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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - MEDICINA
Medicina, médicos e clientes (2)

Nos tempos dos primeiros médicos em terras santistas
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Esta série de artigos, que depois seria reunida pelo autor Costa e Silva Sobrinho como parte da obra Romagem pela Terra dos Andradas, foi publicada no jornal santista A Tribuna, enfocando assuntos médicos na Santos do final do século XIX e início do século XX. Este artigo foi publicado nas páginas 21 e 20 da edição de 6 de maio de 1951 (ortografia atualizada nesta transcrição):
 


Reprodução de trecho da matéria original

Medicina, médicos e clientes

(Aos drs. Jarbas Barbosa de Barros, Sílvio Guerra e Washington de Giovanni)

Costa e Silva Sobrinho

Era das oito às nove horas - hora em que o céu santista sorri límpido e sereno, nestas manhãs de maio, e em que o sol com afagadora doçura resplende como uma grande péla doirada.

Sentia-se em todas as ruas da cidade o múltiplo rumor da sua vida laboriosa e inquieta.

Na Praça Mauá, em frente do Paço Municipal, perpassavam as mais diversas fisionomias: senhoras, crianças, estudantes, operários, empregados públicos, médicos, advogados, em suma, gente de todas as idades e de todas as classes sociais.

Levara-nos também ali o estudo de um assunto especial.

Por isso, ao mesmo tempo que todas aquelas pessoas iam caminhando, umas a matutar nos seus negócios, outras a conversar e a sorrir, observávamos nós do meio do jardim um correr de casas.

Enlevados, recompúnhamos o passado contemplando assim o presente:

Nessa formosa praça, desde a "Galeria de Cristal" até "A Preferida", isto é, do número 39 ao 51, existem hoje oito prédios. São todos eles relativamente modernos.

Vemos ali, além das duas casas comerciais já mencionadas, a companhia Singer, a sociedade anônima Etam, as casas Lausanne, Minerva, Mattiy e a Jóia Brasil. Essas casas de negócio, os prédios onde estão, a própria denominação da praça refletem um trecho da cidade atual.

Há, porém, nesse lugar, uma coisa bem antiga, na qual ninguém ainda reparou. É o número de prédios. Oito são eles no presente, como dissemos. E, da mesma forma, oito eram eles há mais de um século.

Esse número, só esse número, é que nos transporta ao passado. É ele que nos faz reconstituir na imaginação um recanto da cidade nos tempos idos, quando ali era Rua do Campo, mais tarde Rua Áurea, depois abarcada nesse trecho pelo Largo da Coroação, Largo da Misericórdia e por fim Praça Mauá, como a denominamos hoje.

É ainda esse número que nos faz entrever na penumbra dos anos volvidos as pessoas que ali moraram nas velhas casas desfeitas.

Assim, por exemplo, onde se acha a casa Mattiy residiu Zeferino Barbosa, avô materno do ilustre médico dr. Heitor Guedes Coelho.

No remoto ano de 1822 ficava nesse mesmo lugar a morada de João Mariano de Campos, bisavô paterno do dr. Antenor de Campos Moura, benemérito fundador do Asilo de Mendicidade, e do notável médico santista dr. Luís de Campos Moura, cuja memória sua terra não poderá olvidar.

Na casa pegada, onde está a Jóia Brasil, residiu também na mesma época o guarda-mor Manuel Inácio de Oliveira.

E logo em seguida, no prédio da esquina, que é o da Galeria de Cristal, existiu a casa de um personagem de mui estimável mérito. Vejamos de espaço quem era ele.

Na lista dos habitantes de Santos em 1822, que Alberto Sousa publicou no volume terceiro dos Andradas, lê-se a tal respeito o seguinte: "Rua do Campo, vigésima primeira casa: - José do Amaral, cirurgião-mor, branco, casado, 49 anos. D. Maria Joaquina, sua mulher, branca, casada, 36 anos. Tem três escravos. Agregados: João Batista, branco, solteiro, 18 anos; Adolfo, branco, solteiro, 9 anos; Adena, sua escrava, negra, solteira, 2 anos".

