A Rota de Ouro e Prata (Brasil e Argentina) não foi obviamente freqüentada somente por transatlânticos de passageiros ou por navios de capacidade mista (cargas e
turistas). Os principais portos das costas brasileiras, uruguaias e argentinas foram servidos desde 1851 por milhares e milhares de vapores de carga pura, onde só ocasionalmente viajavam alguns
passageiros.
O artigo de hoje inaugura também uma série não consecutiva de artigos dedicados a estes, quase sempre anônimos, cargueiros que fizeram a linha da costa Leste da América do Sul, procedentes, ou da Europa, ou da
América do Norte, ou de portos da Ásia.
A Tribuna registrou o choque entre o Mandu (ex-Posen) e o cargeiro Denderah
quando o primeiro saía do Porto de Santos
Imagem: reprodução, publicada com a matéria
O Estaleiro Bremer Vulkan, de Vegesack, na Alemanha, recebeu em meados de 1911 a ordem de construir uma série de oito cargueiros por conta da armadora NordDeutscher Lloyd (NDL).
A partir de maio do ano seguinte, o Bremer Vulkan passou a entregar regularmente à NDL vapores que ficariam conhecidos como os da série Rheinland.
De fato, este foi o primeiro, sendo seguido pelos similares El-sass, Pommern, Posen, Mark, Pfalz, Anhalt e Waleck, este último entrando em serviço em dezembro de
1914.
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O rebocador Seefalk tinha 205 toneladas brutas e 60 m de comprimento
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Outros quatro navios desta série seriam entregues no decorrer desse mesmo ano por dois estaleiros diferentes: o Altenburg e o Meiningen pelo Estaleiro Tecklenborg e o Dessau e o Lippe
pelo Estaleiro Flensburger.
O Posen, cujo nome era uma homenagem a uma província da Alemanha assim denominada, foi entregue à armadora alemã em 22 de agosto de 1913 e, cinco dias mais tarde, realizava sua viagem inaugural, saindo de
Bremen, Alemanha, com destino à Austrália, via África do Sul.
Alguns meses mais tarde, era deslocado para a Rota de Ouro e Prata e, em agosto de 1914, quando por ocasião de uma escala em Santos, seu comandante recebeu a notícia do estado de beligerância entre a
Alemanha e a Inglaterra, o Posen foi levado para o Rio de Janeiro, onde foi internado.
Já mencionamos em diversos artigos publicados anteriormente o processo que levou o Brasil a declarar guerra à Alemanha Imperial em junho de 1917.
Junto com a declaração de guerra, ato imediato todos os navios alemães que se encontravam refugiados em portos do País foram confiscados, passando para a bandeira brasileira.
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Em junho de 1917 o Brasil declara guerra à Alemanha Imperial
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Foi o caso também do Posen, que recebeu novo nome e novo gerenciamento, respectivamente Almirante Eliszario e Lloyd Brasileiro, sendo, logo em seguida, utilizado pela
marinha de Guerra nacional como navio auxiliar.
Por algum tempo, entre 1918 e 1921, levou também o nome de Belmonte.
Em 1921, conflito já terminado há três anos, recebeu outra denominação: Mandu. Com este nome marcou presença em diversas rotas de longo curso (linhas marítimas internacionais) servidas pelo Lloyd Brasileiro
e ao longo das costas do Atlântico Sul e seu nome tornou-se bem conhecido dos marítimos brasileiros.
Em 1927, o Mandu passou definitivamente para a propriedade do Lloyd, pois até então constava como pertencente ao Ministério da Marinha do Brasil.
A história deste vapor foi constelada de acidentes e incidentes e até seu fim foi trágico. Se não, vejamos.
Na noite de 30 de julho de 1929, uma terça-feira, o Mandu desatracou do cais do Armazém 23, iniciando uma viagem de linha que o levaria até Nova Iorque (Estados Unidos) carregado com vários gêneros,
principalmente café.
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Com o conflito terminado, o navio recebe outro nome: Mandu
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O prático de porto João Peirão conduziu o Mandu estuário abaixo e na altura da fortaleza velha desembarcou, como de praxe, ficando a embarcação brasileira sob a responsabilidade de seu comandante, Abílio de
Oliveira.
