso escapou a Bernardino de Campos, que, certamente comovido, diante da
compreensão que lhe davam os republicanos congregados, passou ao coronel Jardim o seguinte telegrama:
"Coronel Jardim - Santos - Aplaudo a idéia da criação do Batalhão Republicano
Patriótico em Santos, e ponho à disposição dos seus dignos criadores e comandante meus serviços, como particular e como governo. São merecedores de
todo o louvor os propugnadores, tanto mais com o resultado altamente nobre da extinção da divergência entre republicanos, confraternizados sob a
bandeira comum. Cordiais saudações a vós e aos bons republicanos. Bernardino de Campos".
Histórico telegrama esse que, em suas poucas linhas, valia por uma história inteira
dos acontecimentos republicanos de Santos, após o bombardeio de sua cidade e após o grande exemplo, de abnegação e renúncia, do presidente paulista.
Quintino de Lacerda era um símbolo vivo da fraternidade e do heroísmo e também da
pacificação da família republicana santista. Lá estava ele, com seu grande batalhão misto, de brancos e negros conjugados, irmanados, ostentando sua
farda de major da Guarda Nacional, a guarnecer a ponte famosa, a Ponte do Casqueiro, redourada na tradição, objeto outrora de tantas cenas heróicas
e generosas da sua Abolição, onde ele surgiria sempre como um gigante.
Santos voltava a ser a mesma dos grandes momentos de sua vida de quase quatro séculos,
transfigurada naquele seu Tabor.
Ainda em janeiro de 1894, organizavam-se batalhões populares e patrióticos para
auxílio à legalidade, àquele marechal Floriano, que, considerado inimigo dos ortodoxos de 1889, era contudo a primeira autoridade da República e
tinha na terra paulista um grande representante, capaz de morrer pelo ideal que ajudara a vencer e que era o mesmo ideal de todos: a Pátria
Republicana.
Forte Augusto, que existiu no lugar do atual
Museu de Pesca, na Ponta da Praia, visto no início do século XX, quando restavam apenas os canhões
Foto: A Escolinha/Diário Oficial de Santos, 12/6/1972
Notas:
[1] Porque, de fato, os bons
republicanos de Santos não simpatizavam com Floriano e seu tipo ditatorial de governo, e o declaravam em reuniões e pela imprensa, em verdade
vigiados pelos espiões federais, uma criação e uma novidade daquele governo. Entre Floriano e a República, os republicanos ortodoxos ficaram
com a República. Ausentaram-se, recolheram-se, para não causarem dificuldades ao governo.
[2] As descrições destes
fatos reproduzem os relatos do coronel Pedro Dias de Campos, em sua excelente obra A Revolta de 6 de Setembro, e o noticiário geral da
imprensa da época, além de alguns depoimentos pessoais de participantes dos acontecimentos daqueles dias.
[3] Testemunhas da época
afirmaram que esse fato havia provocado numerosas adesões à "legalidade" entre os republicanos indecisos, situados entre a sua ortodoxia cívica, que
os manteria sempre antiflorianistas, e o real interesse da República, ameaçada de subversão.
[4] Os tripulantes do
Centauro e os dois rebocadores fugidos foram aprisionados e apreendidos em Vila Bela (hoje Ilhabela), pouco tempo depois. O tenente João F. dos
Reis Júnior entregou-se às autoridades em São Sebastião e reabilitou-se pela prisão e pelo arrependimento sincero, vido a ser utilizado mais tarde,
nos combates do Rio Grande do Sul, perdoado pelo marechal Floriano.
[5] Essa bala foi
transportada para o quartel-0general e mais tarde exposta na vitrina do Diário de Santos, onde todo o povo a viu, excitado em seu patriotismo
pela leitura da legenda ao lado.
[6] A impressão que se tem
destes fatos é que os revoltosos julgavam existir, nas defesas de Santos, peças de grosso calibre, que os comandantes não queriam por em ação senão
quando o mar serenasse e aumentassem as possibilidades de acertar, para não desperdiçar munição tão cara. Daí o afastamento do República de
1.000 para 2.000 metros de distância, segundo os relatos oficiais.
Se o comando revoltoso soubesse da realidade, decerto as fortificações de Santos
teriam ido pelos ares, ao impacto das suas granadas, atiradas de perto, sobre o mar menos revolto da grande abra santista.
Marechal Floriano Peixoto e a Revolta da Armada,
em bico-de-pena de Angelo Agostini, na revista D. Quixote de 29 de junho de 1895
Imagem: Coleção Ângela Agostini, in História do Brasil, ed. Folha de S. Paulo, 1997, S.
Paulo/SP
e Grandes Personagens da Nossa História, vol. III, 1973, ed. Abril Cultural, S. Paulo/SP
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