Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0260h4.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 09/07/08 15:45:32
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - MEDICINA
Medicina, médicos e clientes (3)

Nos tempos dos primeiros médicos em terras santistas
Leva para a página anterior
Esta série de artigos, que depois seria reunida pelo autor Costa e Silva Sobrinho como parte da obra Romagem pela Terra dos Andradas, foi publicada no jornal santista A Tribuna, enfocando assuntos médicos na Santos do final do século XIX e início do século XX. Este artigo foi publicado nas páginas 21 e 22 da edição de 26 de agosto de 1951 (ortografia atualizada nesta transcrição):
 


Reprodução de trecho da matéria original

Medicina, médicos e clientes

(Aos drs. Antonio Arantes, Nicolino Machado e Lauro Nunes Pimenta)

Costa e Silva Sobrinho

No coração do Ribatejo, num cantinho florido da terra lusitana chamada Vila do Cartaxo, vinha ao mundo em 1797 um robusto menino, filho de bons e humildes agricultores. Levaram-no oito dias depois à igreja do povoado, em cuja torre os sinos sob o álacre chilrar das andorinhas se desfaziam em festivos repiques. Ali se batizou com o nome de Vitorino.

No meio de perfumadas flores e extensos vinhedos, onde no mês de setembro inchavam, amadureciam e ostentavam cores várias os infinitos cachos de uvas, criou-se a sua infância e robusteceu-se a sua juventude. Depois estudou, instruiu-se, meditou e conviveu com o passado glorioso da pátria.

Afinal, dentre a poeira de ouro dos seus sonhos, prefulgiu um dia o Brasil. E em 1836, já tendo casado em S. Paulo, com Ana Luisa de Jesus, morava Vitorino José da Costa em Santos, e aqui vivia da sua arte de Cirurgia.

Residia em 1836 na Rua Meridional da Matriz, casa número 28, isto é, nas proximidades do prédio nº 59, da atual Praça da República, onde se acha a casa Sousa Santos & C. Ltda.

Singelo no trato, de uma solicitude sempre alerta, adquirira ele desde logo um grande círculo de relações, vindo a ser por isso um dos homens que maior número de compadres e comadres possuía então no município.

Surdiu de seu consórcio numerosa prole. Pelo que, ainda hoje, desse tronco várias pessoas trazem a descendência.

Recordemos, em resumo e de fugida, que desse cirurgião eram filhas d. Teresa de Jesus Costa, que casou aos dezessete anos, em 9 de dezembro de 1848, com Antonino Marques de Sais, e d. Mariana Rita de S. José, casada em 7 de dezembro de 1865, com Valêncio Augusto Teixeira Leomil Júnior.

Provedor da Santa Casa em 1844, Vitorino José da Costa desempenhou o cargo de vereador desde 1845 até 1848, tendo servido na mesma vereação Antônio Martins dos Santos, como presidente, Cláudio Luis da Costa, José Antonio Vieira Barbosa e outros. Ocupou depois no quadriênio de 1853 a 1856 a presidência da Câmara.

Na prática da Medicina via doentes e exercia as suas funções de cirurgião-mor, cargo para o qual fora nomeado nos últimos anos de vida. Como médico-legista, funcionou num dos mais célebres processos criminais que já houve em Santos.

Foi um crime espantoso. Praticaram-no os facínoras com horrenda crueldade. O caso, em ligeiros traços, ocorreu assim:

No dia 8 de setembro de 1831, na quadragésima casa da Rua Áurea, contígua ao Açougue público, hoje Rua General Câmara, 76, entre as nove horas da noite e as dez, cinco indivíduos ali penetraram. Era a casa onde morava o negociante português Manuel Teixeira de Sousa, viúvo, de 54 anos, o qual tinha em sua companhia apenas uma negra escrava, de nome Joana, que cozinhava e fazia os demais serviços domésticos.

Um dos malfeitores, homem branco, trazendo um ponche e com uma faca na mão, apareceu de repente na cozinha, onde encontrou a mencionada preta ceando, e lhe disse que se falasse, ali mesmo a mataria, e naquele lugar permaneceu de guarda até que os companheiros acabassem de executar o delito. Só então pôde ela ver a saída de cinco pessoas, entre as quais havia militares e civis.

