XVI
*N.E.: número de capítulo repetido no
original
Agora, em alguns minutos de recreio
que me é dado gozar, após uma palestra na redação com o Rani Pousão Ramos e que versava sobre literatura, vou dar expansão à vista, vendo passar
pela nossa Rua do Ouvidor (Frei Gaspar) uma multidão de coisas novas e velhas.
(N.E.: o autor assemelha a movimentada via carioca com a santense Rua Frei Gaspar).
Admirar, por exemplo, e com pena, o homem que trazia às costas um bombo, uma caixa, pratos,
ferrinho e soprava numa gaita de foles, produzindo música roufenha, estirando uma perna para fazer funcionar a caixa, cotovelando o bombo, agitando
a cabeça coberta por um capacete de metal em que sacudiam-se guizos enferrujados. Um realejo, moendo música insuportável, auxiliava os
movimentos vagarosos do homem que ria estupidamente para a garotada, muito convencido de que era um artista extraordinário, fazendo tilintar os
guizos presos ao capacete de metal.
E o homem terminava esse concerto desconexo, pedindo um óbulo aos assistentes esquivos de
pagamento por um espetáculo desenxabido.
Retirava-se o músico ambulante e uma voz feminina dizia-me ao ouvido:
- Tira a sorte, senhor?
Voltei-me. Era uma das chamadas ciganas, as tais buenas dichas que infestam o nosso
meio com promessas de adivinhar-nos o passado, o presente e predizer-nos o futuro, mediante um níquel de 200 réis.
Recusei saber o meu futuro. Ela insistiu. Vendo-me inabalável aos seus rogos, lançou mão do ardil
peculiar à perspicácia da mulher:
- Eu diz, senhor, qual a moça que você gosta. Eu diz tudo com verdade. Eu diz também a moça que
gosta de você... Não queres saber qual a moça que te gosta? Senhor não ama nenhuma? Deixe ver a mão esquerda, senhor. Eu diz tudo com verdade...
Estava eu, pois, em face dessa mulher asquerosa nas vestes e bela no olhar. Um ente que especula a
superstição alheia, dando ao incauto noticias favoráveis ao seu futuro, mostrando-lhe uma mulher encantadora que o ama, mas não está na terra, está
longe, porém em breve chegará. Atira-lhe à imaginação uma carga de fortuna em ouro, em brilhantes; dá-lhe futuramente ricos palácios, prolonga-lhe a
existência por muitos anos e... apanha-lhe o níquel.
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Retiram-se as ciganas, as mulheres de olhos belos e vestes asquerosas, surgem três ou quatro
crianças filhas do Celeste Império, a cantarolar no seu idioma incompreensível, as canções ou bailatas chinesas, atirando ao ar três pauzinhos,
aparando-os com presteza e requintada agilidade, própria dos jogos malabares.
O final desse espetáculo característico nas feiras era pedir que depositassem na pele da bandurra
sebenta uma moeda para a compra de bananas. Saíam as filhas do Celeste Império, indo estacionar na porta do
Bar Chic, onde a profusão de níqueis seria inevitável, pois ali, no fidalgo ponto das reuniões fidalgas, um níquel fazia tanta falta como uma
gota d'água retirada do oceano...
Perdiam-se de vista as malabaristas e aparecia imediatamente um pedinte esfarrapado, de olhos
encovados, sem brilho, balbuciando qualquer coisa e estendendo a destra, numa expressão de miséria!
Estes miseráveis esbarravam-se com as sedas de blusas ricas de ricas senhoras que iam à Casa Alemã
fazer compras.
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Neste interminável vai e vem de misérias e opulências, chegava a noite. A City
iluminava a cidade. O Largo do Rosário começava a regurgitar num aspecto populoso. Nos cafés, os pianos, as flautas, as
harpas, os violões e as sanfonas cantavam, guinchavam a polca da revista São Paulo Futuro.
Mas, isto só nas adjacências do Largo do Rosário, por que nas outras ruas e becos tumultuavam os
grupos dos grossos emborcando copos sobre copos, em amistosa camaradagem com as decaídas da Rua Martim Afonso,
esparramadas nas cadeiras dos reles botequins fazendo idílio barato regado a cachaça.
