Nair, em paz com a vida
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NAIR LACERDA
O doce sentimento do dever cumprido
Logo depois da Revolução
de 32, Nair Veiga Lacerda escrevia a sua primeira crônica, cujo título era A Mulher Paulista e o Voto Feminino. Na ocasião, ela declarava
que a mulher possuía civismo suficiente para exercer voto e defendia o seu ponto de vista. Há cinqüenta anos, a moça que cresceu num ambiente
familiar onde era dada primazia à cultura, ao interesse pelos clássicos da literatura e ao estudo de outros idiomas, já mantinha também a sua
posição favorável ao divórcio.
Se saber envelhecer é um dom, Nair Lacerda o recebeu em grande escala. Menina, que
passou a infância numa casa da Av. Conselheiro Nébias, caçula de nove irmãos ("agora somos duas"), ela soube
aproveitar a vivência intelectual que lhe foi passada pelo pai, Alberto Veiga, e pelo irmão, Octávio. "Minha adolescência foi privilegiada. Sou
autodidata, aprendi a ler junto com A Tribuna, no tempo em que ela era cor-de-rosa. Meu pai, junto com Olímpio Lima, foi um dos criadores do
jornal. Tive a felicidade de ter nascido de quem nasci. E a sorte de ter tido uma biblioteca em casa".
Colaboradora do extinto O Diário e da página feminina de O Jornal de São
Paulo ("cujo diretor era Geraldo Ferraz, meu grande amigo"), Nair, além de cronista, escrevia contos. Faz menção
especialmente a dois deles: Um Feriado, que Graciliano Ramos selecionou para a Antologia de Contos e Novelas, e Nhá Colaquinha
Cheia de Graça, publicado por Raimundo Magalhães Júnior na Antologia do Conto Feminino e transformado no filme A Primeira Missa,
por Lima Barreto.
Muito
cedo ficou viúva de Ernesto Lacerda e teve a sua profissão mudada: foi ser tradutora. "No início, traduzi peças para amigas como a Dulcina de Moraes
e a Bibi Ferreira. Depois, foi o encontro de uma profissão, quando me vi com um filho de três anos para criar". Hoje, Nair é uma das tradutoras
brasileiras de maior acervo, tendo traduzido para o Português obras de inúmeros autores ingleses, franceses, italianos e espanhóis.
Por tudo isso deixou os contos. "A tradução mata o escritor. Temos que nos impor à
interpretação alheia. Quem faz a tradução profissionalmente, dia a dia, ano a ano, precisa de humildade mental diante do trabalho alheio". Dona de
uma biblioteca bastante eclética, afirma que gosta de ler até bula de remédio. "Meu autor predileto é o do momento; meus livros inesquecíveis são
vários. Sou do tempo em que a cultura girava em torno da França, como agora ela está em função dos Estados Unidos".
Nair trabalha de seis a sete horas por dia. "Às vezes eu mesma não sei se traduzi um
livro ou não. Lembro que foi importante para mim o contato na juventude com os livros de Balzac, Maurice Drion, Anatole France e Flaubert". Desde 64
está afastada de Santos: "No início fui morar em Ribeirão Pires e depois em Santo André, onde estou radicada. Fui embora daqui porque Santos não me
ofereceu nada em termos de trabalho para ficar".
Em Santo André, foi convidada a integrar a Secretaria de Educação, Cultura e Esportes.
"Meus cinco anos de vida pública em Santo André foram muito ativos. Tive a oportunidade de trabalhar ao lado de Fioravanti Zampol, um político não
raro, mas único. Entre outras coisas, ele dizia que os setores de educação e saúde deviam ser desvinculados de partidos. Lá criei a Biblioteca
Municipal de Santo André, a Sala Braille e a Primeira Biblioteca Distrital de Utinga, que foi chamada de Cecília Meirelles".
A convite do Departamento de Estado norte-americano esteve nos Estados Unidos,
percorrendo o país de costa a costa e conhecendo os principais centros culturais. "Durante essa temporada, a tradução caiu um pouco. Atualmente
minha vida é quase monástica: sete horas traduzindo por dia, com a ordem de não ser interrompida".
Nair
Lacerda diz que é triste ver o escritor brasileiro fazendo um enorme esforço para ser lido. "Acho que o excesso de distração prejudica o interesse
pela leitura, que é um lazer recolhido. Muitos têm necessidade do barulho, já estão com a audição prejudicada. A agitação, a ansiedade é demais.