O negociante Manuel Teixeira de Sousa tinha sido assassinado e roubado. Estava o cadáver num dos quartos da casa, meio encostado a um grande baú, que se achava arrombado e sem nada dentro. De mãos amarradas para trás, com um lenço metido na boca, um pano na cabeça e um lenço encarnado amarrado na cabeça com dois nós apertados na nuca, apresentava dessa forma a vítima a cara toda tapada.

O crime impressionou a vila inteira, pelo modo nunca visto como fora perpetrado. Logo cedo, no dia nove, o juiz de paz Barnabé Francisco Vaz de Carvalhais determinou que se procedesse ao exame de corpo de delito pelos cirurgiões aprovados Sebastião Ferreira da Silva e Vitorino José da Costa.

Em seguida instaurava o processo, no qual eram ouvidas trinta testemunhas e figuravam três facas encontradas no local do delito, tendo uma delas ponta de diamante. Esta arma, que denunciava o requinte de crueza do seu portador, era usada então pelos delinqüentes mais perigosos.

Feito o aludido exame, declararam os peritos "ter o morto uma ferida penetrante na parte esquerda do baixo ventre, da extensão de duas a três polegadas, e outra na parte média do estômago, penetrante, da extensão de duas polegadas, e ainda outra na parte inferior do peito direito, da extensão de uma polegada, penetrante, e todas mortais, feitas com instrumento de ferro cortante, de ponta, que julgavam ser faca". Conforme a graveza do delito, receberam enfim os réus a merecida punição.

Passemos agora a outro assunto.

As visitas médicas, há cem anos atrás (N.E.: isto é, cerca de 1850), custavam em geral 2$000. Tendo-se em vista o desvalor da moeda, não ficavam em muito menos do que hoje. Folgamos de poder oferecer aqui,sobre o assunto, mais um documento interessante. É a conta apresentada pelo médico que tratou de d. Gertrudes Saturnina da Silva, rica matrona, falecida nesta cidade a 5 de setembro de 1864.

Reza ela deste teor: "Importância de dezesseis visitas à falecida dona Gertrudes; 32$000. Santos, 12 de setembro de 1864 - O Cirurgião Vitorino José da Costa".

O cirurgião Vitorino foi também quem tratou de d. Rosa Maria Leite, em 1833, quando essa senhora, com mais de noventa anos de idade, adoeceu e veio a falecer. Nas vésperas do trespasse, fez ele junta médica com o cirurgião Cláudio Luís da Costa. Cada qual cobrou pela conferência 6$000, honorários que não eram elevados, levando-se em conta o que cobravam os boticários, os que se encarregavam do funeral e a música.

Outrora os enterros se faziam de noite; e quase sempre, se o extinto tinha bens ou alguma importância, com acompanhamento de música. Por esta se pagava um preço relativamente muito elevado. Numa frase popular assaz conhecida, diziam que "saía mais cara a mecha que o sebo", isto é, despendia-se mais com o que era secundário do que com o que era principal.

No caso em apreço, por exemplo, a Manuel Joaquim da Trindade, pela música para o depósito, enterro e ofício, foi paga a importância de 48$000. A reversão ao pó e ao verme final, com música e na calada da noite, devia causar uma tristeza sombria. O passado, bem recordado, em certos casos não vale a pena ser recomposto.

O misterioso ocaso da morte desceu sobre o cirurgião-mor Vitorino  José da Costa em 10 de abril de 1867.

Vejamos outro cirurgião.

Para a Guarnição Militar de Santos nomeavam-se sempre bons cirurgiões. Um deles foi Manuel Mendes Cardoso, que em 1765 contava sessenta anos e morava na décima terceira casa da Rua Direita. Hoje diríamos Rua 15 de Novembro, pouco mais ou menos no número 119, onde agora está o Banco Nacional Cidade Nova York.

Casado duas vezes, tivera ele de cada matrimônio um filho médico, que foram os drs. Tarquínio Pereira Cardoso e Joaquim Pereira Cardoso.

