Em agosto de 1939, a armadora britânica Royal Mail Line anunciou, através do seu serviço de Imprensa de Londres (Inglaterra), a próxima entrada em serviço
de seu novo transatlântico, de 26 mil toneladas de arqueação bruta (tab), o Andes. Destinado a servir a Rota de Ouro e Prata, o navio deveria realizar sua viagem inaugural para o Brasil e o Prata, zarpando de Southampton, Inglaterra, em 26
de setembro de 1939. Esta data não havia sido escolhida ao acaso. Ela marcava exatamente o aniversário do centenário de fundação da Royal Mail pelo espírito empreendedor de Scot James MacQueen. A
ocasião, portanto, deveria celebrar ao mesmo tempo dois grandes acontecimentos: os cem anos da armadora e o início da viagem inaugural de seu mais novo navio. O destino, porém, não quis assim. A invasão da Polônia pelas tropas da Wermacht em 1º de
setembro e subsequente declaração de guerra, entre a Grã-Bretanha e a França de um lado e a Alemanha do III Reich do outro, anularia a prevista entrada em linha do Andes. O transatlântico, ao invés de partir para o Atlântico Sul, foi
imediatamente recolhido ao seu estaleiro construtor, para os trabalhos de conversão em navio de transporte de tropas.
A II Guerra Mundial (1939-1945) envolveria todos os 31 navios da frota da Royal Mail, direta e indiretamente. Vinte e um destes seriam afundados no decurso do conflito, com a perda total de 200 homens. Entre este
navios perdidos, encontrava-se o Highland Patriot, originalmente construído para o Nelson Line e que foi atacado em outubro de 1940, ao largo da costa irlandesa, pelo submarino alemão
U-38.
O Magdalena, registrado em Londres
Pós-guerra - Terminado o conflito mundial, em agosto de 1945, a Royal Mail só possuía dez navios, desgastados pelo uso excessivo e precária manutenção. Recondicionar a sua tonelagem tornou-se a palavra de
ordem prioritária da armadora, mas ao mesmo tempo era necessário projetar novos navios para construção.
Em 1946, para substituir o desaparecido Highland Patriot e injetar nova tonelagem no serviço para a costa leste da América do Sul, a Royal Mail passou ordens ao seu tradicional estaleiro construtor, o
Harland & Wolf, de Belfast, para a fabricação de um navio de passageiros de 7 mil t.a.b. (toneladas de arqueação bruta) e capacidade mista, de passageiros e carga. O novo transatlântico receberia o nome de Magdalena, denominação esta de uso
tradicional da armadora, pois em 1851 e em 1889 dois de seus navios também haviam recebido o mesmo batismo.
A primeira trave da quilha da obra nº 1.354 foi colocada na rampa de construção em agosto daquele mesmo ano mencionado. Em vista, porém, da enorme escassez de materiais de todo gênero no Reino Unido, foram
necessários dois anos para que o novo navio fosse lançado ao mar (11/5/1948) ou quase três anos para que pudesse ser completado.
Homenagem - Quando, em 9 de março de 1949, o recém completado Magdalena foi apresentado publicamente, após a realização de suas provas de mar, todos tiveram a impressão de que a armadora tivesse
realizado uma homenagem ao seu próprio passado. Visto de perfil, o transatlântico apresentava a tradicional superestrutura dividida em duas partes, marca registrada de todos os grandes navios da série A construídos por ordem da Royal Mail
entre 1906 e 1914.
Na parte da proa, a três quartos desta, erguia-se a estrutura em cujo topo encontrava-se a ponte de comando e, nos conveses inferiores, os alojamentos dos oficiais mais graduados e seus escritórios. Entre estrutura
e a parte central do navio, encontrava-se uma separação que correspondia, a nível do casco, ao porão número 3. Na parte central do transatlântico, dominada por uma única chaminé de forma ligeiramente arredondada, encontravam-se todas as áreas
sociais, de acomodação e serviços dos passageiros de primeira classe.
Os conveses do Magdalena eram nove ao todo, denominados (de cima para baixo): da observação, dos botes, do passeio, da ponte, da cobertura superior, principal, inferior e de máquinas. Transversalmente ao
casco existiam oito bulkheads (paredes divisórias dos compartimentos de navio) que o isolavam em nove grandes compartimentos que, em caso de alagamento de um deles, se tornavam estanques, através do fechamento de suas grandes portas
automáticas.
O maquinário de propulsão do navio era construído por duas turbinas de dupla redução acopladas a dois eixos de hélice que produziam 18 mil cavalos-vapor, proporcionando à massa estrutural deslocamentos a 18 nós,
com 85 rotações por minuto. Completando-se esta sintética parte de informações de ordem técnica, ressalva-se que o equipamento de navegação era de primeira ordem e o que de mais moderno existia na época da construção: bússolas giratórias e
magnéticas, ecobatímetro, piloto automático e um Metropolitan Vickers Seascan, radar com alcance máximo de 27 milhas e posições de leitura intermediárias.