O referido cirurgião-mor José do Amaral havia arrematado essa casa por 450$100, em 27 de março de 1817, em praça, numa execução promovida pelo padre Patrício Manuel de Andrada e Silva contra Antônio Elias da Encarnação Moura.

Consta do respectivo auto esta descrição: "Uma casa térrea coberta de telha, de dois lanços, na Rua do Campo, com fundos para o Monte Serrate, que de uma banda parte com casa do guarda-mor Manuel Inácio de Oliveira e da outra com o Hospital Velho".

José do Amaral veio a falecer de um enfarte, às 7 horas da manhã do dia 23 de julho de 1823. Entre os seus bens foi inventariada essa casa, acrescentada de mais um andar, e com os seguintes característicos: "Uma morada de casas de sobrado, sitas na Rua do Campo, portadas de frente de tijolo, que de uma banda parte com casas da herança do falecido Manuel Inácio de Oliveira, e de outra banda parte por um pequeno beco (agora Rua Riachuelo), junto do Hospital Velho, que foi avaliada por 2:000$000".

Enfim, adquiriu-a em 1825, por arrematação, o escrivão da Alfândega, que depois chegou a inspetor da mesma, Antônio Cândido Xavier de Carvalho e Sousa. Era este casado com d. Rita Olívia de Aguiar Andrada, filha do coronel Francisco Xavier da Costa Aguiar e de d. Bárbara Joaquina de Andrada, irmã de José Bonifácio, o Patriarca.

O cirurgião-mor José do Amaral, nascido em Pernambuco, ainda lá deixou viva sua mãe, d. Maria Antônia da Purificação, quando aqui veio a falecer. Chegou ele a Santos por volta de 1805, como cirurgião aprovado, e viveu exclusivamente de sua Arte de Cirurgia até 1808. Em 1812 ainda se conservava solteiro.

Casou-se depois em S. Paulo com d. Maria Joaquina Pinheiro do Amaral, distinta senhora, da mesma família a que pertenciam Francisco Xavier Pinheiro e Francisco de Assis Pinheiro e Prado.

Distinguiu-se ele pelo trabalho e pelo merecimento. Inteligente e estudioso, nos poucos e escolhidos livros de sua biblioteca soube cavar e recavar quase toda a ciência médica de então.

Acha-se mencionada em seu inventário uma estantezinha contendo sessenta e um volumes bem folheados e usados. Os nossos facultativos terão decerto curiosidade em conhecê-los. São os seguintes:

Almeira (Antonio de -), Tratado completo de Medicina Operatória, 4 tomos.

Idem, Tratado de Inflamação, 4 tomos.

Idem, Dissertação sobre o método mais simples e seguro de curar as feridas de armas de fogo.

Alibert (João Luis -), Tratado das febres perniciosas intermitentes.

Idem, Novos elementos de terapêutica e de matéria médica, 2 volumes.

Barthez (Paulo José -), Ciência do homem, 2 volumes.

Baudelocque (João Luis -), L'art des accouchements, 2 volumes.

Bell (Benjamin -), Tratado das úlceras.

Bichat (Xavier -), Indagações filosóficas sobre a vida e a morte.

Blumenbach (João Frederico -), Instituições Fisiológicas.

Buchan (Guilherme - ), Medicina Doméstica, 10 volumes, trad. de Padreli.

Darwin (Erasmo -), Resumo do Sistema de Medicina e tradução da Matéria Médica.

Demalet, Febres perniciosas.

Ensaio sobre o oxigênio (sem o nome do autor).

Farmacopéia Geral para o Reino e Domínios de Portugal.

Lafaye (Jorge de -), Princípios de Cirurgia, 2 tomos.

Lanthois (E. -), Tísica pulmonar.