Manuel Mendes Cardoso tinha sido desde o início da sua clínica amigo certo da família do velho Bonifácio José de Andrada, pai dos Andradas da trilogia imortal, que o tinha como uma das grandes culminações da arte de curar naquele tempo.

Memorável sinal desse alto conceito vamos encontrar na História da Companhia de Jesus no Brasil, volume IX, pág. 158, do padre Serafim Leite, quando este nos dá notícia dos seguintes documentos:

"Certificado do padre Francisco de Toledo, reitor do Colégio de Santos, sobre a capacidade e ciência do licenciado Manuel Mendes Cardoso como cirurgião e ainda como médico. - Colégio de Santos, 18 de agosto de 1746.

"Tem junto outro certificado a favor do mesmo, passado por José Bonifácio de Andrada, médico pela Universidade de Coimbra. Santos, 4 de agosto de 1746".

As figuras desses cirurgiões, que temos encontrado diluídas na meia tinta crepuscular do passado, bem merecem ser preservadas do esquecimento.

Há nelas muita coisa elevada, nobre, grandiosa, que é escassamente conhecida hoje em dia. A ciência atual, que atravessa um dos seus mais lustrosos períodos de progresso, deve render-lhes o mais honroso preito. Foram eles que, com o seu saber ainda frágil, se afadigaram, se mataram a procurar os meios de combater as doenças e os sofrimentos.

Eles imolaram muitas vezes os lazeres e a própria saúde para salvar os nossos semelhantes e restituí-los à vida de corpo são e alma recaldeada para todas as lutas. Devem receber, ainda que tarde, os dividendos da sua dedicação e dos seus sacrifícios. Vinculemos os seus nomes à história da cidade.

O mesmo jornal publicou, nas páginas 21 e 22 da edição de 12 de agosto de 1951 (ortografia atualizada nesta transcrição):


Reprodução de trecho da matéria original

Medicina, médicos e clientes

(Aos drs. Othon Feliciano, Grimaldo Dutra e Carlos Moreira Gomes)

Costa e Silva Sobrinho

Na segunda metade do século XVIII, residiu vários anos em Santos um cirurgião português, natural de Lisboa, chamado tout court José Alves. Era homem branco e cristão velho.

Na história da sua vida, segundo testemunhos insuspeitos, havia três capítulos eloqüentes: mulherio, ignorância e sovinice - uma desgraça, três desgraças.

Assim, sabiam todos que o nascimento de uma menina, filha de Ana de Chaves, mulher solteira, natural de S. Paulo, havia constituído uma das últimas aventuras amorosas desse cirurgião. Fato, aliás, que se tornara falado porque, vivendo Ana de Chaves em discreta condição de horizontalidade, já tinha duas outras filhas e possuía cada uma um progenitor diferente (N.E.: SIC - deveria ser genitor, pai, e não progenitor, avô).

A 20 de janeiro de 1755 levava a criança à pia batismal, como padrinho, o licenciado José Rodrigues Martins Cardoso, "professor de Cirurgia, aqui casado", e punham-lhe o nome de Rosa.

José Alves via agora desabrochar, sob a ternura dos seus olhos, a graça frágil daquele pequenino ser. Seu maior desejo, dizia ele, era trabalhar muito e ganhar dinheiro para dotá-la com um bom patrimônio. Já nem pensava em voltar para a metrópole.

Mas... um belo dia, os arroubos da saudade da terra natal lhe produziram no espírito completa mutação. Meteu-se em u navio que estava em nosso porto de Verga d'Alto para Lisboa. Foi-se embora. E nunca mais deu notícia de si. Decorridos vários lustros, quando já se lhe cerravam as portas da mocidade, Rosa Alves Alexandrina ainda aqui pensava resignada no transvio paterno.