Conforto moderno - De proa inclinada, popa do tipo cruzador, onde, além de seu nome, levava o de London (Londres) como porto de registro, o Magdalena foi desenhado com linhas bem equilibradas,
modernas e de bom gosto. Assim também eram os seus interiores, equipados com todo o conforto do primeiro período pós-bélico, inclusive ar condicionado em todas as instalações da primeira classe; seus 133 passageiros da classe superior possuíam
cabinas individuais ou duplas situadas nos conveses de passeio e da ponte, enquanto os 347 da terceira classe eram alojados em cabinas de duas, quatro, oito ou dez camas, todas dispondo de lavabo.
O estilo da decoração predominante era o moderno pós-guerra, com móveis retos e funcionais, grandes espelhos, profusão de metais prateados e uso intensivo de carpetes, ao invés de tapetes.
O vasto salão de jantar principal, que atravessava a largura total do navio e que podia acomodar 165 pessoas, fora decorado com painéis laterais de madeira nobre, em cor salmão e creme, e possuía grandes espelhos,
que ampliavam a sensação de espaço. O salão para fumantes da primeira classe constituía uma exceção ao modernismo do Magdalena, pois fora desenhado e decorado no estilo campestre alpino, de gosto um pouco kitsch, referente ao Tirol
austríaco. O transatlântico possuía, na parte posterior do convés do passeio, uma piscina ao ar livre, completada por um bar-café do tipo Lido.
Era dotado também das outras tradicionais instalações e áreas públicas, tais como biblioteca, salão de leitura, ginásio esportivo, salão de jogos para crianças, dois pequenos hospitais, para sexos diferenciados, e
ambulatório de consultas, servido por três médicos, que atendiam os passageiros e tripulantes nos três idiomas maternos de cada um, ou seja, um médico que falava inglês, outro em espanhol e um terceiro, o português.
Cartão postal raríssimo do Magdalena, da coleção de João Emílio Gerodetti, da capital paulista
Viagem única - No dia 9 de março de 1949, o navio largou os grossos cabos de amarra das docas King George V, em Londres, Inglaterra, com destino ao Rio da Prata, via portos intermediários. Quis o destino,
porém, que o transatlântico nunca mais voltasse às águas do Rio Tâmisa, pois afundaria na viagem inaugural.
A armadora britânica Royal Mail, ao longo de sua história, já havia sido castigada duas outras vezes pela ação da má sorte, por ocasião de viagens inaugurais: em 1852, o seu vapor Amazon, de madeira e rodas
de pá, de 2.256 toneladas, fora vítima de um incêndio fatal, no qual pereceram 104 pessoas, entre passageiros e tripulantes; em 1917, o recém completado Brecknockshire foi capturado pelo corsário alemão Möwe
e destruído.
O transatlântico Magdalena, após realizar travessia em direção Sul (onde escalou em Santos em 25 de março de 1949), reiniciou a viagem de retorno à Inglaterra, zarpando de Buenos Aires, Argentina, em 18 de
abril, escalando em La Plata e Montevidéu antes de alcançar Santos. O porto santista seria o único porto brasileiro a registrar duas escalas do novo transatlântico, já que este jamais alcançaria de novo o píer da Praça Mauá, no Rio de Janeiro.
Na tarde de 24 de abril, o Magdalena, tendo como prático Constantino Azevedo, desatracou do cais do Armazém 17 da Companhia Docas de Santos (CDS) levando a bordo cerca de 350 passageiros e 230 tripulantes.
As suas próximas escalas previstas na viagem ao Norte seriam Rio de Janeiro, Salvador, Las Palmas, Lisboa, Vigo, Cherburgo e Londres.
SOS - Às 4h50 do dia 25, a estação de rádio do Arpoador, no Rio de Janeiro, captou um sinal de SOS, transmitido pelo navio de passageiros Magdalena. No sinal de socorro, informava-se que o
Magdalena havia ido de encontro a rochedos da costa em uma posição aproximada de seis milhas ao Sul da Tijuca, na costa do Rio. O Ministério da Marinha, devidamente alertado, providenciou o envio de dois rebocadores de alto-mar, o Tritão
e o Tenente Cláudio, e de outros navios auxiliares, enquanto a agência marítima da Mala Real no Rio expedia o rebocador Saturno.
Quando essas embarcações procedentes do Rio de Janeiro chegaram ao local, já se encontrava o cargueiro nacional Goiazloide de prontidão para qualquer emergência. O Magdalena encontrava-se encalhado
nos rochedos submersos que formam uma ponta mar adentro, ao Sul das Ilhas Tijuca, a cerca de 300 metros da Barra. Com o casco arrombado, o porão nº 3 fora inundado e, apesar de serem acionadas as bombas de bordo, foi impossível esvaziar o
compartimento o corrigir o adernamento fortemente visível.