Manuel José Afonso e José Francisco de Melo, Novo método de partejar.

Pasta (André -), Tratado de perdas de sangue, 2 volumes.

Plenck (José Jacob de -), Elementos de partos.

Idem, Novo sistema de tumores.

Portal (Antônio -), Curso de Anatomia Medical, 5 volumes.

Richerand (Anselmo Baltasar -), Nosografia cirúrgica, 4 volumes.

Idem, Fisiologia, 2 volumes.

Idem, Erros populares relativos à Medicina.

Rubio (Francisco -), Arte de conhecer e de curar as enfermidades por meio de regras de observação e experiência para a juventude médica.

Simmon (Samuel Foart -), Observações sobre a cura de gonorréia virulenta.

Vademecum (sem nome de autor).

Whytt (Roberto -), Moléstias de nervos, 2 volumes.

Zimmermann (João Jorge -), A epidemia de disenteria no ano de 1765.

Idem, Tratado da experiência na arte de curar.

Esses livros, de superior merecimento e moderníssimos naquela época, constituem hoje preciosos documentos sobre o saber e a prática médico-cirúrgica de José do Amaral.

Há muitos exemplos que frisam bem a sua experiência e competência. Vale a pena citarmos pelo menos dois deles. Venha o primeiro:

No dia 21 de fevereiro de 1807, pelas 10 horas da noite pouco mais ou menos, estava a parda forra Flora Maria Joaquina no botequim de uma mulata chamada Maria Rosa da Conceição, na Rua do Campo, quando ali entrou José Raimundo, contramestre de um barco chegado da Bahia com grande carregamento de negros novos.

Ofereceu aquele homem um copo de licor à ondulosa e errante Flora; e, como esta não quisesse beber, atirou-lhe com o copo na cara, bradando irritadíssimo:

- "Então, tome lá, mulher! Vai-te para o diabo!"

E, logo a seguir, com uma contusão na face, disparou ela aos gritos pela porta fora.

O caso era de devassa, ou, como diríamos hoje, de inquérito.

O dr. Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, na qualidade de juiz de fora, determinou por isso que a ofendida fosse submetida a exame de corpo de delito. Foi este feito, de acordo, com a praxe de então, na residência do juiz, onde compareceu o escrivão com o alcaide do juízo, o cirurgião aprovado José do Amaral e a ofendida.

O juiz de fora recebeu o juramento do cirurgião, pondo este a mão direita sobre o Evangelho, e lhe encarregou que bem e verdadeiramente visse e examinasse o ferimento que haviam feito no rosto de Flora Maria Joaquina. Ao prestar o juramento, prometeu o cirurgião cumprir na forma da lei o que lhe era encarregado.

Logo depois, em presença do mesmo juiz, do escrivão e do alcaide, foi a ofendida vista e examinada pelo cirurgião José do Amaral, que "declarou achar-se uma ferida contusa simples na face, do lado direito, sobre a região malar, com polegada e meia de extensão, seis ou oito linhas de penetração, sem que demonstre perigo algum".

Seguem-se algumas perguntas que o juiz fazia à ofendida e, enfim, o encerramento do auto. Não havia quesitos para serem respondidos. O perito narrava em breve síntese os fatos observados e deles deduzia se a lesão ameaçava perigo ou não.

O segundo exemplo é relativo a um crime de morte. Afigura-se-nos curioso pelos pormenores. Aqui o temos:

No dia 17 de agosto de 1822, às ave-marias, encontrava-se no Hospital Militar, por estar doente, o alferes de caçadores Antônio da Silva Leme, quando começou a promover ali uma grande desordem, chegando a armar-se de espada para acutilar os escravos.

O governador da praça, Cândido Xavier de Almeida e Sousa, ao ter notícia disso, ordenou imediatamente que o recolhessem a uma prisão do mesmo Hospital. E, como se dizia que o preso estava louco, ordenou também aquele governador que pregassem umas argolas na porta da prisão, para maior segurança.

