Tomada de Santos (1591), na edição holandesa de "As Incríveis Aventuras e Estranhos Infortúnios de
Anthony Knivet" (1706): Lodge e Knivet vieram ao Brasil na turbulenta expedição de Cavendish ao Sul
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RESUMO - Figura-chave do círculo de intelectuais em que Shakespeare floresceu no século1 6, o
dramaturgo Thomas Lodge teve uma curiosa passagem por Santos, onde roubou um livro na biblioteca dos jesuítas. Vida e obra são examinadas em estudos
que mostram inesperado e precoce intercâmbio entre Brasil e Inglaterra.
TEATRO
O amigo do bardo
Thomas Lodge, um elisabetano em Santos
Nelson de Sá
"Vale, mi fili, Deus te
salvum reducat in domum tuam."
Adeus, meu filho, que Deus te reconduza salvo à tua casa. Foi o que o londrino Thomas Lodge ouviu
de um dos amigos que fez em Santos, José Adorno, ao deixar a cidade em 1592. Em carta que escreveu na década seguinte, em
Londres, ele recorda com carinho a maneira como foi tratado pelo rico senhor de engenho nos dois meses que passou no Brasil.
Poeta, romancista e dramaturgo de grande influência sobre Shakespeare, que era seis anos mais jovem
do que ele, Lodge foi um dos university wits (sagazes universitários) que tomaram o palco elisabetano no século 16.
"Em algum momento do fim da década de 1580, Shakespeare entrou num salão - mais provavelmente numa
estalagem de Shoreditch, Southwark, ou no Bankside - e deparou-se com muitos dos principais escritores comendo e bebendo juntos: Christopher Marlowe,
Thomas Watson, Thomas Lodge [...]." Assim Stephen Greenblatt, de Harvard, descreve o cotidiano dos autores teatrais ingleses em Como Shakespeare
se Tornou Shakespeare (Companhia das Letras).
Em agosto de 1591, Lodge sumiu das estalagens de Londres para reaparecer em dezembro, lendo e
furtando livros, na biblioteca do Colégio de Jesus, em Santos. Um desses livros, o manuscrito Doutrina Cristaa na Linguoa
Brasilica, foi doado depois por ele à biblioteca Bodleian, a principal de Oxford, onde havia
estudado, e está agora sendo preparado para a sua primeira edição, ainda sem previsão de lançamento. Quem está à frente do projeto é Vivien Kogut
Lessa de Sá, da Universidade de Essex, também na Inglaterra, que retoma parceria com Sheila Moura Hue, da UniRio (Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro).
"Não sabemos por que Lodge teria levado o manuscrito, mas uma possível explicação seria o exotismo
que esses objetos carregavam", diz Sá, lembrando que Montaigne, por exemplo, colecionava objetos tupinambás na França. Sá e Hue lançaram há cinco
anos As Incríveis Aventuras e Estranhos Infortúnios de Anthony Knivet (Zahar), escrito por um companheiro de viagem
de Lodge que viveu dez anos no Brasil.
Lodge e Knivet vieram na frota de cinco navios comandada por Thomas Cavendish,
o terceiro europeu a circunavegar o mundo - façanha que buscava repetir, além de saquear espanhóis pelo caminho, na nova expedição.
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Poeta, romancista e dramaturgo de grande influência sobre Shakespeare, Thomas Lodge foi um
dos 'sagazes universitários" que tomaram o palco elisabetano no século 16 |
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(José Adorno não foi o único amigo que Thomas Lodge fez no Brasil. Também teriam se aproximado do
escritor dois mercadores ingleses, John King, que viveu quase duas décadas em Santos, e John Whitehall, genro de
Adorno.
Whitehall conseguira estabelecer uma rota regular de comércio de açúcar entre Santos e Londres, em
pleno século 16. Apelidado aqui de João Leitão, ele mostra que a relação com a Inglaterra era maior do que se imagina, segundo Sheila Moura Hue, que
prepara antologia de relatos ingleses sobre o Brasil da época, para a editora Zahar, com Vivien Kogut Lessa de Sá.
"Ele escreve uma carta para a Inglaterra, dizendo ter se casado com a filha
de um homem muito rico e que, se trouxessem mercadorias, os ganhos serão de três para um", diz Hue, professora-adjunta de Letras da UniRio. Envia
até uma lista com os produtos. "É curiosíssima, você vê do que se precisava no Brasil, dúzias de fitas de veludo pretas, tecidos caríssimos, mantas,
papel, cordas para violão".)
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Um dos livros furtados por Lodge foi doado por ele à biblioteca Bodleian, de Oxford, onde
ele havia estudado, e está agora sendo preparado para a sua primeira edição |
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A lembrança afetuosa de Adorno e o catecismo bilíngue, tupi-português, não foram as únicas
relíquias que Lodge levou. Em versos que publicou depois, ele remete às agruras no mar - e nas mãos do comandante. No ciclo de sonetos Phillis
(1595), fala da "viagem desolada e infernal" e da sobrevivência "e meio a este mundo de água" e à "luta contra o mar".