José Maria da Costa e Paiva foi outra figura curiosa de cirurgião que viveu entre nós. Residiu em Santos apenas três ou quatro anos. Filho de Bernardo José Guedes e de sua mulher d. Ana Maria, fora casado com d. Francisca Maria da Costa e Paiva, filha do cirurgião-mor Jerônimo Francisco dos Reis Guimarães e de sua esposa d. Francisca Maria das Chagas. Teve dois filhos santistas: Eugênio, em 1833; e Francisco, em 1834. Nesse ano, vamos encontrá-lo também no exercício na função de jurado.

Em diversos documentos, aparece ele mencionado como "professor". Indaguemos a razão disso:

Celso Cornélio Aulo, o célebre enciclopedista romano autor da obra intitulada "De ré médica", foi quem primeiro sinonimizou "médico", ou "cirurgião", com "professor". Licurgo Santos Filho, tratando entre nós desse assunto, explica que "professor de cirurgia e professor de medicina foram expressões usadas nos tempos coloniais, e mesmo em princípio do século XIX, tanto em papéis oficiais como em papéis outros, para designar cirurgiões ou físicos".

Depois, argumenta:

"Ora, no Brasil, antes de 1808, não existiram escolas médicas nem aqui clinicaram professores de Coimbra. Portanto, o título de professor, no Brasil-Colônia, foi adjudicado a cirurgiões ou físicos que tiveram, tinham ou ainda viriam a ter discípulos ajudantes, aprendizes".

E conta-nos, enfim, que "no Recife, em 1840, o cirurgião Manuel Pereira Teixeira antepunha ao seu nome o título de Professor de Cirurgia" (Hist. da Med. no Brasil, tomo I, págs. 172 e 174).

Em Santos, vários cirurgiões usaram desse título. Um deles, como dissemos, era esse Costa e Paiva. Até nos atestados não deixava de mencionar a qualificação de professor. Ponhamos alguns exemplos.

Em 1833, no sítio denominado Porto, na ilha de Santo Amaro, pertencente então ao espólio de d. Rosa Maria Leite, estava uma escrava de nome Luzia a plantar ramas de mandioca em uma roça, quando viu aproximar-se dali um cavalo. Tratou desde logo de enxotá-lo. Mas aconteceu dar-lhe o animal um coice na barriga e ficar enferma a referida escrava.

Contra a introdução de gado vacum e cavalar no aludido sítio, os quais só serviam para destruir as plantações, os arvoredos, e para causar prejuízos, como esse do ferimento da escrava, protestou judicialmente Joaquim José Lopes, como testamenteiro e inventariante de d. Rosa, contra o herdeiro depositário do imóvel, José Marques Leite.

Procurou este mostrar que a doença da escrava não resultara do coice recebido, mas que já sofria ela de uma moléstia crônica, que se agravara por outros motivos. Disso, a prova mais concludente que o depositário pôde oferecer está no seguinte atestado:

"Eu abaixo assinado atesto que, no dia 24 de outubro do presente ano, fui chamado para ver na qualidade de professor, a preta Luzia, de nação conga, a qual encontrei com uma inflamação no estômago, intestino, duodeno e fígado; e tendo feito a análise médica necessária, conheci com evidência que esta inflamação existia no estado crônico desde longo tempo, e que no estado atual não fez mais do que exacerbar-se, por infração do regime que devia conservar, atendendo sempre ao seu estado. Eu lhe apliquei os socorros que a arte aconselha em semelhantes casos, os quais aproveitaram, e se acha restabelecida.

"Contudo, não assevero que deixará de ser de  novo insultada do mesmo ataque se for excessiva em tabaco ou gula. Passo o referido na verdade, e o juro aos Santos Evangelhos. - Santos, 18 de novembro de 1833. (a.) José Maria da Costa e Paiva".

A escrava Luzia era casada, contava 50 anos de idade, e tinha sido avaliada no inventário por 100$000. Os honorários médicos cobrados pelo seu tratamento andaram em 16$000, conforme nos mostra este recibo:

"Recebi do sr. José Marques Leite a quantia de dezesseis mil réis, pelo curativo que fiz, na qualidade de professor, à preta Luzia, conga. - Santos, 12 de dezembro de 1833: (a.) José Maria da Costa e Paiva".