Chamado o carpinteiro Antônio Luís de Freitas, fazia ele o serviço acompanhado do soldado José Faustino, que estava de sentinela na porta do Hospital. Nisso, pediu o alferes à sentinela que lhe desse um pouco de água. Enquanto foi ela buscá-la ao pote, levantou-se o alferes, que se achava sentado numa tarimba, e perguntou ao carpinteiro:

- "Que é que estás fazendo aí?"

O homem, subtraindo-se receoso à realidade, respondeu-lhe:

- "Não sei".

Ato contínuo, puxando de uma faca, deu o preso algumas facadas no interpelado e berrou numa investida:

- "Afastem-se, diabos, senão morrem todos."

O pobre carpinteiro só teve tempo de correr, ainda com o martelo na mão, até a porta do Estado Maior e ali cair morto. O agressor sumiu-se. Algumas horas depois, foi, entretanto, capturado no Convento de Santo Antônio. Procedeu-se no mesmo dia a exame de corpo de delito no cadáver do ofendido.

Consta, assim, do respectivo auto que o cirurgião-mor José do Amaral, do Hospital Militar, fez o referido exame e "declarou achar cinco feridas compreendidas entre a face, o pescoço do lado esquerdo e a nuca, sendo a que se reputa mortal a que penetrou no pescoço, por ter dividido as artérias carótidas, por cuja divisão o considerável derramamento de sangue produziu em poucos instantes a morte. As feridas denotam ter sido feitas com instrumento cortante e perfurante. E de como assim se procedeu e declarou o dito cirurgião-mor, eu escrivão etc."

Limitou-se aqui o médico legista a informar sobre o instrumento que ocasionou a morte e sobre a causa eficiente dela. Hoje em dia, de acordo com a nossa praxe em vigor, teria ele de responder em linguagem mais técnica a uma série de quesitos.

Passemos agora a outra parte, sem levantar mão do assunto.

A varíola, ou bexigas, ainda era no primeiro quartel do século XIX uma moléstia muito grave. A imunização se fazia por processos primitivos. Apesar disso, os resultados entre nós não eram maus.

A José do Amaral, como cirurgião-mor do Regimento de Caçadores da Vila de Santos, enviava o capitão general Franca e Horta, em 4 de novembro de 1810, esta carta:

"Recebi o seu ofício de 31 do mês passado, em que me dá parte do resultado feliz da vacina nessa vila, e me remete a lista dos que tem vacinado. Estimo o bom êxito das suas operações nesta parte e as levarei à presença de Sua Alteza Real logo que vmcê. me remeter uma segunda via da primeira relação que me mandou dos vacinados, por a primeira se achar confundida entre papéis, e não acho".

Vê-se, por aí, que a inoculação da varíola foi generalizada em Santos graças à dedicação e aos pacientes esforços do cirurgião-mor José do Amaral.

E esse fato merece até especial nota porque, em Lisboa, a vacinação só tomou verdadeiro incremento em 1812, quando a iniciou ali o médico brasileiro Francisco de Melo Franco, o célebre autor do poema O Reino da Estupidez, em cuja feitura se diz que tivera também parte José Bonifácio.

O mesmo jornal publicou, na página 17 (capa do segundo caderno) da edição de 13 de maio de 1951 (ortografia atualizada nesta transcrição):


Reprodução de trecho da matéria original

Medicina, médicos e clientes

(Aos drs. José Pedro Leite Cordeiro, Edgard Falcão e Mário Leitão)

Costa e Silva Sobrinho

No estuário de Santos, fronteiras à praia da Banca do Peixe, descansavam de suas longas viagens diversas embarcações. O crepúsculo descia dos morros, pondo nas águas um cinzento azulado. As brisas corriam frescas e fluídas. Para os lados da vila brilhava de longe em longe uma luz indecisa.