Este, tão logo desembarcado o prático, ordenou um aumento de marcha e, quando o navio dobrava a Ponta dos Limões, próximo à bóia de espera, avistou um outro navio que aparentemente rumava para a entrada do
estuário.
O capitão Oliveira acreditou que o vapor que se aproximava cruzaria com o seu bombordo-bombordo (esquerda de um e de outro), como preceituam as regras de navegação.
Porém, para sua surpresa, o outro navio, que era o Denderah, de bandeira alemã, manobrou para efetuar a passagem de estibordo (à direita), atravessando-se assim à proa (frente) do Mandu, que avançava
já com maior velocidade.
A ação surpreendente do navio alemão foi provavelmente provocada pelo receio de seu comandante de passar entre o navio que saía (o Mandu) e a terra firme, temendo talvez um encalhe.
Assim, apesar dos esforços do capitão Oliveira, dando ordens de ré, toda força à casa das máquinas, sobreveio o choque, com o Mandu entrando de proa no costado de estibordo (direito) do Denderah.
Neste último, a colisão provocou um rombo do lado de boreste (direito), que avançou por todo o casco, cortando-o até a braçola da escotilha do porão 2 e atingindo o passadiço e outras partes de borda acima até a
casa de navegação e embaixo até a casa das máquinas, quase atingindo também as caldeiras.
Na esperança de evitar o imediato afundamento do vapor alemão, seu comandante jogou-o em encalhe junto à Ponta do Engenho, um pouco ao Norte da Ilha das Palmas.
Assim, o Denderah ficou com sua parte de proa abicada em terra e com sua popa (ré) flutuando em água livre.
Logo imediatamente após o choque, o mar penetrou no porão 1 e na praça das caldeiras pelo rombo no casco. O comandante alemão mandou então abrir o vapor das caldeiras e apagar as fornalhas para prevenir qualquer
acidente e fogo a bordo, ficando o navio às escuras.
Enquanto o Mandu fazia meia volta e retornava ao porto, sem grandes avarias, no Denderah a sua tripulação, que não o havia abandonado, permanecia a postos, tomando medidas para evitar de imediato um
agravamento da situação.
A manhã do dia seguinte encontrou-o ainda na mesma posição, com a parte da proa totalmente submersa e com o mar na altura do deck (convés) principal à meia nau. A popa estava quase totalmente fora da água.
Nesta situação, o Denderah permaneceu durante cerca de um mês, enquanto o Mandu, impedido de seguir viagem pelas autoridades que presidiam o inquérito, teve a carga transbordada para o Cabedello,
ficando retido em Santos.
Quase um mês depois, dois rebocadores de bandeira argentina foram despachados de Buenos Aires (Argentina), o Gigante e o Coloso, para tentar o desencalhe, porém as tentativas realizadas foram
infrutíferas, com os dois barcos retornando à Argentina.
Em 16 de setembro de 1929, entrou em Santos, procedente de Hamburgo, Alemanha, com 16 dias de viagem, o rebocador de alto-mar Seefalke.
Construído em 1923 em Bremerhaven, Alemanha, de 625 toneladas brutas e 60 metros de comprimento, o rebocador, de propriedade da Bugsier, de Hamburgo, iniciou logo no dia seguinte à sua chegada as tentativas de
desencalhe, que se revelaram infrutíferas.
As coordenadas exatas do ponto de desencalhe do Denderah eram: 23º59'15" Sul de latitude e 46º16'00" Oeste de longitude.
As outras posições eram: Ponta do Itaipu 69º Sudoeste, Forte da Barra 85º Sudeste, Monte Serrat (Igreja) 1º Nordeste, Ilha das Palmas 12º Sudoeste e Hotel Atlântico 11º Noroeste.
O Denderah acabaria sendo considerado perda total e abandonado pelos seguradores.
Na edição de 12 de julho de 1938, A Tribuna publicou o choque entre o Mandu e o Neptunia
Imagem: reprodução, publicada com a matéria
Colisão com o Neptunia - Cerca de 6 horas da manhã do dia 11 de julho de 1938, uma segunda-feira, o vapor cargueiro Mandu, ex-Posen, entrava na Baía
de Santos, procedente de New Orleans (Estados Unidos) e escalas, sob o comando de Pedro Velloso de Oliveira.