No mesmo ano de 1833, tendo ficado enfermo o negociante português Manuel Joaquim da Silva Quaresma, prestaram-lhe assistência os clínicos Alexandre Glass e José Maria da Costa e Paiva. A moléstia era grave. E o doente faleceu no fim de três meses, isto é, a 5 de setembro do referido ano. Costa e Paiva cobrou de honorários 100$000. Assim reza o recibo por ele passado:

"Santos, 25 de setembro de 1833. O sr. José Barbosa de Lima. Pelo trabalho que tive, na qualidade de professor, quase por três meses (inclusive duas juntas de professores), com o sr. Manuel Quaresma, na grave moléstia que terminou seus dias 100$00.

"Recebi a conta acima do dito sr. Lima, Santos. - Era ut supra. - José Maria da Costa e Paiva".

O dr. Alexandre Glass cobrou muito menos. Eis a conta de honorários médicos que apresentou:

"O falecido sr. Quaresma,

"A Glass.

"Conferência e visitas: 20$400.

"Santos, 8 de setembro de 1833".

As conferências feitas por médicos e cirurgiões para esclarecimento de casos clínicos complicados não eram de muito uso em Santos. As juntas médicas dependiam em geral das posses ou da importância do paciente. Demais, surgiam muitas vezes entre os médicos que nelas tomavam parte discordâncias e desavenças por qualquer bagatela.

O Peregrino da América dá-nos notícia de uma junta médica que se teria realizado no século XVIII, entre alguns cirurgiões. Em síntese, o caso foi este:

Certo enfermo mandou chamar a três cirurgiões, por não haver médicos no local. estava o enfermo deitado em um estrado, quando chegaram os três cirurgiões. Sentaram-se junto ao doente, e como a enfermidade parecia ser opilação, votou o primeiro dizendo que se tratava de um caso de hidropisia anasarca. No sentir do segundo, era uma opilação flatulenta.

Diagnosticou o terceiro que a doença era uma icterícia complicada com flatos uterinos. Os outros outros dois, com os olhos arregalados e um riso largo derramado pela boca fora, começaram a bater com as mãos nas coxas. Indagou deles então o terceiro:

- Qual a razão de tantas guinadas de riso?

E responderam: - rimo-nos, porque sendo o enfermo homem, o quer vossa mercê fazer mulher.

Nasceu daí uma discussão renhida e porfiada, seguida de sopapos e luta, vindo a cair um dos cirurgiões em cima do enfermo. Começou este a gritar que os três cirurgiões o tinham matado.

Deram eles às gâmbias pela porta fora. O doente começou a expelir uma supuração pela boca. Voaram a socorrê-lo a esposa e algumas vizinhas, as quais lhe foram dando caldo de galinha com leite de peito, e assim o foram fortalecendo, até que em breves dias ficou restabelecido.

Divertimo-nos um pouco do nosso assunto, razão é que a ele nos tornemos.

Ao dr. Alexandre Glass costumavam dar também o título de professor. Mas ele, com aquela modéstia que lhe avivava o prestígio da capacidade, nunca o empregou. Inglês, nascido na Escócia, em 1803, era esse médico filho de Diogo Glass e de d. Helena Glass. Veio para Santos em 1829, pouco depois de formado, e morou durante os primeiros anos em casa de Guilherme Backheuser.

Consevou-se sempre solteiro. Há entretanto na sua biografia uma mulher cujo nome ele cautelosamente sempre ocultou. Teve com ela uma filha, de nome Joana Rosa de Jesus Glass, que foi reconhecida, e em 1853 casou com Antônio de Padua do Coração de Jesus. Deu-lhe esse casal cinco netos. Foram eles: Alexandre, em 1854; Antônio, em 1856; Joana, em 58; Bernardino, em 59; e Manuel em 61.

Possuía o dr. Glass, nos seus últimos tempos, uma chácara no morro de S. Bento, duas casas na Rua da Palha (hoje da Constituição), um terreno na Rua dos Quartéis (atual Xavier da Silveira) e uma casa na Barra. As duas casas da Rua da Palha deixou-as em legado às africanas Leonor e Mariana, escravas que arrematara em hasta pública para lhes dar apenas serviço temporário.