O comandante do Magdalena, Douglas Lee, velho lobo-do-mar, com 40 anos de navegação, providenciou a guarnição de botes salva-vidas, esperando pelo pior, e, mais tarde acatando sugestões do Comando Naval do
Rio de Janeiro, deu ordens para evacuação dos passageiros. Acercaram-se, assim, os rebocadores do navio sinistrado, recebendo muitos passageiros deste e levando-os para serem desembarcados nas ilhas Cobras e Flores.
Reboque - Na madrugada do dia 26 de abril, cerca de 2 horas, com a maré enchente, o Magdalena desprendeu-se sozinho das pedras onde estava encalhado, sendo em seguida fundeado nas proximidades da Ilha
Pontuda, pertencente ao arquipélago das Tijucas. Por resolução e solicitação do comandante Lee, foi iniciado um reboque do navio por volta das 8 horas pelos rebocadores Triunfo, da Marinha de Guerra, e Comandante Dorat, da estatal
Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro.
Porém, em virtude do fato de estar abicado e adernado e devido ao mar grosso e vento forte, o reboque foi sendo feito com dificuldades, à velocidade de três nós. Por volta das 12 horas, pressentiu-se a bordo que a
qualquer momento o navio poderia partir-se em duas partes, razão pela qual, já nas proximidades da Ilha Cotunduba, foi abandonado pela tripulação, ficando a bordo apenas o comandante, um tripulante e o prático-mor do Rio de Janeiro, Antônio
Gonçalves Carneiro, que estava a bordo quando o casco se partiu. Os demais tripulantes embarcaram nos escaleres do navio e dirigiram-se para bordo dos dois rebocadores e do caça-submarinos Guaiba, que auxiliava nos serviços.
A despeito do perigo, o reboque continuou, com o navio sendo acossado por fortes ondas, que o faziam mergulhar de proa, que ficava quase submersa, voltando com dificuldades à superfície. Aproximadamente às 14
horas, o navio girou de lado, com o afrouxamento do cabo, ficando com a proa virada na direção da Fortaleza de São João, em Copacabana.
Estando, porém, o porão 3 - a meia nau - totalmente alagado a esta altura, o Magdalena permaneceu durante algum tempo ainda sendo rebocado, até que, em dado momento, partiu-se ao meio, em frente à Praia do
Leme, na zona sul da Cidade do Rio, onde milhares de curiosos observavam dos edifícios.
A separação ocorreu na altura do porão 3, isto é, na intersecção do primeiro com o segundo quarto casco. A parte menor fragmentada, a proa, empurrada pelas correntes marítimas e pelo vento, derivou para o Sul até
encalhar nas proximidades das Ilhotas Pai e Mãe, onde permaneceria três dias, sendo subseqüentemente, afundada a dinamite. A parte maior remanescente (meia nau e popa - ré) foi encalhada propositalmente na Praia do Imbuí, entre a ponta do mesmo
nome e a Ponta das Ostras, nas proximidades da Fortaleza de São João de Niterói, ali permanecendo durante muito tempo, antes do desmonte.
Bagagem salva - Na popa, felizmente para os passageiros, encontrava-se a bagagem e providenciou-se, assim, o transbordo de 200 toneladas de malas, que foram transportadas para o Rio em 29 de abril de 1949.
Havia a bordo - e foi considerada perdida - carga de 25 mil caixas de laranja, embarcadas em Santos, bem como 2,8 mil toneladas de carne refrigerada argentina. O valor total de seguro do navio e sua carga montava a cerca de 2,5 milhões de libras
esterlinas.
Um taifeiro contou, após o desembarque no Rio, que o comandante Lee dormia na ocasião do encalhe e, ao chegar à ponte de comando depois de ter sido avisado, exclamou, com fisionomia transtornada: "Senhor imediato,
o que senhor fez do meu navio?". A mesma pergunta foi repetida pelo representante da armadora Royal Mail, em setembro de 1949, quando se iniciou o inquérito formal nas cortes de Justiça do Reino Unido.
Nunca mais - Ao cabo do processo, passou-se a sentença, que apontou "... a grave negligência do comandante no decurso de uma manobra de aproximação perigosa a um porto de escala". O comandante Lee teve o
certificado de comando retirado por dois anos e o imediato, que se encontrava na ponte como responsável pelo navio no momento do encalhe, foi suspenso das funções por um ano.
O irônico desta triste história da perda do Magdalena foi o fato de que a direção da Royal Mail havia decidido oferecer o comando de sua novíssima embarcação ao capitão Lee (então com 60 anos de idade e
quatro décadas de navegação na sua honrosa folha de serviço, que incluía missões navais) como prêmio antes de ele se aposentar, fato que aconteceria após o retorno do transatlântico à Inglaterra.
Após ter perdido seu terceiro navio com o nome de Magdalena, a Royal Mail jamais voltou a utilizar tal denominação e o comandante Lee jamais voltaria ao passadiço de comando de qualquer outro transatlântico. |