UMA ENTREVISTA
Ao concluir uma volta ao
passado, invadiu-me o desejo de procurar alguém do meu tempo, que tenha participado de tantos bons momentos como eu. Vidas paralelas que
experimentaram idênticas alegrias, que participaram daquela época, daquela visão de mundo, que tanta saudade nos traz.
Escolhi Gilda Raposo Schneider, amizade de mais de setenta anos! Começamos a namorar
aqueles que se tornaram nossos maridos, numa vida de união e companheirismo, de um amor que não conheceu barreiras e nos levou a vencer obstáculos.
Nossas noites na Avenida Bartolomeu de Gusmão eram sempre as mesmas. Logo depois do
jantar nos reuníamos em frente [da] sua
casa, e os namorados iam chegando... Éramos vários casais, como se fôssemos uma só família. Comungávamos do mesmo ideal. Casar e constituir família
com a solidez que só o amor e a confiança recíproca oferecem.
Gilda e Zezinho, Cyro e eu casamos quase na mesma época. Afastamo-nos temporariamente
daquele convívio tão grato, porque mudáramos para outro bairro.
Por essas voltas do destino, Gilda com três filhos e eu com dois, voltamos a morar
próximas uma da outra. Assim revivíamos nossa infância através de nossos filhos, que desabrochavam numa infância muito feliz. Porque, naquela época,
as crianças brincavam de forma plena e criativa.
Gilda e eu relembramos de quando nossas crianças brincavam de teatro. Com uma velha
cortina improvisavam a boca de cena do imaginário palco, montado na enorme garagem de minha casa. O diretor teatral era o Ciro Jr., que já nasceu
com alm de artista. Ele era bastante exigente, pelo que, muitas vezes, surgiam pequenos conflitos, logo contornados. E a brincadeira continuava.
Que tempo feliz!
Sempre, desde muito pequeno, meu filho apreciava a música. E Gilda, com ar distante,
me dizia: "Parece-me vê-lo compenetrado, tocando piano de cauda, com ares de concertista". Confirmando a premonição, Ciro Jr. dava os primeiros
passos para a sua carreira de musicista.
Os anos passaram, os filhos cresceram, mas podemos dizer que, para nós, eles continuam
sendo as crianças que enfeitaram nossas vidas. Afinal, o tempo corre para todos e não podemos deter a sua marcha.
Depois de muitos anos de felicidade, nós duas perdemos os companheiros de uma feliz
caminhada. Sentimos muito. A princípio parecia que nos faltava o chão. Mas nosso sentimento não era de revolta contra os impenetráveis desígnios de
Deus.
Ainda hoje agradecemos a Ele os anos vividos com tanta felicidade. E olhando agora
para nossos filhos, percebemos que nossa missão não terminou. Ainda somos preciosas para eles, mesmo com nossas limitações.
Gilda, com sua memória prodigiosa, lembrou-me de Madame César, uma chapeleira que
criava os mais belos chapéus para as damas da nossa sociedade. Vocês talvez nem acreditem. Mas, quando nos casamos, ainda usávamos chapéu para ir à
missa, à cidade, fazer compras. Era peça obrigatória nos enxovais. Lembrou-me de quando apareceu a "Casa dos Dois Mil Réis", precursora das
Lojas Americanas.
Veio-nos à lembrança o navio Denderá, que
afundou bem na entrada da barra, ali permanecendo por muitos anos encalhado na areia, com a metade à mostra. Certo dia, Quíncio Peirão, prático da
barra, fez uma vistoria no que restava da embarcação. E junto com pessoas que o acompanhavam, decidiu explodir um cofre que talvez contivesse
documentos importantes. Nessa operação ele perdeu uma das mãos.
Algum tempo depois, Antonio Canero, que negociava com ferro-velho, conseguiu uma
autorização oficial para remover aquela sucata de ferro que comprometia a beleza da paisagem. Com isso ele ganhou muito dinheiro e passou a ser
chamado "o rei do ferro-velho". Tenho enorme respeito pela sua pessoa. Ao adquirir o "casarão branco", conservou-o com extremo cuidado,
possibilitando que hoje tenhamos essa propriedade como patrimônio da cidade.