Estreitíssimas foram as suas relações com os Florindos, isto é, com José Joaquim Florindo e Silva, Miguel José Florindo e Romão José Florindo, e também com Manuel Pereira dos Santos, Guilherme Backheuser e Gustavo Backheuser.

Como médico, tinha uma copiosa e fiel clientela. Trataram-se, por exemplo, com ele, Luís Batista da Silva Bueno, d. Emerenciana Jesuina Bueno, Manuel Joaquim da Silva Quaresma, Rosa Maria da Silva Bastos, o sargento-mor Bernardino Antonio Vieira Barbosa, o sargento-mor Bernardo Bueno de Sousa Lobo e inúmeras outras pessoas.

Para ele, as três virtudes teologais do médico eram: Ciência, Paciência e Consciência. Não se acovardava diante dos males sutis e traiçoeiros, estranhos mesmo ao saber dos mais notáveis galenos do seu tempo, antes pelo contrário os combatia com a coragem serena de um verdadeiro homem de ciência. Tinha imensa fé no seu arsenal terapêutico. Brandia por isso as suas armas com arrebatado entusiasmo.

Se o mal recrudescia, vindo azedar com mais fel o cálix do enfermo, apoderava-se dele então uma excessiva preocupação investigatória. É que ele aliava perfeitamente na sua personalidade invulgar o espírito do cientista ao espírito sacerdotal. O espetáculo da natureza fora da completa normalidade figurava-se-lhe um desafio ao desvelo e ao zelo do clínico. Lutava, à vista disso, com todas as suas forças, contra os assaltos das moléstias.

No ano de 1850, quando em Santos houve um andaço de tifo e grassou pela primeira vez a febre amarela, o dr. Glass, curtido de multiplicadas fadigas, encontrou enfim a morte.

A propósito dessa primeira manifestação aqui da febre amarela, escreveu Guilherme Álvaro:

"Em fins de 1849 a febre amarela desembarcava no Rio de Janeiro e ali se instalava, causando a grande epidemia de 1850, e Santos não podia escapar à visita da doença, dada a sua proximidade da Corte e a semelhança das suas condições e de clima. De fato, neste ano, em abril, aparecia o primeiro óbito pela doença em Santos; era um rapaz português, caixeiro, tratado no Hospital da Santa Casa. Mais alguns casos e óbitos ocorreram até o fim do verão, quando a febre desapareceu, não voltando nos anos seguintes, de 1851 e 1852". (A Campanha Sanitária de Santos, p. 12).

Labutou, porém, em erro o saudoso e preclaro delegado de Saúde de Santos ao dizer que a febre amarela não voltou em 1851 e 1852. Em 1851 ela causou até maior número de vítimas do que em 1850. Uma delas foi o dr. Júlio Hensler, médico, de 36 anos, casado, natural do Grão Ducado de Baden, que veio a falecer em 14 de maio de 1851.

A Revista Comercial, hebdomadário pertencente ao advogado dr. Guilherme Délius, assim noticiou em 1850 o passamento do dr. Glass:

"Faleceu, no dia 5 do corrente mês, pelas 8 horas e meia da manhã, vítima da febre amarela, o dr. Alexandre Glass.

"Vinte e dois anos havia que este ilustre médico, nascido na Escócia e formado na Universidade de Edimburgo, tinha-se constituído santista e exercia nesta cidade sua nobre profissão. Dotado de qualidades não vulgares e de uma probidade e honradez digna de inveja, soube ganhar o coração de todos os habitantes de Santos, que geralmente o estimavam e tinham em grande conceito.

"Sua morte tem sido muito chorada e profundamente deplorada pelos numerosos amigos que possuía, e pela pobreza, que nele perdeu um pai carinhoso e benfazejo".

Médico de uma sociedade urbana modesta, como devia ser a de Santos naquele tempo, o dr. Glass deixou entretanto de si grata e duradoura memória.

Qual perfume que uma aragem traz de muito longe, são estas ligeiras evocações da sua vida laboriosa e prestadia.

Leva para a página seguinte da série