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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - SANTOS EM... - BIBLIOTECA NM
1915 - por Carlos Victorino (02)

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Carlos Victorino apareceu na imprensa santista como tipógrafo no jornal Gazeta de Santos (de 1883) e reapareceu como revisor no Jornal da Noite, criado em 1920. Também escreveu para teatro e nos gêneros romance e comédia.

Suas lembranças de Santos, vivenciadas entre 1905 e 1915, foram reunidas na obra Santos (Reminiscências) 1905-1915, cujo Livro II (com 125 páginas) foi em 1915 impresso pela tipografia do jornal santista A Tarde (criado em 1º/8/1900). O Livro I, correspondente ao período 1876-1898, já estava com a edição esgotada quando surgiu a segunda parte.

Nesta transcrição integral do Livro II - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Santos (reminiscências) 1905-1915

Carlos Vitorino

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II

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10 de outubro de 1907.

Cheguei à noite. Depois de uma frugal refeição no Café do Porto, dirigi-me ao Diário de Santos, que estava em festas por mais um aniversário completado nesse dia.

Já se sabe: abraços nos colegas, cumprimentos ao Isidoro de Campos, ao Maneco Ribeiro, e a todos que ali estavam participando da alegria pela faustosa data em que o decano da imprensa santense transpunha mais um degrau da escadaria dos sacrifícios em prol do povo.

Doces, chopes, música, flores, luzes, visitas, cartas e cartões, augurando ao Diário mil prosperidades etc., faziam parte da festa. Discursos bombásticos, saudações, vivas entusiastas, brindes de honra e outras manifestações próprias ao ato, prolongaram-se até 1 hora da madrugada, mais ou menos.

Nesta fase, o corpo de redação do Diário de Santos compunha-se do dr. Isidoro Campos, redator-proprietário; Manoel Fernandes Ribeiro, redator-secretário; Wladimir Alfaya, redator comercial; Paulo Cunha, repórter; Eduardo Machado, gerente; Alfredo Padilha, chefe das oficinas; e Ferdinando Ranieri, chefe das máquinas.

No número comemorativo a esse aniversário, o saudoso Valentim de Moraes homenageou o Diário com o seguinte soneto de sua lavra:

Brinde

Ao Diário de Santos.

Brindo-te, embora julguem que vencido

um ano, é tempo à perda condenado!...

Ano, porém, no Bem aproveitado,

Não se pode julgar um ano perdido!...

 

Brindo-te. O bem que tens disseminado

valem os louros que já tens colhido...

Ser não pode o futuro reduzido!...

E um ano mais de luz tens passado!...

 

Brindo-te. Auréola que te cinge a fronte

- como um sol de ouro em brilhos no horizonte -

esparge luzes e dizima trevas!...

 

Brindo-te. Os louros que já tens aumentas!

Mais um bloco de mármore acrescentas

ao pedestal de glórias em que te elevas!...

Outubro-1907

Valentim de Moraes.

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Após as glórias do Diário colhidas nesse dia por ter completado mais um ano de existência, chegou no dia 21 de outubro desse mesmo ano, pela primeira vez ao nosso porto, a canhoneira Pátria, da marinha portuguesa.

A chegada foi anunciada do Monte Serrate, por uma salva, indo ao encontro da canhoneira 5 rebocadores, nos quais foram as autoridades consulares, policiais, a comissão de festejos, vereadores, e as bandas musicais do Corpo de Bombeiros e Colonial Portuguesa.

No domingo, às 9 horas da manhã, celebrou-se missa campal na Praça da Matriz, sendo celebrante o monsenhor Moreira, acolitado pelo vigário da paróquia, monsenhor Soledade. (N.E.: quadro de Benedito Calixto consta como pintado em 1905 e não em 1907. A canhoneira teria chegado em 21 de outubro de 1905, que era um sábado, justificando-se a missa no dia seguinte, domingo. Em 1907, 21 de outubro foi uma segunda-feira, o que significaria a permanência da belonave portuguesa por uma semana. É de se acreditar portanto que a referência correta seja mesmo 1905. A dúvida poderá ser esclarecida na oportunidade de uma consulta a uma coleção do jornal Diário de Santos, nos anos 1905 e 1907).

