Em agosto de 1920, a Royal Mail Steam Packet (RMSP) fechou a linha entre a Grã-Bretanha e as Índias Ocidentais Britânicas, após 80 anos de serviços
ininterruptos. Dez meses depois, inaugurou uma rota que ligava Hamburgo a New York (Estados Unidos) via Southampton (Inglaterra) e Cherburgo (França). Nessa nova rota, utilizou três navios afretados
pela subsidiária Pacific Steam Navigation Company (PSNC): o Orduna, o Orita e o Oropesa. Esta linha se revelaria tão lucrativa que, em 1922, a RMSP afretaria mais três
transatlânticos pertencentes à Lamport & Holt, também britânica - Vestris, Vauban e Vandyck -, para servi-la. Dois anos mais tarde, os portos canadenses de Quebec e Halifax
seriam acrescentados a essa rota norte-americana.
Foi nesse mesmo ano de 1924, com os negócios da empresa florescendo sobretudo graças à linha norte-americana, que Lorde Kylsant de Carmathen (senhor Owen Philipps), presidente do Comitê de Direção da RMSP, propôs a
construção de dois novos transatlânticos de grande porte, que serviriam a linha para a costa Leste da América do Sul.
O vapor Alcantara, antes do início da Segunda Guerra Mundial, ainda com duas chaminés
Com a aprovação do board (direção), foram encomendados ao famoso estaleiro Harland & Wolff, de Belfast (o mesmo que construiu o Titanic), dois navios a motor diesel, que levariam mais tarde os nomes
de Asturias (lançado em 1925) e Alcantara (lançado em 1926).
O Asturias realizou sua viagem inaugural para o Brasil e o Prata zarpando de Southampton em 26 de fevereiro de 1926. Sua vida útil duraria até 1957 - 31 anos -, sendo que nos primeiros 13 anos atuaria como
transatlântico de passageiros na Rota de Ouro e Prata. O Asturias e o Alcantara eram navios gêmeos, com características técnicas e desenho similares, e tornaram-se atrativos, com uma clientela cativa.
Salão de refeições da primeira classe do Alcantara em 1927
Luxo - A decoração interna não poderia deixar de ser tipicamente britânica, prevalecendo tonalidades pastel nas pinturas. O salão de jantar da primeira classe era a pérola da Coroa, decorado no estilo
Christopher Wren. Era tão espaçoso que podia acomodar, de uma só vez, todos os passageiros dessa classe.
A biblioteca de bordo era, sem dúvida, o espaço público que mais se destacava por seu desenho e decoração. Estava situada no convés das lanchas salva-vidas e era conhecida como Salão Verde, tendo em vista a
predominância desta cor. Este salão de leitura, decorado no estilo dos reis William e Mary, irradiava uma atmosfera de luxo com bom gosto e elegância. Era na biblioteca que, após o jantar, se reuniam os cavalheiros que levavam, para saborear,
excelentes brandies (conhaques) de origem francesa e nobres charutos cubanos.
A sala de natação era em estilo pompeano e no hall social predominava o soberbo estilo da velha Espanha.
Externamente, o desenho desses navios era elegante e sóbrio, com linhas bem definidas e baseadas no conceito de construção e desenho que eram a marca registrada do estaleiro Harland & Wolff. A superestrutura do par
era relativamente baixa, com duas chaminés de altura reduzida e com uma novidade na popa: o desenho era do tipo cruzador.
O Alcantara, antes da Segunda Guerra Mundial, no Estuário de Santos,
em pintura do inglês Kenneth Denton Shoesmith (1890-1939)
O Alcantara foi completado pelo estaleiro em fevereiro de 1927 e, em 4 de março desse ano, saiu de Southampton para o Prata em sua viagem inaugural, levando o título de maior navio a motor do mundo. De fato,
era movido por dois motores patente Burmeister & Wain. Até a entrada em serviço do Augustus, em novembro do mesmo ano, o Alcantara conservaria este título.
A viagem inaugural aconteceu sob o comando do capitão comodoro da frota, M. S. Nicholson, com escalas em Cherburgo, Lisboa, Las Palmas (Ilhas Canárias), Rio de Janeiro, Santos e Buenos Aires. Em sua primeira
passagem por Santos, dia 20 de março de 1927, o Alcantara atracou no cais do armazém 15 e a bordo subiram personalidades brasileiras para visita ao navio, que zarparia para o Prata às 3 horas daquela mesma tarde.
Em 1931, embarcaram a bordo do Alcantara o príncipe de Gales e o duque de Kent, que se dirigiam para Montevidéu - onde, naquele ano, se realizava a Exposição do Império Britânico.
O estuário de Santos, visto de Vicente de Carvalho,
com o transatlântico português Serpa Pinto e o britânico Alcantara atracados
Novos motores - Considerações de ordem técnica - problemas de forte vibração - levariam a Royal Mail a decidir por uma troca de motores nos dois transatlânticos. Assim, em 1934, o
Asturias, e posteriormente o Alcantara, voltaram para os estaleiros da Harland & Wolff, de Belfast, para serem postos em doca seca. Os motores originais B&W a diesel foram substituídos por turbinas Parson.