Como pessoas que levam este tipo de vida podem gostar de ler? A leitura precisa de concentração e tranqüilidade. O que me entristece é ver o livro
tão desvalorizado. Quando dizem que o livro é caro, pergunto: mas, e as revistas?"
Sobre os cronistas, diz que admira o trabalho realizado por Paulo Mendes Campos,
Fernando Sabino. "Luís Martins, que faleceu no ano passado (N.E.: em 1981), também era um
excelente cronista. Para mim, a crônica é um bate-papo, uma conversa. Sou muito filosofante. Às vezes recebo cartas engraçadas. Meu pai dizia sempre
para ter cuidado de não lançar nem amargura, nem desencanto, através das palavras".
Nair não tem preconceito racial, social, ou religioso. "Sou extremamente religiosa,
mas sem pertencer a nenhuma religião. Acho que todas as crenças saem do mesmo foco. Religião vem de religare, que significa reunir.
Mas, ao contrário, ela tem servido para a desunião. Posso entrar em qualquer templo e orar com o mesmo espírito e respeito. Sou capaz de rezar como
todos os povos por aquela religião. Tenho amigos de várias crenças".
Também observa: "Por quê este estranho ódio da mulher pela mulher? Afinal, são pessoas
que sofrem biologicamente as mesmas vicissitudes, os mesmos preconceitos. Qual seria então a necessidade que muitas têm da competição em vários
níveis? Acho que se trata mais de uma questão de vaidade, de auto-afirmação, de problemas que não foram resolvidos. Então, a mulher tem que
prejudicar a mulher de qualquer forma. Hoje, o homem é escandalosamente conquistado. Mas quando a mulher se barateia, ela desviriliza o homem".
Sempre
cultivou suas amizades. "Muitas delas vêm do tempo de adolescência, como Azalea Machado e Maria Angélica da Silva. Juntas, comemoramos 60 anos de
amizade. Gosto de simpatizar com as pessoas. Tenho um bando de sobrinhos e de afilhados. Considero a minha família unida e destituída de vaidade".
Nair Lacerda também menciona os amigos do tempo em que seu pai era secretário de A Tribuna, como Álvaro Lopes, Galeão Coutinho,
Afonso Schmidt, Albertino Moreira, Alberto de Carvalho, Francisco Azevedo, Cassiano Nunes.
"A roda de amigos era grande e Martins Fontes, o mais
barulhento deles. Havia a presença de Correa Júnior, Cleómenes Campos, Ângelo Guido, Fábio Montenegro,
Paulo Gonçalves. Lembro-me muito também de Alberto de Souza, Vicente de
Carvalho e Waldomiro Silveira". Menciona ainda Narciso de Andrade e Francisco de Marchi, "todos excelentes pessoas".
Em Santos, foi uma das fundadoras da Associação Cívica Feminina, junto com Fileta
Presgrave do Amaral, Marina Santos Silva e Diva Fialho Duarte. "Estava começando o Rotary, que ajudaria a Casa da
Esperança, através do trabalho desenvolvido por Evangelina Leão de Moura. Meu marido foi rotariano".
Comenta: "Adoro poesia mas não nasci com o dom da poesia. Não traduzo verso: quem
traduz verso é poeta. Fui até o Centro Cultural Brasil-Estados Unidos conhecer pessoalmente a Cora Coralina. Como figura humana, a gente se vê
pequenina diante dela. Perante a imensa frivolidade que existe por aí, constatamos que grande mulher é a Cora Coralina".
Aos
79 anos e extremamente ligada à família - "sou uma típica nativa de Câncer" -, Nair Lacerda já preparou o Dicionário de Ocultismo, que será
lançado em breve pela Pensamento. É colaboradora de A Tribuna e, em 1961, recebeu o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, pelo seu
trabalho como tradutora, que já abrangeu autores variados como Alberto Moravia, Sinclair Lewis e Rajneesh. "Se ainda tenho algum apego às coisas
materiais, os livros estão entre elas".
Para Nair Lacerda, o poder é antes de tudo uma coisa que embriaga.
Quanto à política, diz que a exercemos diariamente. "O homem se incumbiu de deformá-la, já que ela poderia ter sido a arte de transformar os povos.
A história do homem é a história da política". Sobre toda a sua trajetória: "Como no poema de Amado Nervo, nunca recebi esperança falida, nem
trabalhos injustos, nem pena imerecida. Eu e a vida estamos em paz".
Rosa Maria Bastos Santos
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