Lembraram-me Gilda e sua filha Vera de dois enormes letreiros no morro da entrada da
barra, visíveis para a cidade: Cinzano e Fernet Branco, inteligente reclame dessas bebidas, em cuja frente os navios transitavam, saindo ou chegando
ao porto de Santos. Vera, além de artista na pintura, também tem memória privilegiada. Lembrou que nesse mesmo lugar havia um enorme relógio, que
ali ficou durante mais ou menos dois anos. Certamente o salitre e a maresia prejudicaram seu funcionamento.
Gilda também se referiu a um lenda muito antiga, sobre a Pedra da Feiticeira, bem
próxima da Ilha Urubuqueçaba. Contavam os antigos que, à noite, São Tomé descia o
Morro do José Menino e, mar adentro, chegava até a pedra. Diziam que lá estava, eternizada na pedra, a marca de seu
pé!...
Com saudades, lembramos de como começou o Clube de Pesca de
Santos, na Ilha das Palmas. Um grupo de afeiçoados da pesca escolheu aquele lugar para se entregarem a esse prazer. O clube cresceu rapidamente
e hoje se constitui num dos lugares mais pitorescos e aprazíveis da nossa região, com instalações que oferecem todo o conforto aos seus associados.
A festa ali realizada no dia de São Pedro, padroeiro dos pescadores, tem grande fama. É um ponto turístico de relevante beleza natural. Embora o
clube seja de acesso restrito aos sócios, estes têm prazer em mostrar tudo que lá existe.
Lembramos da Fortaleza da Barra, que esteve muito
tempo abandonada, sem conservação por muitos anos, mas, depois de adotada pela Universidade Católica de Santos, tornou-se
uma pérola engastada no verde do morro à sua volta. Há um monitoramento das visitas, com o acompanhamento histórico da origem e importância do
monumento.
Estrategicamente articulada com o Quartel Militar,
transformado no Museu de Pesca, faziam fogo cruzado aos navios piratas e invasores da costa brasileira. Foram ambos
desativados, quando a tecnologia bélica da primeira guerra mundial superou rapidamente seu poder de fogo. Com a construção do
Forte Itaipu, a segurança foi consolidada. De lá se avista o oceano em todas as direções.
Recordamos do tempo em que o Jockey Clube de Santos tinha
as pistas para a corrida de cavalos, bem como as numerosas baias onde cada animal recebia todos os cuidados. Foi instalado num amplo terreno da Rua
Alexandre Martins. Quando encerrou suas atividades, o terreno foi assumindo outras funções.
Lá existiam chácaras de japoneses, que formavam hortas enormes, podíamos ver giraus
com chuchus pendurados entre a viçosa folhagem, e os bambus cruzados por onde subiam os pés de vagem. Hoje uma agência do INSS está lá sediada.
Numa parte desse terreno foi construído um grande complexo
habitacional do BNH. E ainda temos entremeado o Centro de Compras Praiamar, que nada deixa a desejar em relação aos da metrópole.
Devo confessar que nessa visita à Gilda, senti-me em outra época, em razão do que nos
rodeava. Num canto da sala, um guarda-roupa secular, com espelho oval, onde ela conserva resguardados, documentos antigos que pertenceram a seu avô,
todos manuscritos, com letra tão bonita e uniforme, que pareciam documentos impressos. Nesse móvel também estão fotos da família, que bem nos
mostram os trajes de época usados. Uma verdadeira relíquia!
Sobre o antigo bufê da sala de jantar, a imponente sopeira de porcelana, que fazia
parte do aparelho de jantar de seus avós. Ao lado, um galheteiro de prata, exibindo orgulhosamente os cristais para o azeite, o vinagre, o sal e a
pimenta. Ao fitá-lo, lembrei-me de pessoas que tiveram sua época de glória, e por alguma circunstância adversa, tornaram-se obscuras. Sim. O
galheteiro com seu ar nobre, com toda a sua beleza, ali esquecido, vencido pela praticidade dos frascos de plástico com molhos prontos e variados,
vendidos em qualquer supermercado. E numa pequena mesa auxiliar, talheres de prata remanescentes, cuidadosamente enfileirados.
Cada vez que comparo o ontem com o hoje, encho-me de tristeza! Toda as mudanças são
próprias do progresso, o que é absolutamente normal, mas os mais idosos custam a aceitar e se adaptar à velocidade vertiginosa com que se dá.
