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ROTA DE OURO E PRATA
Histórias: o porto de Santos no ano de 1905-C

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Artigo publicado no jornal A Tribuna de Santos em 13/7/1995:
 
Um flash histórico do cais santista na época, abordando as principais companhias de navegação que serviam o porto

José Carlos Rossini
Colaborador (de Genebra, Suíça)

Em 1905, um menino de sete anos, igual a tantos outros de sua idade e do seu tempo, brincava pelo Macuco, a correr pelas ruas e vielas ao longo dos grandes armazéns onde se estocavam as riquezas desembarcadas ou a embarcar - dentre estas, é claro, o café.

Muitos anos se passaram o menino crescido tornou-se poeta, jornalista e, mais tarde, diplomata e cosmopolita viajado. Ruy Ribeiro Couto, homem de grande sensibilidade, cantaria em seus poemas as impressões que marcaram a infância e juventude vividas em Santos, bem próximo ao cais do porto.

"Nasci junto ao porto, ouvindo o barulho dos embarques, cresci junto ao porto, vendo a azáfama dos embarques, o apito triste dos cargueiros que partiam e que deixavam longas ressonâncias na minha rua".

Ou ainda: "...o apito longo das sereias, nas partidas, foi a música maravilhosa dos meus ouvidos de criança. Oh, transatlânticos com bandeiras enfeitadas, não é verdade que viestes para levar-me".

Mas quais eram estes cargueiros e transatlânticos que faziam sonhar o pobre menino órfão que, já homem, confessaria que a recordação daqueles seus anos de infância estava toda naquele pedaço de cais entre os armazéns 8 e 10... quais eram estes navios... "imóveis, com lanternas vermelhas nos mastros... altos como instransponíveis muralhas e tombadilhos inatingíveis...", quais eram estes vapores desconhecidos que constituíam "...a imagem cotidiana com que o universo me mandava alegria"?

Quais eram, menino Ruy, quais eram estes vapores teus?


O vapor Les Alpes era um dos que freqüentavam o porto de Santos em 1905
Foto, publicada com a matéria: cartão postal da coleção de J. C. Rossini

Em 1905, alguns destes vapores levavam na proa (frente) nomes bem conhecidos de Ruy Ribeiro Couto e por ele relembrados mais tarde em seus escritos: o Clyde, da Royal Mail; o Würzburg, do NordDeutscher Lloyd (NDL), os pequenos Guasca, Rudi e Attilio, com a bandeira verde-amarela a tremular na popa (ré), que nos seus tráfegos de cabotagem (navegação doméstica) tantas vezes entravam e saíam do Porto de Santos.

No dia em que o menino Ruy festejava seu sétimo aniversário, em 12 de março de 1905, entrava procedente de Bremen (Alemanha) o transatlântico Bonn, da armadora NDL, e saía o francês Les Alpes, para Buenos Aires (Argentina).

Se o pequeno Ruy tivesse naquele dia a sorte de poder ver este último mencionado vapor, teria a impressão de estar recebendo um presente daquela "cidade marítima" onde nascera. Pois o Les Alpes era, sem dúvida nenhuma, o mais belo de todos os navios que freqüentavam as vizinhanças da casa onde ele morava. Não o maior, mas o mais atraente, do ponto de vista estético.

Todo de casco branco, alongado e com uma popa elegantemente recurvada, alta chaminé ligeiramente inclinada e seus quatro mastros pontiagudos, formava um todo de perfeito equilíbrio, onde o cordame para as velas auxiliares constituía a moldura refinada.

O Les Alpes e seu irmão gêmeo, o Les Andes, pertenciam à Societé Générale de Transports Maritimes (SGTM). Ambos tinham sido construídos em 1882 pelo já renomado estaleiro Harland & Wolff, de Belfast, para armadores britânicos, e utilizados por estes durante três anos seguidos na rota de Liverpool (Inglaterra) a Philadelphia (Estados Unidos), com os respectivos nomes de British Princess e British Prince. Levavam, na época norte-americana, os cascos de cor preta e a chaminé vermelha, com topo preto e estrela azul.

Em 1896, foram adquiridos pela SGTM, repintados, rebatizados como já dito e colocados na linha entre Marselha (França) e Buenos Aires (Argentina), via portos intermediários. Servindo a Rota de Ouro e Prata, permaneceram até serem demolidos para ferragem, respectivamente em 1910 e 1908.

Este par, que era justamente descrito como "magníficos navios" nas publicidades da armadora francesa, freqüentou ininterruptamente o Porto de Santos durante mais de 12 anos, embelezando com suas silhuetas o estuário e a barra santista.


O navio a vapor brasileiro Guasca, atracado no porto de Santos no início do século XX
Foto, publicada com a matéria: cartão postal de José Marques Pereira na coleção J.C. Rossini

Um dia no porto - Considere-se um dia qualquer, apanhado ao acaso no calendário e vejamos o movimento marítimo no porto. No dia 29 de maio de 1905, encontravam-se atracados tão somente 12 vapores, dos quais três eram de bandeira italiana, dois britânicos, três nacionais, um francês e um húngaro.