As decorações da praça e do altar foram executadas pela Casa Relâmpago, que apresentou um trabalho digno de elogios.

A comissão dos festejos em homenagem à oficialidade da canhoneira Pátria ficou assim composta: barão Zeferino Lourenço Martins, vice-cônsul de Portugal; Custodio Tavares da Silva, Thomaz Marques, Joaquim Lopes Gouvêa, Manoel Soares de Albergaria e o talentoso jornalista Alberto Veiga.

Dias depois, a canhoneira Pátria levantava âncoras e zarpava em regresso aos mares lusitanos.

Para que a nossa baía não ficasse por muito tempo sem o ruído de festas marítimas, os clubes de regatas Internacional, Santista, Saldanha da Gama e o de Regatas de S. Paulo organizaram uma bela festa náutica, honrada com as presenças dos drs. Jorge Tibiriçá, presidente do Estado; Meirelles Reis, chefe de polícia, e conselheiro Antonio Prado, prefeito municipal de S. Paulo.

Nesta leva de novidades, apareceu-nos o cinematógrafo falante, fazendo a sua estréia no Teatro Guarany. O moderníssimo invento pertencia à empresa Star & C. Não pegou o tal cinematógrafo falante porque a voz não combinava com a gesticulação das imagens. Teve o Guarany nessa noite uma enchente à cunha para assistir ao fiasco do cinematógrafo falante.

Pouca importância, porém, ligou-se ao caso do fiasco. O mais importante no movimento social e que trouxe consigo a consternação quase que geral, foi o suicídio e Albano Alves da Silva, furriel do Corpo de Bombeiros, à noite, às 9 e meia, no quartel, após o toque de silêncio.

Albano, segundo versões que corriam de boca em boca, recorreu ao ácido fênico, ao qual adicionou cerveja preta. Morreu momentos depois no meio de horríveis padecimentos. Contava Albano apenas 18 anos. A causa do suicídio até hoje é ignorada.

No dia seguinte, às 4 e meia da tarde, ao enterro do desventurado Albano compareceram o intendente, alguns vereadores, inferiores e marinheiros do Tiradentes, e praças e inferiores de polícia. Uma comissão do Grêmio Recreativo "19 de Julho" fez-se representar nos funerais.

Não foi só o desditoso Albano que, por suas mãos, cortou o fio da existência; o mestre de equipagem, J. Riou, também suicidou-se a bordo do vapor francês Concordia, golpeando o pescoço com uma navalha.

Enquanto lágrimas sentidas banhavam os túmulos desses dois infelizes, bagas de suor umedeciam o pedaço de terreno onde os operários faziam escavações colocando blocos de madeira que, na qualidade de alicerces, suportariam o edifício da Casa Alemã, situada na Rua 15 de Novembro, esquina da Rua Frei Gaspar.

Por outro lado, o indiferentismo a estas coisas agasalhava-se por entre os reposteiros luxuosos do Club dos Argonautas, que preparava um suntuoso baile a bordo de sua nave, com todos os requintes do prazer: música, flores, belas mulheres, champagne, risos e beijos, indo todo este conjunto de desvarios parar às portas do crime: um rapaz, talvez mordido pela serpente do ciúme, atirou a revolver à sua deusa, ferindo-a gravemente.

Na Rua Martim Afonso, faziam também o seu festim regado a sangue algumas praças de polícia e marinheiros do Tiradentes.

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No dia 19 de novembro de 1905, Santos, orgulhosamente, hospedou Coelho Netto, o cognominado príncipe da literatura brasileira. Coelho Netto veio realizar conferências no Teatro Guarany, e a primeira obedeceu ao tema A Navegação.

Abríamos os braços para receber Coelho Netto, na gare da São Paulo Railway, mas... tétrico contraste: os coveiros da necrópole do Paquetá abriam uma sepultura para receber o cadáver do inditoso jovem Paulo Moret, de 14 anos, que pereceu afogado no sítio Pae Cará, quando tomava banho. Moret, abusando da correnteza, atirou-se à água recitando os axiomas "Quem bem nada não se afoga", e "Quem cai não passado chão". O jovem Paulo Moret era filho do finado Carlos Alberto da Gama Moret, ex-escriturário da Alfândega.