Duas canoas ancoravam na praia, sendo logo varadas na areia, à força de braços, por alguns robustos marinheiros. Eram eles tripulantes do barco Grão Penedo e do navio Carmo e Leão, que, saltando em terra, enveredaram pela erma e sórdida viela chamada Beco da Banca. Correspondia este agora à Rua Riachuelo, no trecho que vai da Rua 15 de Novembro à Rua Tuiuti, no cais.

Aberta numa casa de morada, ficava nesse mesmo beco a venda de Valentim Gomes de Miranda, português de Torres Vedras, que corria então nos seus trinta e poucos anos.

Ali entraram todos. Passaram logo a bebericar e cavaquear. Eram 7 de setembro de 18081, e já também sete horas da noite.

Fora, depois de ruidoso bate-boca, dois marinheiros se atracaram em ferrada e crespa luta. Uma faca fuzilara no lusco-fusco. Do ferido, ainda agarrado ao contendor, eram estas palavras:

- "Espera, não se vá embora, que você me feriu" - e conseguia detê-lo até que o prenderam.

Trancafiado o criminoso no Forte da Vila, foi o marinheiro Domingos Fernandes, da lancha Senhora da Conceição e São Joaquim, que recebera a facada, submetido a exame de corpo de delito por dois cirurgiões: o cirurgião aprovado José Rodrigues Martins Cardoso e o cirurgião-mor do Presídio da vila, João Batista Teixeira.

Consta do respectivo laudo que "logo pelos ditos cirurgiões foi visto e examinado o ferimento, e declararam achar-se o ferido com uma ferida feita com instrumento cortante e perfurante, na parte anterior do estômago, em cima da cartilagem da espinhela, capacidade de um ponto, que ofendeu cútis, cutícula, membrana adiposa, parte inferior do músculo triangular do osso externo que prende a cartilagem, e passou a ofender a parte superior do músculo reto do ventre baixo piramidal, e penetrou o peritôneo, e ofendeu a parte inferior do fígado, e passou ao ventrículo. E não podiam averiguar a maior ofensa por ser a ferida estreita, e não acharem sinais demonstrativos, a qual ferida é perigosa, e mortal".

No mais antigo recenseamento de Santos, que data de 1765, vamos encontrar morando no Beco de Gonçalo Borges o licenciado José Rodrigues, de 33 anos, solteiro, e que vivia da Arte de Cirurgia. Beco de Gonçalo Borges era o trecho da atual Rua do Comércio (antigo Beco do Alfaia), que vai hoje da Rua 15 de Novembro até a Praça Rui Barbosa. Esse beco teve o nome também de Rua dos Quatro Cantos.

O capitão João Teixeira de Carvalho, governador da Fortaleza do Itapema, em depoimento que prestou em juízo em 15 de outubro de 1801, a respeito de umas casas da Irmandade dos Passos, assim se referiu à Rua dos Quatro Cantos:

As casas de sobrado sitas na rua que vai dos Quatro Cantos para a Rua de Santo Antônio e as do beco da falecida Maria Francisca (de quem ele era sobrinho), tinham em cima da porta da rua um rótulo que dizia: Casas do Senhor dos Passos.

Quando for feito um estudo toponímico bem cuidadoso das ruas da cidade, há de se verificar que, no começo do século XIX a expressão "Quatro Cantos" aparecia em três locais diferentes.

O ponto comum para o qual se dirigiam a Rua Direita, a Rua Antonina, o Beco do Inferno e a Travessa da Alfândega Velha, formando quatro esquinas, era denominado Quatro Cantos, nome conservado até hoje pela gente antiga de Santos. Travessa dos Quatro Cantos, era o Beco do Inferno. E Rua dos Quatro Cantos, ou "rua que vai dos Quatro Cantos para a Rua de Santo Antônio", era o antigo Beco do Gonçalo Borges, como já dissemos.