Daí, uma, duas, três desordens e a cavalaria conduzindo para a Central, em passo marcial, um
navalhista destemido ou um gatuno audaz, quando não se ouvia ao longe o silvo agudo da sereia da ambulância que vinha socorrer um desastrado
pela embriaguez, uma vítima duma desordem, ou um valentão que resistia tenazmente, de faca em punho, à polícia que lhe põe as mãos.
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Felizmente, para desviar-me desses quadros populares, recebo, na rua, um
convite do amável Schmidt:
- Vamos, ó Vitorino, à redação. Quero fazer-te uma proposta.
- Vá dizendo...
- É melhor na redação. Lá estaremos à vontade.
Eis-nos acomodados nas respectivas cadeiras. Schmidt, rindo aos bocadinhos, lançou a bomba:
Propôs-me erigirmos uma Torre... literária. Nessa Torre, segundo os planos de Schmidt,
elevar-se-iam os intelectuais de Santos, mostrando as suas produções por meio de palestras, conferências, poliantéias e saraus literários.
Aprovei a idéia de corpo e alma. Tracei uma notícia que já era mais um convite para assembléia de
fundação do que um consta com aspirações a realidade.
No dia seguinte, a notícia da fundação da A Torre vinha estampada no
Diário de Santos e, atrás dela, uma chuva de adesões.
Eu e Schmidt combinamos a diretoria que deveria ser eleita, tratando duma cabala para sufragar os
nomes dos drs. Porchat de Assis e Waldomiro Silveira, como presidentes, e dar o título
de presidente honorário ao dr. Vicente de Carvalho, nosso conterrâneo e mavioso cantor do Relicário.
Pusemos em atividade a propaganda para a ereção da A Torre intelectual, e a sessão de sua
fundação ficou marcada para o próximo domingo do mês de maio de 1914, às 11 horas, numa das salas da Escola de Comércio José
Bonifácio, gentilmente cedida pelo seu digno diretor dr. Porchat de Assis.
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Dr. Adolpho Porchat de Assis, diretor da Escola de Comércio José Bonifácio
Foto e legenda publicadas com o texto
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Domingo, 11 horas da manhã. Dirigi-me à Rua Constituição, onde
funciona, num belo edifício mandado construir pelo saudoso João Octavio dos Santos, a Escola de Comércio José Bonifácio.
Estavam à porta o Schmidt, Gonçalves Leite e Pedro Paulo
Neves. Momentos depois, chegava o dr. Porchat de Assis. Batemos. Ninguém respondia.
- Com certeza, obtemperou o dr. Porchat, o zelador saiu, e não se lembrou da sessão marcada para
hoje. Em casa tenho algumas chaves que, deve alguma servir aqui.
Foi à sua residência, que era perto, e voltou logo com algumas chaves. Experimentou. Nenhuma
servia. Ficou, por falta de chave, adiada a sessão para daí a dois dias, à noite. Realizou-se então a fundação da A Torre, tomando posse a
diretoria, sendo eleito presidente o dr. Porchat de Assis, 1º secretário Affonso Schmidt e 2º Gonçalves Leite.
Depois... depois... A Torre desmoronou sem ter o prazer de sentir no seu campanário o som
mavioso do cântico das Musas...
***
Entre o que foi, o que há de vir, abro um parêntesis para, mais ou menos calmo de tanta agitação,
debruçar-me prazenteiramente sobre as Janellas Abertas, de Affonso Schmidt, o primoroso poeta santense, e ver passar por essas Janellas,
cantando e rindo, chorando e tristes, os magistrais poemas de amor.
Sobre Affonso Schmidt, a A Fita assim disse:
"Affonso Schmidt
Uma excelente surpresa tivemos na terça-feira última (17 de março de 1914), ao ver irromper,
inesperadamente, pela nossa redação, o querido e talentoso amigo e companheiro Affonso Schmidt, que há um ano se ausentara de nós e andava
perambulando pela velha Europa.
O admirável Schmidt, um belo dia, teve aqui esta idéia: - Vou dar um passeio à Europa.
Ficamos surpreendidos: - Como?
O nosso estimável camarada possuía, é verdade, extraordinários recursos: muito talento, muita
força de vontade e muita confiança em si; mas isso, ao que nos parecia, não era suficiente para sustentá-lo durante a sua estadia por aquelas
paragens estranhas.
Pois foi.
Affonso Schmidt, simplesmente, com o dinheiro da passagem e logo após a sua idéia, antes mesmo que
nos apercebêssemos da audácia, embarcou num transatlântico e lá se ficou na Itália, em
Milão, adivinhem como?