Ambos os navios tiveram suas proas redesenhadas com um perfil mais inclinado e suas chaminés foram elevadas em quatro metros. Além disso, foi instalado um novo par de hélices com diâmetro de pá maior.
A reforma de cada um levou cinco meses e, no fim de 1934, o Asturias retornou ao serviço, enquanto que o Alcantara retornou à Rota de Ouro e Prata, em maio de 1935, sob o
comando do comodoro B. Shillitoe.
Segunda Guerra - Em 3 de setembro de 1939, Inglaterra e França declararam estado-de-guerra à Alemanha e assim nascia o mais sanguinário e violento conflito de todos os tempos.
A Royal Navy (Marinha de Guerra Britânica) já havia estabelecido planos para transformar uma parte dos grandes transatlânticos, que arvoravam a Union Jack (bandeira da frota mercante do Reino Unido), em
navios-transporte-de-tropas ou cruzadores-auxiliares-armados.
O transatlântico Alcantara deixando o porto de Santos, por volta de 1950
AMC - Foi assim que, dentre muitos outros, o Alcantara entrou no porto de Devonport (Inglaterra), no início de setembro, para ser transformado em Armed Merchant Cruisier (AMC), ou seja,
cruzador-auxiliar-armado.
Foram removidos todos os apetrechos e móveis de luxo e instalados circuitos de comunicação interna para o controle da artilharia e combate ao fogo. No lugar das cabinas de passageiros, apareceram simples
dormitórios múltiplos para a tripulação naval, e todos os salões públicos foram transformados em refeitórios ou em depósitos de material.
Algumas semanas mais tarde, o Her Majesty Ship (HMS - Navio de Sua Majestade) Alcantara foi enviado ao porto de La Valetta (Malta) para ser armado com oito velhos canhões de 152 milímetros.
O Franconia, da inglesa Cunard, em cartão postal europeu da época em que colidiu com o Alcantara no Mediterrâneo
Acidente - Antes que isso pudesse ser feito, aconteceu um estranho acidente naval com o ex-transatlântico. Em rota zigue-zague de navegação e a caminho de Malta, o Alcantara colidiu no Mediterrâneo
com o transatlântico inglês Franconia (pertencente à Cunard). O choque danificou seriamente o boreste do Alcantara e, por poucos minutos, os dois navios ficaram entrelaçados em pleno alto mar.
Esse inesperado acontecimento forçou o envio do Alcantara para a base naval de Alexandria (Egito), único lugar onde ele poderia ser reparado.
Assim, foi somente em novembro de 1939 que o Alcantara pôde entrar em La Valetta para as transformações mais importantes: reforço do tombadilho para a instalação das torres dos oito canhões, montados quatro
de cada lado no deck (convés ou andar) mais elevado do navio.
Para se compensar o maior peso na parte superior da estrutura, foram removidas várias lanchas salva-vidas, todos os guindastes e a chaminé dianteira que, na verdade, só tinha função decorativa. No lugar da chaminé
foram colocados vários canhões antiaéreos.
Em dezembro, todo pintado de cinza, o Alcantara zarpou para a costa Leste da América do Sul para prestar serviços, ou seja, voltava para as águas familiares de sua existência quando transatlântico de
passageiros.
O AMC foi reintegrado às forças navais da Divisão Sul-Americana do Atlântico Sul sob o comando do contra-almirante Sir Henry Harwood - que, a bordo do cruzador Hawkins, era o responsável pela segurança das
rotas naquela área. Sir Harwood ainda saboreava a alegria da vitória das forças navais sob seu comando sobre o famoso encouraçado alemão Graf Spee em 13 de dezembro de 1939.
A tarefa principal do HMS Alcantara era navegar ao longo da costa brasileira em patrulha de proteção ao tráfego mercante britânico e, ao mesmo tempo, na procura e interceptação de eventuais mercantes alemães
que tentassem fugir para a Alemanha como blockade runners.
Para a boa realização dessas missões, era primordial a escuta do tráfego, via rádio, entre as estações de terra - o que permitia conhecer, além de informações vitais sobre o tráfego marítimo, os nomes dos navios
envolvidos, suas cargas, destino das viagens e, sobretudo, as datas dos movimentos.
Duas camareiras do Alcantara e uma do Andes conversam em Santos, em 31/8/1953
Batalha - Em 29 de julho de 1940, logo após zarpar da ilha de Trindade, onde havia se reabastecido, o HMS Alcantara avistou um navio aparentemente de bandeira sueca que navegava em rota estranha para
aquela área. Quando aproximava-se para a verificação da identidade e carga desse navio, o Alcantara foi atacado. O inocente cargueiro sueco era, na realidade, o corsário alemão Thor, que se encontrava nas águas do Atlântico Sul desde
o início de julho, e que já havia afundado cinco mercantes aliados, dos quais três de bandeira britânica.