Já naquela hora, nada menos que oito outros navios encontravam-se fundeados na barra, à espera de que a densa neblina matinal se dissipasse e dos práticos que os conduziriam porto adentro.
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O Mandu encontrou seu fim com a respeitável idade de
53
anos
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Entre estes navios, estavam os transatlânticos de linha Cap Arcona, Oceania e Neptunia. Este último, de bandeira italiana, pertencente à Italia di Navigazione, sob
comando do capitão-de-longo-curso Alessandro Gladuli, havia chegado de madrugada e fundeara ao largo da Ilha das Palmas.
Às 5h50, o prático subiu a bordo e o Neptunia se pôs em marcha, navegando em direção ao canal.
O Mandu, que também demandava o porto para atracar, havia passado minutos antes pelo Neptunia ainda ancorado e encontrava-se em marcha, à frente deste, distanciados quiçá por uns 800 metros, porém
invisíveis um ao outro devido ao forte nevoeiro.
O Neptunia, desenvolvendo maior força motriz, logo emparelhou com o Mandu e, na tentativa de ganhar a frente antes do estreitamento do canal, procurou cruzar a proa (frente) do mesmo.
O comandante Oliveira, percebendo o perigo da manobra, ordenou de imediato as máquinas à ré, a toda força, o que, porém, não impediu que sobreviesse colisão com o lado de bombordo (esquerdo), rasgando, na altura da
proa, o lado de estibordo (direito) do Mandu.
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Eclodiu um violento incêndio causado por uma língua de fogo
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Como conseqüência, ambos ficaram avariados, registrando-se no navio italiano um rombo na altura do Deck (convés) C, de aproximadamente três por cinco metros, além de amassadura em extensão no casco.
O Mandu sofreu achatamento de bombordo e rasgo na buzina da âncora e borda de estibordo. Não houve vítimas a lamentar e ambos os navios atracaram em seguida no porto.
O Lloyd Brasileiro decidiu finalmente colocar à venda o abandonado Mandu e abriu as ofertas.
Quem acabou ficando com o vapor foi a Branata - Empresa Brasileira de Navegação Transatlântica e Cabotagem Ltda., com sede em Natal, Rio Grande do Norte.
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O Lloyd decidiu colocar à venda o abandonado navio
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Recondicionado e com o novo nome de Commandante Martini, passou a ser utilizado na chamada linha do sal, ligando Macau e Areia Branca (Estado do Rio Grande do Norte) a Santos. A cada viagem no sentido
Norte-Sul, o Commandante Martini vinha carregado com cerca de 12.500 toneladas de cloreto de sódio a granel.
Ficou em serviço nesta rota até 12 de novembro de 1966, quando, com a respeitável idade de 53 anos, o valente cargueiro encontrou seu fim.
Estava naquela data ancorado no porto de Macau, completando um embarque de 7 mil toneladas de sal, quando eclodiu um violento incêndio, provocado por uma língua de fogo surgida quando se acendia uma de suas
caldeiras.
Devido à rapidez da propagação do sinistro, seu comandante, Sílvio Corrêa, ordenou à tripulação abandonar o navio, enquanto um rebocador o tirava para fora do perímetro do porto e o levava a encalhar num banco de
areia situado a cinco milhas (9,2 quilômetros) da costa.
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O navio foi abandonado ao seu destino, ainda fumegante
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O Commandante Martini foi então abandonado a seu destino, ainda fumegante. Nos dias que se seguiram, o velho navio foi alvo de predadores, que não tardaram a depená-lo do pouco que lhe havia sobrado do
incêndio.
Sua recuperação não sendo considerada viável, o ex-Posen, ex-Mandu foi declarado perda total pela companhia seguradora e os seus destroços abandonados definitivamente na posição 5º01'43" Sul de
latitude e 36º43'03" Oeste de longitude, onde até hoje existe bóia luminosa, assinalando o perigo de seu casco submerso. |