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A igreja católica recebia mais um filho, trazendo a sua ordenação sacerdotal, conferida no dia 24 de novembro na catedral de Belo Horizonte. Tínhamos, pois, em nosso clero, um novo sacerdote santense - o padre Gastão de Moraes, que hoje desempenha, com a inteligência que lhe é reconhecida, o espinhoso cargo de educador da Escola de Aprendizes Marinheiros.

Além deste encargo, é um dedicado pastor das submissas ovelhas da capela de Santo Antonio do Embaré; e, por seu acrisolado amor e dedicação aos futuros marinheiros da nossa Armada, foi-lhe conferido o posto de tenente.

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Durante o trajeto pela Avenida Conselheiro Nébias, notei muitos melhoramentos. Respirei grandes camadas de puro oxigênio, na praia, andando vagarosamente, apreciando os banhistas que brincavam com as ondas e as ondas brincavam com eles. Voltei pela Avenida Ana Costa; sentia uma diferença enorme no meio de condução que era ainda a tração animal: estava já acostumado à tração elétrica, em S. Paulo. A Avenida Ana Costa estava ficando bela com as suas construções modernas em estilos gótico e japonês. Ia em breve "passar a perna" na Avenida Conselheiro Nébias. E passou.

Dei umas voltas pela cidade, encontrando grande diferença. Parecia-me que mãos progressistas andavam demolindo os casarões arcaicos e colocando em lugar deles edifícios vistosos, de moderna estética e com todas as condições higiênicas. As ruas muito limpas, mais largas. Ruas abertas de novo como a Augusto Severo, João Octavio e outras, na cidade.

A Vila Mathias transformara-se rapidamente, mostrando um belo aspecto e possuidora já dum jardim e mais tarde de um teatro (N.E.: o autor se refere ao Teatro Carlos Gomes), quase no ponto onde nos tempos de Pai Felipe (1888) era o chamado Quilombo. E o contraste oferecido às minhas vistas, nesse antigo lugar, era enorme em diferença: em 1888 ali refugiavam-se homens cativos, hoje passeia-se livremente...

A Vila Macuco, também em progresso, desaparecendo os casebres de madeira e levantando-se as habitações modernas, bem construídas. O edifício do Asylo de Orphãos está bem localizado e é de aspecto suntuoso. A Companhia Docas construiu um grupo de casas levantadas com pedra e cal, obra sólida e de grande trabalho arquitetônico.

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Reuni-me de novo à corporação tipográfica do Diário de Santos, jornal onde labuto há muitos anos, quer como tipógrafo, quer como colaborador, revisor, noticiarista e outros encargos. Estive afastado do Diário de Santos pelo espaço de 10 anos, tempo em que residi em S. Paulo. Pertenci também à Tribuna. E, quando nela trabalhava, assisti à chegada do cadáver de Olympio Lima, o seu ex-proprietário e fundador, falecido no Rio, no Hospital S. Sebastião.

O corpo de Olympio Lima, aqui chegado em 1907, em dias do mês de outubro, foi recebido com grandes homenagens e o acompanhamento ao seu enterro foi uma verdadeira romaria.

A simpatia ao ilustre morto, e a gratidão de muitos, fizeram com que no Cemitério do Paquetá fosse ereta uma herma em homenagem a Olympio Lima, perpetuando assim a memória daquele que muito e incansavelmente trabalhou em prol dos oprimidos desta Santópolis, e, em São Paulo, quando adquiriu o O Commercio de S. Paulo, levantou campanha gloriosa para ele sobre o caso d. Narciza, caso que lhe custou boa dose de desassossego espiritual, o que decerto muito contribuiu para o depauperamento de sua saúde.


Barco no Porto de Santos, ou A Canhoneira Pátria, pintado por Benedito Calixto em 1905 (notada a divergência de datas - Carlos Victorino situa a visita em 1907)

Tela no acervo do Centro Português de Santos. Foto de Carlos Pimentel Mendes, em 25/1/2008