A ação bélica durou 25 minutos e, ao fim de uma constante troca de salvas, os dois navios haviam sido atingidos. O Thor disparou 284 projéteis com canhões de 5,9 polegadas, dos quais 30 atingiram o
Alcantara, matando muitos de seus homens e causando consideráveis estragos materiais. A situação a bordo do AMC era tão séria que, se o Thor tivesse continuado com seu poder de fogo, o teria afundado.
Mas o comandante Kähler, do Thor, após inspecionar seu navio, decidiu, "por precaução", fugir da área de batalha (24º de latitude Sul e 33º de longitude Oeste) o mais depressa possível.
O capitão Ingham do Alcantara, por sua vez, depois de fazer um balanço dos danos, decidiu pedir ajuda pelo rádio e levar seu navio para o porto do Rio de Janeiro. Entrou com um mastro abatido e com meio
metro de água inundando seu interior.
Após a conclusão desses reparos urgentes, o Alcantara zarpou para a Cidade do Cabo (África do Sul) para revisão e recondicionamento total, voltando em seguida a serviço para a costa brasileira.
Transporte de tropas - Em meados de 1943, a situação da guerra mundial já não mais exigia a presença de cruzadores auxiliares no Atlântico Sul, pois agora eram necessários os grandes navios de tropas para o
esforço aliado.
Assim sendo, o Alcantara foi levado para Birkenhead (Inglaterra), para ser transformado em transporte de tropas. Sua conversão foi longa, e somente em março de 1944 o renovado ex-transatlântico pôde realizar
sua primeira viagem transportando soldados ingleses e americanos para a Itália.
Finda a Segunda Guerra Mundial, o Alcantara foi, ainda por mais um ano, utilizado como navio-transporte, repatriando tropas aliadas.
O vapor Alcantara, num cartão postal inglês, após ser reformado em 1948
Volta à rota - Em 1947, retornou aos estaleiros onde havia sido construído, e a Harland & Wolff se encarregou de modificar o navio novamente em transatlântico de passageiros. Essa reconversão durou mais de
um ano e, em outubro de 1948, o gigante renascido zarpou de Southampton para a América do Sul, em sua viagem inaugural do pós-guerra para a Royal Mail Lines.
Lisboa, Funchal (Ilha da Madeira), Las Palmas (Ilhas Canárias), Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Santos e Montevidéu eram portos de escala intermediária, e a viagem até Buenos Aires levava 17 dias.
A capacidade de acomodação agora passara para 220 passageiros em primeira classe, 185 em segunda e 462 em classe turística. O mastro principal foi reinstalado, mas o mesmo não aconteceu com a segunda chaminé de
proa, que havia sido retirada em Malta.
O Alcantara permaneceu fiel à Rota de Ouro e Prata até 1958, quando foi vendido, para demolidores japoneses, pela modesta quantia de 240 mil libras esterlinas. Terminou sua existência no porto de Osaka, no
Japão, onde chegou rebatizado de Kaisho Maru, nome que levou em sua última travessia.
No edifício do Senai na Ponta da Praia, em Santos, resta o último vestígio dos gloriosos anos de sua existência como um dos grandes transatlânticos a servirem a Rota de Ouro e Prata, esplêndida maquete do
navio cortada longitudinalmente e mostrando, de um lado, as linhas e aparência de sua estrutura externa e, de outro (através de um espelho), detalhes de seu interior. Esta maquete encontrava-se na agência marítima santista da Mala Real Inglesa
antes de ser doada ao Senac, do qual agora faz parte do acervo de bens.
"Alcantara II - Segundo navio com o mesmo nome da Royal Mail, a exemplo de seu antecessor, o Alcantara também foi vítima da guerra. Lançado ao mar em
1927, ano deste cartão-postal, tinha 192,16 metros de comprimento e era na época o maior navio da companhia. Fazia a linha entre Southampton e Buenos Aires, com escala em Santos. No início da II Guerra Mundial, em 1939, foi transformado em navio
armado. Em 1940, no litoral brasileiro, entrou em combate com o cruzador alemão Thor e sofreu sérias avarias na casa de máquinas, ficando no Rio de Janeiro em reparos. Entre 1943 e 1944 foi usado como navio de transporte de tropas. No final
de 1947 sofreu mudanças e perdeu uma das duas chaminés. Em junho de 1958 foi vendido para uma armadora japonesa e rebatizado como Kaisho Maru; em setembro do mesmo ano foi demolido em estaleiro de Osaka, no Japão".
Imagem: Acervo José Carlos Silvares/fotoblogue Navios do Silvares (acesso:
13/3/2006)
O RMS Alcantara, da armadora Royal Mail Lines, mais conhecida como Mala Real Inglesa, navegou pela costa Leste da América do Sul entre 1927 e 1958, exceto durante o período bélico
193901945. Muito conhecido na rota, era gêmeo do Asturias (não deve ser confundido com o espanhol Principe de Asturias)
Foto: acervo do cartofilista Laire José Giraud,
publicada na rede social Facebook em 22/11/2014 |