Romance - Os horrores da expedição, que levaram o próprio Cavendish à morte, também ecoam
num romance que Lodge publicou em 1596, considerado sua grande criação, A Margarite of America (Barnabe Riche Society, 2005). No prefácio,
ele diz ter se baseado numa "história em língua espanhola" que encontrou "por acaso na biblioteca dos jesuítas em Santos". E que reescreveu no
navio, em meio à fome e à violência dos próprios colegas de viagem.
Biógrafos de Lodge e especialistas em literatura elisabetana se dividem sobre a inspiração para
Margarite: alguns apontando outras fontes e lembram que a tal história em espanhol jamais foi encontrada. Outros, porém, sem negar que houve
fontes diversas para a obra, veem nela reflexos do que Lodge presenciou na costa da América do Sul sob o cruel Cavendish, inclusive na sanguinária
tomada de Santos, em pleno Natal.
Por exemplo, Philip Edwards, na coletânea de relatos Last Voyages (Oxford University Press,
1989), especula se "a brutalidade e o sofrimento na viagem foram em parte responsáveis pela horrível violência" retratada depois no romance. Outros
estudos, também recentes, falam de Margarite como "uma visão distópica do Novo Mundo" e até como um questionamento à estratégia e à retórica
imperialistas que Elizabeth 1ª começava a esboçar na Inglaterra.
No enredo, Arsachadus, príncipe de Cusco, se casa com Margarita, princesa de Mosco, par evitar uma
guerra entre os dois reinos. Mas o início pastoral da obra logo degenera, ao gosto da época, em atrocidades do príncipe.
Embora em prosa, guarda relação com as tragédias de vingança Titus Andronicus, de
Shakespeare, e A Spanish Tragedy, de Thomas Kyd, que são anteriores e também carregadas de mutilações e horrores variados. Também se aproxima
de Hamlet (1600), que é do mesmo gênero. Tanto o romance como a peça trazem cenas de aconselhamento paterno no início e terminam com corpos
aos montes, inclusive o do príncipe.
Mas, no caso, são apenas textos paralelos. A forte influência de Lodge sobre Shakespeare foi por
outras obras, como o romance Rosalynde (1590), reescrito na comédia pastoral Como Você Quiser (1599). Também o poema Historie of
Glaucus and Scilla, publicado em 1589 e que inspirou, principalmente na forma, o poema shakespeariano Vênus e Adônis (1593). "Eles
circulavam nos mesmos meios, eram ambos dramaturgos e poetas", diz Sá. "Pode ser que houvesse uma certa competição saudável. Não sabemos nada
específico, a não ser que Shakespeare era leitor de Lodge".
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A forte influência de Lodge sobre Shakespeare foi por outras obras, como o romance
Rosalynde (1590), reescrito na comédia pastoral Como Você Quiser |
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Hamlet - Curiosamente, Lodge cita na sátira Wit's Misery, que publicou em 1596, a
primeira peça Hamlet. Chamado hoje de Ur-Hamlet, o texto se perdeu, mas é creditado a Shakespeare por estudiosos como Harold Bloom. Em
passagem célebre, o sagaz universitário Lodge ironiza "o fantasma que gritava tão miseravelmente no teatro, como uma vendedora de ostras, 'Hamlet,
vingança!'".
De sua parte, segundo Greenblatt, Shakespeare satiriza Wit's Misery na cômica sensualidade
de Falstaff em As Alegres Comadres de Windsor, que teria sido escrita em 1597.
Shakespeare e Lodge foram ligados a companhias teatrais rivais, respectivamente Lord Chamberlain's
Men, considerada a mais importante, e The Admiral's Men, a segunda. E ambos estão em uma célebre lista de dramaturgos londrinos feita em 1598 por
Francis Meres: Shakespeare, "o melhor em comédia e tragédia", e Lodge, um dos "melhores para comédia".
Mas sobreviveram apenas duas peças de Lodge, The Wounds of Civil War e A Looking Glass
for London and England, publicadas em 1594. Ele já havia desistido do teatro e logo abandonaria toda ambição literária. Segundo Alice Walker,
autora de Life of Thomas Lodge, de 1933 (editado em 1974), a grande mudança em sua vida no final dos anos 1590, a conversão ao catolicismo em
plena Inglaterra reformista, teria sido acelerada pelas leituras em Santos.
De volta a Londres, ele passou a ter como referência o dominicano Luís de Granada, espanhol que
morou a maior parte de sua vida em Portugal e cujas obras teria conhecido na biblioteca dos jesuítas. Lodge exilou-se e virou médico na
França, voltou à Inglaterra, fugiu de novo, até obter proteção contra a perseguição religiosa. Foi o único
dos seis university wits que sobreviveu aos excessos (boêmios, políticos, intelectuais) do grupo no início dos anos 1590.
Páginas do manuscrito Doutrina Cristaa na linguoa Brasilica, que Lodge roubou dos jesuítas em
Santos
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