Fiquei sabendo pela amiga Gilda que a antiga chácara, onde foi construído o
Colégio Stella Maris, depois de ser da família Carraresi, pertenceu a seu avô, o coronel José Proost de Souza. Ele possuía
uma enorme chácara onde hoje é o bairro da Vila Rica.
Mal sentimos o tempo passar, embalados por tão doces recordações. E quando acordei do
justo enlevo, era hora de retornar para casa. Acabara-se o encantamento! Estava de volta à realidade!
Como sou grata a Gilda por partilhar de minhas lembranças e emoções! Poucos
compreendem o romantismo intenso de não esquecer jamais o passado, por mais remoto que esteja... Esse sentimento nasce com a gente, e o cultivamos
por opção. Pois há pessoas indiferentes ao passado, às tradições, e a tudo o que marcou época.
No meu entender, para construir um presente digno, há que alicerçá-lo nos fatos do
passado. Mas uma dúvida me assalta: serão as pessoas mais felizes com o progresso que se instalou em nossas vidas? Não creio. Já não temos uma
alegria total. Vivemos em sobressalto pela violência que grassa em todo o mundo. Não conseguimos dormir com tranqüilidade se nossos jovens estão na
rua. Vivemos em constante vigília.
Depois de horas tão agradáveis ao lado dessa amiga tão querida, custo a aceitar a
triste realidade que nos é imposta. Será sempre a fé a nos encorajar. Deus há de permitir que a paz volte a reinar em toda a face da Terra. Que
possamos deitar a cabeça no travesseiro, na certeza de que a violência, as drogas, e a corrupção desapareceram desse mundo em que vivemos!
Também agradeço a Gilda, por guardar todas as notícias publicadas a meu respeito e
todos os artigos que escrevi. Ela é realmente uma amiga irmã. Que Deus a conserve e abençoe.
EPÍLOGO
Chegamos ao fim dessa
volta ao passado, em que me empenhei.
Esta não é uma obra baseada em pesquisas históricas. Foi escrita com a memória e o
coração, com a finalidade de que as lembranças dos idos tempos não fossem sepultadas comigo.
Espero que os mais velhos tenham tido a alegria de recordar fatos às vezes esquecidos.
Mas que voltam a ser presentes no momento em que alguma coisa, como este livro, abre o baú das lembranças e reminiscências de toda uma vida.
Quanto aos mais jovens, espero que possam avaliar o quanto nós, os da melhor idade,
fomos felizes, mesmo sem as inovações tecnológicas do progresso. A juventude é um terreno generoso, sempre que depositamos nele sementes valiosas.
Tenho a certeza de que os dias conturbados que estamos vivendo não serão repetidos.
Os jovens estão divididos. Uma parcela menor vive voltada para seus próprios
interesses. Não percebeu a enorme responsabilidade de cada um na construção de um mundo melhor. Mas a maioria já começa a despertar sua consciência.
E quantos nos surpreendem ao darem os primeiros passos na realização desse acalentado ideal.
"A saudade é a memória do coração", dizia Coelho Neto. Devemos preservá-la, para que
não se perca pelos caminhos do esquecimento. É muito triste alguém não ter do que sentir saudade. Os tempos felizes que vivemos serão sempre
inovadores, inda que reminiscências de um passado distante. Representam um bordão onde podemos nos apoiar, nos momentos de fraqueza.
É preciso compreender que cada estágio de nossa vida tem seus encantos, suas riquezas
e descobertas. Temos que viver cada um deles, perseguindo nossos sonhos, acalentando ideais. Deus não nos colocou no mundo aleatoriamente. Nascemos
com tarefas definidas. Basta termos olhos de ver e introspecção para perceber.
Não pode haver maior felicidade do que a sensação do dever cumprido. Pequenos atos
insignificantes podem revelar o maior valor, quando analisados em profundidade.
É o que sinto neste momento, ao finalizar esta pequena obra despretensiosa. Talvez
consiga levar um pouco de alegria aos corações.
Neste ano, duas enormes surpresas: o título de "A Mulher do Ano 2004", concedido pelo
Movimento de Arregimentação Feminina. E a inauguração do Instituto Cultural que leva o meu nome, em carinhosa iniciativa de meus amigos Rafael de
Moraes Gonçalves e Carlos Fernandes. Juntam-se à satisfação de eu ter conseguido escrever este livro.
Este é o tributo que dedico à cidade que tanto amo. Esta é a minha felicidade.
Edith Pires Gonçalves Dias. |