- Como datilógrafo de uma importante casa comercial.
Schmidt, enquanto ganhava dignamente a sua vida, ia-nos enviando sempre as suas belas e
interessantes impressões, os seus originais e admiráveis versos.
Assim como num dia ele se lembrou de deixar-nos repentinamente para ir à Europa, um outro dia,
também, ele sentiu por lá a nostalgia do nosso Noroeste, a visão do Largo do Rosário e... lá deixou ele a Europa, a bela Itália, de que veio
encantado e, passando por algumas regiões da França, tomou um paquete em
Marselha e aqui se acha de novo, no seio da nossa sincera camaradagem".
Foi também nesse tempo em que Schmidt datilografava em Milão e esculpia imagens adoráveis com o
delicado cinzel de sua verve poética, em blocos de papel almaço, que o Diário de Santos publicou uma série de correspondências sob a
epígrafe: "O Diário na Itália", e eram essas correspondências enviadas por Affonso Schmidt.
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Alberto Veiga (Sylvio de Lóres), talentoso jornalista e literato
Foto e legenda publicadas com o texto
Fechando, pois, as Janellas Abertas, lanço as vistas para os
belíssimos versos de Fábio Montenegro, deleito-me com as soberbas produções de Gonçalves Leite, e termino a minha hora literária engolfado Na
Esteira da Luz que o fecundo literato e jornalista Alberto Veiga acabava de dar à publicidade.
***
Fora, na rua, os ecos de Évoé! Évoé! -
invadiam o meu gabinete. Aí estava, "na porta", o carnaval. Apesar da crise, ele, o carnaval, prometia divertir-nos a
bom divertir.
Entre lamúrias e choramingas por falta de dinheiro, não fizeram carnaval com estrondo de riquezas;
não houveram préstitos suntuosos, prenhes de luxo. Mas, um soberbo corso de automóveis principescamente ornamentados percorreu as ruas da cidade,
recebendo na sua passagem travessas e festivas serpentinas, afogando-se numa nuvem polícroma de pequeninos confetti que se desprendiam das
sacadas dos sobrados em festa.
E, mesmo assim, consideravam um corso muito pobre porque o automóvel mais modesto em luxo que se
apresentou foi o que adiante vai estampado e que conquistou um prêmio.
Conquanto o carnaval de 1915 não colhesse a palma da vitória, serviu para distrair-nos durante os
três dias "gordos", voltando-nos a atenção para os seus jovens e lívidos Pierrots enfiados em suas roupagens alvinitentes com enormes rodelas
pretas a laia de botões... e acompanhados de suas encantadoras Columbinas, fazendo travessuras nas capotas dos automóveis, desperdiçando rios,
rompendo sedas...
E era com esse esbanjamento louco duma alegria passageira que os fatos tristes caíam no
esquecimento, pois, que graça havia em recordar-se a gente da tentativa de suicídio no "WC" do Bristol Hotel, praticada por Lazaro de
Camargo, às 19 horas do dia 2 de fevereiro?
Era bem melhor apreciar o suntuoso corso envolto em
aclamações delirantes, porque o corso das tragédias sociais repete-se todos os dias e o corso carnavalesco só o temos uma vez por ano, estando
portanto, para aquele, constantemente abertas as portas da Lei, as enfermarias dos hospitais e as sepulturas das necrópoles...
***
Também estava aberta uma sepultura para o nosso vate
Quintino de Macedo, segundo um aviso afixado na "pedra negra" do Diário de Santos.
Mas, o Diário foi iludido pelo sr. Raphael Henriques, propalador da morte de Quintino,
tanto que não noticiou esse fato sem primeiro sindicar do caso, chegando a averiguar que Quintino de fato estava na Santa Casa, onde submeteu-se a
melindrosa operação, mas já estava em vias de restabelecimento.
O propalador da suposta morte de Quintino, o que não era mais nem menos senão um plano de
chantagem, foi corrido pela decepção de um contra desfavorável à sua personalidade, azulando de Santos.
Quintino continua vivo; já construiu a sua Cruz, levou-a ao Calvário desejado, fundou com o
sr. Manoel Petrarchi o semanário A Vida Santista e continua a trabalhar.
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O automóvel premiado no corso carnavalesco de 1915
Foto e legenda publicadas com o texto |