Quando em 13 de junho de 1814 faleceu d. Maria Garcez da Rocha, mulher do licenciado José Rodrigues Martins Cardoso, em seu inventário, processado em 1815, foi assim descrita a casa do antigo Beco do Gonçalo Borges: uma casa na Rua dos Quatro Cantos, indo para a Rua de Santo Antônio, de pedra e cal, coberta de telhas, e parte de um lado com a casa de sobrado de d. Mariana Francisca da Conceição e de outro com casa de herança, em chãos livres, com portadas de cantaria.

Os fundos, em virtude de uma doação que por escritura de 17 de julho de 1813 o capitão Manuel de Alvarenga Braga fez ao licenciado José Rodrigues, davam para o Beco do Inferno, onde havia uma saída. Essa casa da Rua dos Quatro Cantos ficaria hoje, com a diferença talvez de poucos metros, na Rua do Comércio n. 14, onde está a Leiteria S. João.

O Beco do Inferno era então uma viela sórdida, estreitíssima, na qual um marco de pedra ou frade dava no centro de cada extremidade a passagem de veículos. Chamava-se também, por esse motivo, Rua Suja.

E por causa de haver possuído ali um correr de casas e morado mesmo em uma delas d. Maria Francisca Coelho, boa senhora, de muito destaque social, davam-lhe o nome familiar de Beco da Maria Francisca.

O Beco do Inferno conseguiu finalmente ilibar-se deste nome diabólico, apelidando-se em nossos dias Rua Frei Gaspar. Sabe-se que esse beco hoje compreenderia apenas a parte da Rua Frei Gaspar que vai da Rua 15 de Novembro à Praça Rui Barbosa.

Afigura-se-nos enfim que a má fama com que ele desasseava a vila e depois a cidade não lhe era privativa. Santos outrora era imunda, se dermos crédito ao que disse Antônio José da Franca e Horta, governador e capitão-general da Capitania de S. Paulo, neste ofício enviado em 25 de abril de 1809 ao juiz de fora de Santos, a respeito do estado sanitário local:

"Tendo sido testemunha ocular das imundícies, águas estagnadas em valas, o fétido em que se achavam as ruas desta vila, aumentando a isto o grande número de porcos dispersos por elas, o que tudo faz resultar as mais tristes conseqüências de enfermidades que sobre este povo são motivos assaz ponderosos, que me obrigam a fazer ver a vmcê. a pena com que vejo serem cumpridas as mais restritas leis estabelecidas para a polícia. Portanto, depois de lhe estranhar tal procedimento, passo a ordenar-lhe dê as mais sérias e prontas providências a fim de se executar o que sobre este assunto têm providenciado as leis e posturas; devendo, outrossim, dar-me vmcê. parte do que a este respeito providenciar, a fim de que eu tenha a satisfação de ver por esta parte providenciada a maior origem da epidemia com que vejo atacado este povo. Deus guarde vmcê." (Docs. Ints., 58, p. 135).

O licenciado José Rodrigues tinha nascido em 1731, no povoado de Anja, do Concelho de Leiria, bispado de Coimbra. Homem de notória devoção, em 1791 era juiz da Irmandade de S. Benedito. Irmão de mesa da Irmandade do Santíssimo Sacramento, em 1794. E quando faleceu de uma apoplexia, em 24 de junho de 1819, aos 78 anos, foi sepultado na Ordem Terceira de São Francisco.

Devia ser ele gordanchudo e sanguíneo como o escudeiro Sancho (N.E.: refere-se decerto o autor à história D. Quixote e Sancho Pança, de Cervantes). Por isso, da moléstia que o vitimou nunca pereceria o célebre médico francês Antonio Portal, que era esguio e magro, só ossos e nervos.

Conta-se até deste afamado autor da História da Anatomia e da Cirurgia que, um dia, abafando os passos, se abeirou do leito de um dos seus doentes, que estava em delírio, e ouviu que ele variando exclamava: - "Que queres de mim? Sai daí, fantasma!"