Este último, o Jokai, pertencente à armadora Real Húngara de Navegação Marítima, vapor misto, havia entrado naquela manhã proveniente de Trieste e escalas e atracava no cais do Armazém 1 para desembarque de passageiros e carga. O Jokai era um dos dez vapores de bandeira austro-húngara que escalavam então regularmente em Santos e, dentre estes, o Urano, o Nagy-Lajos, o B. Kemeni, o Szeged e o B. Fejervayr. Estes navios tinham freqüência bimensal em suas escalas em Santos, um provindo do Norte e outro do Sul.

Atracados no cais dos armazéns 8 e 9, respectivamente, encontravam-se dois vapores que levavam a Union Jack (N.E. bandeira britânica) na popa: o Tintoretto, da Lamport & Holt (L&H), empresa britânica, e o Saint Oswald. O primeiro era um navio relativamente novo, tendo sido construído em 1902, nos estaleiros da Workman, Clark & Co., de Belfast, junto a seu irmão gêmeo Titian.

Ambos faziam parte de um grupo de quatro navios, conhecidos como os da série T, dos quais dois foram afundados por submarinos alemães na Primeira Guerra Mundial. O Terence foi torpedeado em 28 de abril de 1917, nas coordenadas 53º 55' Norte de latitude e 15º Oeste de longitude, isto é, próximo a Fastnet, na costa britânica, quando se encontravam em navegação de Buenos Aires a Liverpool, com cargas de carne e trigo.

O Titian sofreu o mesmo destino em 26 de agosto do mesmo ano, nas coordenadas 34º 19' Norte de latitude e 17º 30' Leste de longitude, quando de Londres viajava para Alexandria, no Egito. O quarto da série, o Thespis, e o Tintoretto, sobreviveriam ao conflito, ambos sendo de utilidade até 1930, quando foram desmontados para ferro-velho, respectivamente na Inglaterra e na Itália.

Outro vapor interessante atracado naquele dia de fim de maio de 1905 era o francês Poitou, da SGTM e de 2.679 toneladas de arqueação bruta (tab). Havia sido construído 22 anos antes, como Batavia, por ordem do Rotterdam Lloyd e mais tarde rebatizado Soembing, pela mesma armadora.

Depois de servir duas décadas o tráfego Holanda-Extremo Oriente, foi vendido à SGTM em 1903 e em dezembro daquele ano zarpou para sua primeira viagem na Rota de Ouro e Prata, entre Marselha e Buenos Aires, com escalas intermediárias. Chegaria ao seu fim em maio de 1907, quando foi destroçado pelo mar, após encalhar ao largo da costa uruguaia, causando a perda fatal de 20 pessoas.

Já foi mencionado nesta série o vapor Atlantique como sendo o de maior tonelagem a freqüentar a escala santista em 1905. Pois de fato o Atlantique, com suas 6.479 tab, superava por pouco outro vapor da Messageries Maritimes (MM), o Amazone, que era o segundo maior, com suas 6.337 tab. O Atlantique entrava em Santos em 21 de fevereiro, procedente de Bordeaux (França), e novamente, desta vez procedente de Buenos Aires, em 7 de março, isto é, empregando 14 dias para realizar uma viagem redonda entre Santos-Buenos Aires-Santos.

O Amazone, lançado ao mar em 1896 com o nome de Laos, havia servido, por conta da MM, a linha Bordeaux-Extremo Oriente durante bem sete anos. Em fins de 1904, depois de uma reforma geral, foi-lhe dado o novo nome de Amazone e uma nova destinação de serviço: a Rota de Ouro e Prata.

Zarpou pela primeira vez com destino à América do Sul em finais de dezembro de 1904. No mês de janeiro seguinte, alcançou Buenos Aires e aportou em Santos pela primeira vez no decurso da viagem Sul-Norte (no sentido inverso não havia realizado escala no porto santista) no dia 23 de janeiro.


O Atlantique, saindo de Bordeaux, navega no rio Gironde,
iniciando mais uma viagem para a América do Sul
Foto publicada com a matéria

Explosivo - Interessante notar que na véspera da primeira chegada em Santos do Amazone entrava também no porto um cargueiro que ficaria tristemente famoso anos mais tarde. Este vapor era o Mont Blanc. Lançado ao mar em 1899, serviu o armador francês Gaston Petit, de Rouen, até 1915, quando foi cedido à CGT e por esta colocado na linha para o Caribe e o México, sempre com bandeira francesa.

Em dezembro de 1917, em plena guerra, o Mont Blanc foi despachado de Nova Iorque (Estados Unidos) para o porto de Halifax (Nova Escócia, Canadá), tendo nos seus porões um carregamento de 5 mil toneladas de explosivo, de alto risco, das quais 3 mil eram de TNT (nitroglicerina). No dia 6 daquele mês, após uma colisão na entrada do porto de destino com um outro cargueiro, o Mont Blanc explodiu numa gigantesca bola de fogo, destruindo o porto inteiro e todos os vapores que aí se encontravam atracados ou ancorados.

O balanço da tragédia, uma das mais importantes de todos os tempos, foi impressionante: o Porto de Halifax e o subúrbio de Richmond foram praticamente destruídos, cerca de 2 mil pessoas morreram instantaneamente, outras 8 mil foram feridas, 150 foram dadas como desaparecidas, 3 mil edifícios ou casas foram destruídos, os prejuízos materiais elevando-se para a então astronômica quantia de US$ 30 milhões.