Sua magreza era proverbial. Quando foi nomeado comendador da Legião de Honra, em 1829, conta-nos Cabanés, o imprevisto da notícia lhe causou tal emoção que um médico, que se encontrava presente, chegou a dizer: - "Teria tido ele, decerto, uma apoplexia, se lhe não faltasse sangue nas veias".

Os honorários médicos, no século passado (N.E.: século XIX), eram muito módicos, a julgarmos pelas contas dos cirurgiões de Santos. Assim, em 4 de maio de 1800, quando aqui faleceu de um fluxo de ventre d. Ana Joaquina Lustosa, solteira, com 60 anos mais ou menos, a conta de honorários médicos que figura no respectivo inventário é esta:

"A falecida d. Ana Joaquina Lustosa ficou devendo ao cirurgião José Rodrigues Martins Cardoso o seguinte: Por 18 visitas que lhe fiz na enfermidade de que faleceu, desde 13 de abril até 4 de maio, 2$880". Vê-se por aí que o cirurgião fez quase uma visita por dia e cobrou cento e sessenta réis por cada uma delas.

Não menos moderado na cobrança de seus honorários era o cirurgião-mor José do Amaral. Vamos reproduzir na íntegra um documento escrito por seu próprio punho. Ei-lo aqui:

"José do Amaral, cirurgião-mor do Regimento de Caçadores que guarnece a Praça de Santos, pro Sua Alteza Real, que Deus guarde, etc.

"Certifico que tratei por diferentes vezes do pardo João, oficial de marceneiro, em casa de José do Egito Costa, de umas erisipelas, como também de uma febre intermitente que lhe durou perto de quatro meses, de cujo tratamento recebi por equidade 4$800 réis. E por me ser pedida a presente com o despacho do ilmo. sr. governador desta Praça, passei-a e afirmarei se necessário for com o juramento de meu cargo. Praça de Santos, 24 de novembro de 1810. (a.) José do Amaral".

Este cirurgião foi quem supriu durante alguns anos as faltas do médico do Hospital Militar.

Situado a sessenta metros mais ou menos da borda do estuário, ocupava esse Hospital Militar toda a parte lateral esquerda do edifício do antigo Colégio dos Jesuítas.

Duas outras partes do mesmo edifício eram tomadas, uma pela Alfândega e a outra pelo palácio, palacete ou conjunto de compartimentos que eram reservados para residência dos generais da Capitania, quando vinham a Santos.

Pela parte de Leste ficava o Quartel do Regimento, separado do Hospital por um pátio de sessenta metros de largura. Era esse pátio todo aberto para o lado de mar e ia dar num pequeno forte, muito antigo, onde ficava a Guarda Principal da Praça.

Tinha o Hospital Militar duas entradas. Uma, que era a principal, defronte do pátio da Matriz, olhava para o Sul, a outra dava para o pátio do Quartel. A porta principal era a mesma que servia antigamente de portaria do Colégio dos padres Jesuítas. Logo na entrada existiam dois quartos, um à direita, maior; e outro à esquerda. O maior servia de enfermaria, e acomodava seis camas. O menor era o necrotério.

Vinha depois um corredor do qual, pela esquerda, saía uma escada que levava às enfermarias de cima e à torre.

Benedito Calixto, quando pintou o prédio do Colégio dos Jesuítas, não se esqueceu dessa torre. Mas reproduziu apenas os restos de uma de suas paredes, a qual vai subindo pela ala direita do antigo edifício, toda esbrechada, coxeando como um velho mendigo altaneiro.


A antiga Matriz e o Colégio dos Jesuítas. Neste estava o Hospital Militar. Quadro de Calixto, num bico-de-pena de Ribeiro da Silva

Imagem - bico-de-pena de Lauro Ribeiro da Silva (Ribs) - e legenda publicadas com o texto

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